Leônidas ainda estava cumprindo seu turno de vigia. A noite se mantinha iluminada pelo brilho das estrelas e da lua, sem nem mesmo uma nuvem no céu. Leo achava que se olhasse para baixo, perto do precipício, conseguiria ver nuvens abaixo deles, mas preferia não olhar.

A fogueira que os irmãos haviam feito enquanto o minotauro ainda tentava escalar a montanha se mantivera acesa durante todo o tempo da escalada, apesar da lenha estar quase no fim. Deixar a fogueira apagar naquela altitude era pedir para morrer congelado. Leo também sabia que não deveria sair e deixar os irmãos dormindo a mercê de qualquer criatura que aparecesse para ataca-los. Não seria nada honroso deixar seus amigos morrerem desse jeito.

O minotauro olhou para o céu e a posição da lua e das estrelas indicaram que o turno de guarda dele já estava quase no fim. A fogueira aguentaria um pouco mais. Além do mais, a lua parecia tão bela. Leo entendia muito bem o porquê dos minotauros preferirem viver sem um teto sobre eles. Não havia visão melhor do que as estrelas de Arton. Ele tinha pena de quem não entendia isso, mas tinha mais pena ainda de quem nunca tinha sequer olhado para aquilo.

Era estranho. Do alto da montanha, a lua parecia mais brilhante, parecia maior, parecia... Se mover?

– Ei, vocês, acordem. – Sussurrou Leo para os irmãos que dormiam dentro de suas barracas. – Tem algo vindo.

Sem perder tempo, o mago apagou a fogueira com uma simples rajada de vento. Foi quando uma mão surgiu da tenda de Kurt. Ryer havia acabado de acordar e ainda estava um pouco aturdido, mas Leo havia percebido. Aquela mão não era do guerreiro.

Esguia e furtiva, aquela mão abriu caminho para que o outro lado do corpo passasse. Leo, que pensava que alguém havia invadido a barraca do amigo e assassinado ele sem que ninguém percebesse, ficou ainda mais confuso quando percebeu que todo o lado esquerdo do que quer que estivesse saindo dali tinha o braço e a perna mecânica de Kurt.

A criatura alada que sobrevoava procurando por eles, agora estava parada no ar, como se estivesse procurando os aventureiros, ou apenas observando o que estava para acontecer.

Ryer não pode conter um grito confuso quando percebeu que o que saía da cabana improvisada de Kurt possuía os membros mecânicos encantados de Kurt, o cabelo de Kurt, as feições de Kurt e as roupas dele, sem nem mesmo esquecer do símbolo da família Solaris, que o irmão exibia modestamente, mas Ryer, Leo e a criatura que sobrevoava o acampamento também viram algo mais. Ele estava mais baixo, mais delicado e.... Com seios?

Esse capítulo anda estranho demais até pra mim.

Kurt ainda não tinha percebido a mudança repentina pela qual seu corpo havia passado, mas ele mesmo se sentia mais delicado, mais sensível, mas não menos explosivo e tampouco agressivo.

Todos se sentiam confusos, mas ninguém tinha tempo para pensar muito sobre isso, afinal a criatura finalmente estava pousando a alguns metros de distância.

– Ryer, consegue ver o que é aquilo? Está longe demais para mim. – Pediu Leo.

O mago fechou os olhos e recorreu a um feitiço que achou que nunca fosse usar. Uma magia simples que faz com que algum sentido do seu corpo fique mais aguçado. Nesse caso, foi a visão. Quando abriu os olhos novamente, ele percebeu que ligado às asas, havia um corpo equino. Um cavalo com asas, um pégaso. O grupo foi andando para onde a criatura havia pousado. Se um ser daqueles havia procurado o grupo, com certeza era algo importante.

Chegaram numa pequena clareira, após descerem um curto declive. Quando finalmente olharam para o pégaso, perceberam que não era um espécime comum, mas sim "O Pégaso", a montaria sagrada de Khalmyr, o Deus da Justiça e líder do Panteão de Arton.

Não havia humano, anão, goblinóide ou qualquer outra criatura de Arton que tivesse o mínimo de inteligência e não ficasse paralisado ao observar a beleza divina daquele animal. Muito maior do que os outros, ele emitia um brilho contagiante numa luz branca pura...

– O nome do tom é “Gelo” – Reclamou Kurt

... Seus olhos penetrantes eram construídos com duas pérolas de puro vermelho cravejadas no focinho...

– Escarlate! – Corrigiu o(a) guerreiro(a).

... E seus cascos rosados não se sujavam ao tocar o terreno de Arton...

– Olha, eu acho que tá mais pra Salmão...

Quer me deixar narrar em paz? Obrigado.

