Leônidas já estava farto da curiosidade de Ryer em querer saber do passado do minotauro. Ele já estava começando a pensar que seria melhor contar tudo de uma vez, só para se ver livre das infinitas perguntas do maldito que não parava de o importunar. Enquanto caminhavam saindo da cidade de Valkaria e seguindo em direção às Montanhas Uivantes, Leo começou a falar.

– Ouça tudo de uma vez e pare de me encher o saco. – Disse o minotauro, já sem paciência, e foi lhe contando toda a sua história. Quando terminou, Ryer não tinha nenhuma pergunta a fazer e, mesmo se tivesse, não saberia como fazê-la. Sua mente ainda não funcionava direito e talvez nunca voltasse a ser como antes, já que todas as vezes que sua mente trabalhava, ele se forçava a parar de pensar para não ter que cogitar novamente a morte dos pais.

Desde pequeno, Leo sempre fora criado pelos pais para ser forte, mais forte do que todos os minotauros. Ele era obrigado a treinar diariamente e amaldiçoava os pais por isso. Seu pai o obrigava a participar de torneios de luta e batia nele caso ele não ganhasse. Leônidas discutia de forma feroz com o pai diariamente porque não queria mais participar desse tipo de torneio sujo e sem honra e também odiava perder o torneio por não querer participar e ainda ter de apanhar do pai, quando estivessem a sós.

Um dia, quando Leo tinha que lutar mais um torneio entre os lutadores de Tapista, ele descobriu que aquilo tudo era mais do que um simples torneio, que todos os torneios dos quais ele participara eram mais do que meras competições de força e que aquele evento servia para mais do que apenas aumentar a moral dos vencedores e deixar seus amigos e parentes orgulhosos. Leo descobriu que dinheiro estava em jogo. Muitos tibares eram apostados e de repente ele se sentiu como um galo que participava de rinhas para a diversão de seus donos e era alvos de apostas. O pior de tudo era que o dinheiro ia para o seu pai.

Pouco antes da última luta do torneio, aquele que seria o adversário de Leo chegou perto e começou a estudá-lo. Ele sabia que a única chance de vencer era acabando de vez com o psicológico do adversário antes mesmo que a luta começasse, afinal ele sabia que não tinha chance contra Leo em perfeitas condições. Aquele minotauro era conhecido por ser excessivamente forte, mesmo para os seres da força. Infelizmente, ele sabia como fazer isso. Athanis, aquele que seria o adversário de Leo cumprimentou-o.

– Preparado pra surra que você vai levar, fracote? – Provocou Athanis.

– Que seja, eu nunca quis lutar mesmo. – Respondeu Leo – Meu pai vive me obrigando a fazer essas coisas dizendo que esse é o único jeito de me fazer mais forte do que eu sou.

– É isso que ele lhe diz? – Athanis parecia surpreso – Ele também lhe contou que apostou mais de dois mil tibares na minha vitória?

Athanis se retirou antes que Leo pudesse processar aquela informação. Apesar de tudo, Kypros era seu pai e era difícil aceitar que seu pai havia apostado na sua derrota. E ele havia apostado uma boa quantia.

A luta estava para começar e os dois deveriam entrar no espaço que os espectadores deixavam livre para a justa. Athanis foi o primeiro a entrar, orgulhoso e arrogante. Logo depois, Leo foi empurrado para dentro do círculo onde eles deveriam lutar, ainda abatido, incrédulo e um pouco raivoso.

A quinze metros de distância do local da luta, Kypros estava sentado com uma caneca de hidromel na mão, observando quase bêbado qual seria o resultado da justa banhada de suor de minotauro que o filho teria que enfrentar contra suas vontades. Ao ver aquilo, Leo se recusou a lutar. Não foi preciso muito mais do que três socos bem dados de Athanis para que Leo caísse, tão imóvel quanto estivera durante toda a luta, sem esforço para se recompor. Mesmo assim, antes de desmaiar, ainda pôde ver a reação de seu pai, que comemorava a derrota do próprio filho.

A mãe de Leo, que não era mais do que uma humana escrava de Kypros, observava a justa enquanto servia seu senhor. Em segredo, ela amaldiçoava aquele a quem estava servindo. Apesar de tudo, ela amava seu filho e odiava vê-lo sendo tratado daquela forma. Ainda em segredo, ela planejava algo.

Duas horas mais tarde, já em casa, Leo descansava enquanto esperava seu pai entrar bêbado pela porta, preparado para lhe bater por ter perdido e depois ir contar todo o ouro que havia sobrado, como acontecia em todos os dias de torneio. Não demorou muito para que Kypros entrasse pela porta, furioso e batendo nos móveis e nas paredes, gritando por Leo.

O filho rapidamente apareceu, mas dessa vez havia algo diferente. Seu filho não era mais o sempre obediente que acatava as ordens do pai e respeitava suas decisões por mais que discordasse delas. Dessa vez, Leônidas parecia determinado, revolucionário, talvez vitorioso. Ele havia descoberto sobre as apostas. Kypros conhecia o filho suficiente bem pra saber que embora ele respeitasse o pai, isso seria suficiente para que Leo juntasse forças para ignorar toda a obediência que ele tinha e matá-lo.

O mais velho sentiu medo pela primeira vez na vida. Medo. Tentou correr para fora de casa, certo de que, uma vez na rua, o filho não iria espancá-lo na frente de todos os cidadãos de Tapista, mas foi detido antes de alcançar a porta da rua. Ele gritou, mas o grito foi abafado pelos punhos de Leo. Um minotauro fugindo de medo de um dos seus. O filho bateu a cabeça do pai na parede até que os chifres de Kypros se fincassem entre as pedras que foram usadas para construir a casa.

Leo deixou o pai ali, preso e com o focinho inchado dos golpes fortes e violentos, enquanto ia para o quarto do pai em busca do tesouro do qual o pai tanto se orgulhava. Um machado duplo de batalha. Um enorme machado de prata, quase tão grande quanto um humano e sem dúvida tão pesado quanto um minotauro. O pai se orgulhava daquela arma que havia recebido como prova de sua força, enquanto era um dos guerreiros mais bem sucedidos de todo o poderio militar de Tapista. Apesar de ser pesado, Leo arrancou o machado do suporte que o sustentava para que ficasse em exposição, na parede.

Não era a primeira vez que ele via aquela arma, mas isso não o tornava menos impressionante. O machado era todo de prata, com punho de couro macio e negro. Na ponta do punho, a cabeça de um minotauro feita de marfim com dois chifres pontudos e afiados do tamanho de um dedo indicador humano, que poderiam facilmente furar a carne. Na outra extremidade, um majestoso rubi vermelho-sangue. Kypros dizia que o marfim daquela arma vinha dos chifres de seus ancestrais e que o rubi era feito do sangue cristalizado de um dragão que seu avô havia matado com as próprias mãos. Leo não sabia se era verdade, ele não se lembrava de nenhuma palavra do avô, apesar de ter suas feições guardadas na memória, mas o machado certamente serviria para o que ele queria.

Leo desceu as escadas e viu o pai tentando sem sucesso se libertar da parede e fugir.

– Que ironia. – Disse Leo – Aquele que queria me ensinar a ser forte agora tenta fugir de medo.

Kypros olhou para o filho e mal consegui reconhecê-lo. Um dia, o avô de Leônidas havia dito para os dois que o medo chegava quando queriam fugir e horror chegava quando percebiam que não havia para onde fugir. Kypros agora entendia isso e sentia o verdadeiro horror, talvez até mais intensamente do que o pai esperava, porque ele tinha para onde fugir, mas não conseguia. Foi duro para ele entender o porquê. Kypros não conseguia fugir porque era fraco e só por causa disso.

– Não se preocupe, pai – Continuou Leo – Eu nunca mais fraquejarei, porque esse machado não deixará que isso aconteça.

Leo desceu o machado tão brutalmente e violentamente que um único golpe teria sido capaz para fazer a cabeça do pai voar a uns bons quatro metros de distância. Ao invés disso, a cabeça permaneceu presa pelo chifre entre as pedras da parede e o corpo caiu no chão com um som abafado. Leo estava manchado do sangue do pai, mas nunca havia se sentido tão bem. Era a primeira vez que ele matara e ele havia percebido o quanto isso era bom. Limpou o machado e foi até seu quarto pegar a mochila que já havia deixado pronta. Antes de sair de casa, encarou a face morta do pai, ainda com uma expressão de horror.

– Filho, venha por aqui! – Era a mãe de Leônidas – A cidade em breve saberá do que aconteceu! Vá embora! Eu já falei com amigos meus e eles me garantiram que você poderá entrar na escola de Tauron. Lá você estará imune aos maus tratos de qualquer um e vai poder continuar treinando para se tornar cada vez mais forte!

– Tudo bem, mãe, – Respondeu Leo. – mas você vem comigo. Se ficar aqui e descobrirem que você me ajudou, vão te matar.

– Eu não vou ficar aqui. Seu pai não lhe contou? Ele me vendeu para um comerciante de escravos para não ter mais que aturar as minhas reclamações.

– Reclamações? – Leo estava confuso.

– Eu odiava o que ele fazia com você e tentava te ajudar sempre. Não podia lhe contar, se não ele te jogava na rua e me matava. Não suportaria ver isso. – Esclareceu Julyn, a mãe de Leo.

– Não importa agora. Já resolvi isso. E você vem comigo.