– O que quer conosco, Grande Pégaso? – Perguntou Ryer.

– Ele fala a nossa língua? – Leo se mostrou curioso.

– Porque não falaria? Você fala. – Respondeu o mago e se virou para o Pégaso.

A voz daquela criatura era forte e imponente. Era como se o próprio Khalmyr estivesse falando. Era bom demais para ouvidos mortais.

– Eu trago uma mensagem dos deuses. – Começou o Pégaso. – Mais especificamente de Khalmyr. Ele sabe que vocês irão para as Uivantes e que seguirão em direção à sua casa. Ele também sabe que logo depois, vocês seguirão para Tapista, atrás do seu inimigo.

– Se Khalmyr sabe disso tudo, imagina o que Tannah-Toh não sabe... – Kurt deixou escapar. De fato a deusa do conhecimento sabia muito mais.

– Vejo que sua forma feminina te deixou com a língua mais afiada. – Zombou o Pégaso. – Antes que me pergunte, isso aconteceu porque matou os Pássaros do Caos de Nimb. Uma pequena travessura do deus do Caos. Todos as noites, uma moeda será jogada para o alto, no reino de Nimb. Dependendo do resultado, você acorda homem ou mulher. Será um desafio, para seus amigos, lidar com seus dois temperamentos, e também para você, lidar com sentimentos diferentes a cada dia.

– Afinal de contas, o que Khalmyr quer? – Interrompeu Leo.

– Eu acabei por não dizer, me desculpem. Khalmyr deseja que vocês visitem a montanha dos anões, nas Uivantes. Os anões têm rezado muito à ele por ajuda num problema que ameaça dizimar a Cidadela de Khalmyr.

– Passaremos por lá. Eu sei aonde fica. Mas o que Khalmyr nos dará em troca? – Perguntou o Mago.

– O que vocês pedirem. Um desejo para cada um de vocês, mas com restrições, é claro. Até mesmo um deus tem um alcance limitado.

– Entendo. Todos concordam? – O mago se voltou para os companheiros.

– Não pretendo recusar um pedido do rei dos deuses, enviado pelo próprio Pégaso. É claro que eu topo. – Disse Leo sem hesitar.

– Se eu for matar alguns monstros no meio dessa viagem, tô dentro. – Kurt já estalava os dedos da mão.

– Então está feito. – O Pégaso começou a bater as asas e levitar. – Vocês atravessarão o Rio dos Deuses e na outra margem encontrarão uma pessoa de confiança pra guia-los até a sua casa de forma segura. Depois, mais um se juntará à sua jornada. Ele saberá o que fazer. Preparem-se para tudo e partam agora. Adeus aventureiros, espero vê-los vivos de novo.

Foi então que Ryer percebeu que o alçar voo do Pégaso era ainda mais bonito do que o pouso. Os três voltaram ao acampamento, recolheram seus pertences, vestiram suas armaduras e se prepararam para descer a montanha e cruzar o Rio dos Deuses.

A descida foi mais simples do que a subida, como é de se esperar, mas com Kurt reclamando de dor nos pés o tempo todo, Ryer teve que conjurar um feitiço de silêncio para que Leo não desmaiasse seu irmão. Era desnecessário usar magia para descer mais rápido, afinal se cruzassem rápido demais o rio, teriam que montar acampamento na outra margem e esperar o outro enviado do Pégaso. Além do mais, o Rio dos Deuses era conhecido por abrigar feras aquáticas das mais variadas e das mais perigosas. Seria perigoso demais acampar ali perto.

Quando chegaram ao fim da descida, a face de Azhger já aparecia no horizonte e em algum lugar ouvia-se o cantar de um galo, mas os aventureiros não conseguiram ouvir, porque estavam muito próximos do barulho ensurdecedor da corredeira do rio. Seria difícil cruzar aquelas águas.

– Preciso descansar um pouco e recuperar energia para transportar nós cinco. Me dê um pouco de tempo. – Pediu o Mago

– Cinco? – Por um momento, Leo pensou que houvesse realmente mais duas pessoas.

– Claro, cinco. Ou você acha que o seu peso extra, os equipamentos e minha nova irmã reclamando não contam por mais duas pessoas?

Sem deixar Leo responder, Ryer retirou o feitiço de silêncio que agia sobre Kurt e foi se sentar embaixo de uma árvore, a vinte metros da margem. Leo chegou mais perto das águas e pôs se a observar o rio, para perceber o quão profunda eram aquelas águas e que criaturas misteriosas elas poderiam abrigar. Kurt foi coletar conchinhas perto da margem.

Ryer já estava quase revigorado quando ouviu Kurt dizer algo.

– Olha, tem um colar imóvel na água. É tão bonito, vou tentar pegá-lo. – E saiu correndo em direção as águas.