Leo pegou a mãe, colocou sobre os ombros e correu para fora de Tiberus, o pequeno vilarejo onde eles viviam. Ele seguiu em direção a Petrynia, onde começaria a sua jornada em direção a Deheon, onde pretendia continuar sua vida, mas antes que pudesse sair de Tapista, ele foi emboscado por chamas que pareciam seguir o ritmo de algo além do vento enquanto acampava às margens do Rio dos Deuses.

Ele tentou lutar. Sem sucesso. Ele não podia cortar o fogo e não achava a fonte de todo aquele incêndio. Tudo que podia fazer era fugir junto com sua mãe. O inimigo não era um minotauro e nem sabia se localizar tão bem quanto um, mas não era difícil achar alguém nas planícies de Tapista.

– Filho, siga em frente, eu acabo com ele. – Disse Julyn.

– Mas você é apenas uma humana, não tem força o suficiente. – Respondeu Leo, desesperado.

– Leônidas, entenda, a força dos humanos não vem dos músculos, como a dos minotauros, mas sim da persistência e da coragem que só nós sabemos ter. Seu pai não me tomou como escrava porque eu era bonita, mas sim porque eu fui capaz de enfrentá-lo... E ganhar.

Mais tarde ele iria descobrir que essa última parte era mentira. Leo continuou em frente enquanto sua mãe voltava correndo e gritando, com os braços erguidos sem arma alguma, para chamar a atenção de quem quer que estivesse atacando. O minotauro atravessou nadando o Rio dos Deuses e correu até que a noite se transformasse em dia. Quando finalmente parou, se lembrou dos gritos de dor que sua mãe havia soltado ao encontrar com o inimigo e chorou. Chorou o suficiente para afogar a face brilhante de Azgher.

– Honrarei suas vontades, mãe – Gritou para os animais de Allihanna e para o olho do Vigilante, que observava tudo do alto do céu – Irei para a escola de Tauron e me tornarei um forte clérigo do Deus da Força e da Coragem.

– Agora entendo o porque de você ter ajudado a gente até agora – Era Kurt, que havia escutado tudo de longe.

– Não espalhe isso por aí. Não gosto de ter minha vida comentada por todos – Pediu Leo.

– Ninguém dirá nada. – Prometeu Ryer – Mas estamos indo para Tapista. Está pronto pra isso?

– Se eu não estivesse pronto, não estaria aqui. – Respondeu e sacou seu machado – Além do mais, esse brinquedinho aqui não vai me deixar fraquejar.

As Montanhas de Teldiskan começavam a surgir no horizonte e elas indicavam que o Rio dos Deuses estava novamente perto. Do outro lado do rio, estava Tapista e o alvo deles, mas existia algo no meio do caminho. A casa dos Solaris, as Montanhas Uivantes. Aquilo estava próximo do fim.

– Não fale de mim como se eu fosse o único que está com medo – Disse Leo – Vocês também esperam capturá-lo antes dele chegar em sua casa, não é?

– Se aquele babaca ousar atacar meus pais, eu empalo ele nos seus chifres! – Rugiu Kurt, em fúria.

Todos estavam desejando que aquilo acabasse logo, mas no fundo, nenhum deles saberia o que fazer depois que aquilo acabasse. Não gostavam de pensar no depois. Era bom sentir o cheiro da grama que balançava de acordo com o vento que passava por ela e ouvir o barulho dos rios que corriam ali por perto. Leônidas já podia ouvir o rugido feroz das águas do Rio dos Deuses o desafiando. Cada passo em direção à Tapista o fazia lembrar-se do seu passado e todas as noites eram amaldiçoadas com os gritos de sua mãe sendo queimada naquela noite. Em certos momentos, ele desejava que Tenebra não escondesse a face de Azgher, para que ele não precisasse dormir e sonhar com sua mãe desfigurada novamente.

Felizmente, o inimigo estava próximo e, pelo menos para matá-lo, todos estavam prontos. Leo orava a Tauron para que lhe desse forças e coragem para continuar. Seu conforto era apenas um pensamento. A certeza de que aquilo logo acabaria. O fim estava próximo. Pegou seu velho companheiro de sangue e brados de fúria e avaliou o fio de suas duas lâminas. Só então conseguiu se lembrar da voz do avô dizendo algo diretamente pra ele.

– Esse rubi na ponta do machado que eu seguro representa mais do que simplesmente o sangue de uma besta lendária que os minotauros mataram. Esse rubi representa o sangue de nossos inimigos, os sacrifícios dos nossos companheiros, as batalhas travadas que foram capazes de modificar toda a história de uma raça. – Leo guardou o machado nas costas, sentiu a brisa fresca no rosto, de olhos fechados, e o cheiro da grama verde que o vento trazia. Só então foi capaz de completar suas memórias de seu avô. – Esse rubi representa mais do que uma conquista. Ele representa a força e a coragem que todos nós tivemos ao lutar contra todos os povos que um dia desejaram nos conquistar. Ele representa nossa liberdade.