De súbito, Ryer se lembrou de algo que ele estudara na Biblioteca de Wynlla.

– Não! Saia de perto desse colar! – Gritou Ryer desesperado, mas já era tarde demais. Kurt já havia voltado com o colar na mão, feliz por ter conseguido pegar. – Droga! Devolva isso agora ou você vai acabar matando todos nós!

Leo observava o surto do mago e não pôde deixar de interferir.

– Pare de se preocupar tanto. É apenas um colar! Não é como se fosse matar tod...

Antes que pudesse terminar de falar, dois tentáculos de doze metros de comprimento feitos unicamente de água saíram do rio e tomaram a forma de duas cabeças de hidra. O minotauro se pôs na frente dos irmãos na tentativa de defende-los, mas foi inútil. As duas criaturas varreram a área, carregando os aventureiros, o colar, as conchas e algumas árvores para dentro do rio.

Eles não conseguiam respirar e era como se a água se esforçasse para mantê-los dentro do rio. E era como se a água ria do esforço que eles faziam para tentar se libertar.

Com a mente militar calma e disciplinada de Leo, ele conseguiu perceber que a ferocidade das águas que se via de cima não afetava eles abaixo da superfície. Ele não sabia dizer se aquilo era natural ou se era um feitiço da criatura que tentava mata-los. Kurt irrompeu em chamas, mesmo debaixo d’água, o que deixou Ryer surpreso. O mago sabia exatamente o que deveria ser feito, mas não conseguia dizer. Era impossível gritar debaixo de toda aquela água.

Mesmo assim, todos ouviram Kurt gritar.

– Água não vai me deter! Supernova!

Nenhum dos companheiros dele conhecia aquela técnica, mas depois de ver, Ryer achou que aquilo era impossível de ser executado. O metal no corpo do guerreiro superaqueceu e começou a evaporar a água ao redor dele. O pequeno espaço de ar criado seria suficiente para que Kurt respirasse, se o fogo que surgiu não estivesse consumindo todo o oxigênio.

Foi então que Ryer começou a rir da ideia que teve. Ele conjurou um feitiço no irmão. Um feitiço que serviu apenas para matar seu criador. Dizem as lendas que um bufão chamado Luigi um dia estava tentando agradar um banquete real, mas não conseguia. Na última tentativa de causar riso, ele usou uma magia que ficou conhecida como “O Apavorante Gás de Luigi”. Ela provoca flatulência no alvo e em quem estiver numa certa área ao redor do alvo. Ao usar essa magia no regente, ele conseguiu muitos risos... E uma morte na guilhotina, em praça pública.

Kurt sentiu o estômago revirando e os intestinos reagindo enquanto lutava para não desmaiar por falta de ar. Ele já havia feito isso antes com o irmão para pregar peças nos outros, mas nunca havia pensado que serviria para a batalha.

Ryer conjurou de novo e de novo. Três feitiços juntos foram capazes de produzir mais ar flatulento em um único corpo do que os três aventureiros precisaram para respirar. Uma imensa bolha de gás se formou, mas não conseguiu subir, porque algo estava prendendo tudo naquele nível de profundidade. Os irmãos se moveram para cima da bolha e Leo os seguiu.

Quando todos estavam quase não aguentando mais a falta de ar, Kurt moveu o braço para dentro da bolha e criou fogo.

A pressão daquela profundidade foi capaz de criar uma explosão que arremessou os três pra fora do rio. Um de cada vez, caíram na margem oposta à que haviam chegado.

– Mas o que foi isso? Bem, pelo menos atravessamos o rio. – Disse Leo se esforçando para não rir.

– Cale a boca! – Kurt estava vermelho. Não por falta de ar, mas sim por vergonha. – O que fez todo o trabalho dessa vez foi o meu c...

– Não diga essas coisas enquanto está na forma feminina. – Interrompeu Leo, gargalhando.

– Parem de papo e quebrem logo esse colar! – Gritou Ryer ofegante.

Kurt se lembrou do colar que ainda estava em sua mão. Arrebentou o colar e estilhaçou o pingente. De dentro do rio, um guincho feroz foi emitido. Seja lá o que havia acabado de lhes atacar, morrera.

– Era uma nereida. – Ryer explicou. – E ela planejava jantar a gente.

Leônidas conhecia nereidas e ficou surpreso por não haver se tocado antes. Bastava quebrar o amuleto dela e toda a força vital seria quebrada junto. Os ânimos se acalmaram. Fora divertido.

– Vamos. Tem alguém nos esperando. – Disse Leo. Da margem do rio, ao olhar pra cima, todos conseguiam ver uma figura humana parada, olhando para baixo. Só poderia ser o enviado do Pégaso. Quem seria?