– É isso que desejam? – Perguntou novamente o anão.

– Sim. – Todos responderam em uníssono.

– Que seja. – O paladino começou a rezar para Khalmyr. – Preparem-se.

O anão se afasta um pouco e se senta, preparando-se para conjurar o feitiço de teleportação para mais de uma pessoa. Não havia relatos de ninguém em Arton que conseguisse fazer isso, nem mesmo ele havia tentado. Passado alguns minutos, com a paisagem voltando aos poucos ao seu natural, após a saída daquele dragão ancião, todos veem a beleza que aquele local era quando não estava prestes a acontecer um desastre envolvendo uma besta mitológica com poderes mágicos e físicos muito acima de qualquer humano, exceto talvez os grandes magos Talude e Vectorius.

O grupo pensou em voltar atrás com seu desejo, mas todos queriam terminar logo com aquilo, além do mais, não tinham certeza se o servo de Khalmyr aceitaria uma mudança de planos tão repentina.

No fim, os aventureiros ficaram prontos antes do anão, que precisou de um pouco mais de tempo para terminar os preparativos, mas ao invés de reclamar, todos agradeceram por isso, porque tiveram tempo de pensar em estratégias de batalha e fantasiar sobre como estaria Gladius, após tanto tempo e como seria seu covil. Além do mais, agradeceram por poder assistir ao espetáculo que Allihanna lhes oferecia com um início de pôr do sol e a neve derretendo aos poucos na grama verde, enquanto a brisa trazia o cheiro de manhã fresca, apesar de ser fim de tarde. De algum modo, aquilo inspirou a todos.

Com o cair da noite, o anão se levantou e juntou o grupo para deixá-los perto de Gladius.

– Não vou poder deixar todos em frente ao alvo, mas posso largá-los bem perto da entrada e tudo que terão que fazer será invadir e cumprir seu objetivo – disse o anão.

– Invadir pela porta da frente? Não contava com uma estratégia dessas – protestou Ryer.

– Faz muito o nosso estilo, irmão. Acho que todos aqui preferimos assim – e de fato preferiam.

– Pois bem, vamos.

Dito isto, o pequeno guerreiro barbudo começou a erguer os braços e olhar para cima, como se fosse um mago prestes a levitar. Apesar de todos saberem que algo estava para acontecer, não puderam deixar de se surpreender quando, de trás da armadura dourada, surgiu uma mancha inicialmente negra que foi se espalhando até criar uma bolha em volta deles por completo e transparecendo manchas roxas, vermelhas e azuis escuras de uma maneira tão abstrata e psicodélica que hipnotizou todo o grupo. Nenhum deles havia passado por aquilo antes e, se foi uma surpresa a bolha negra, foi um susto maior ainda o que veio depois. A bolha começou a levitar bem devagar e parou numa altura próxima a um metro do chão. Logo após isso, todos sentiram como se fossem sugados por um vórtice que transformou a todos numa única linha, de tão rápida que se tratava a viagem. Em alguns momentos, os aventureiros pareciam atravessar montanhas pela base, ou pelo menos foi o que sentiu Leo quando pareceu tocar o subsolo. Da mesma forma como começou, tudo para e todos que não estavam preparados foram arremessados contra a parede da bolha. Por pouco Aegis não disparou um tiro acidental.

– Chegamos, vou desfazer a bolha – e então o processo oposto aconteceu. Levitaram para baixo até tocar o solo e quando finalmente sentiram os pés no chão, a bolha começou a se desfazer da mesma forma como se formou e a escuridão psicodélica de suas paredes deu lugar a uma planície.

O grupo estava no alto de uma colina que era revestida por uma grama rasteira tão verde quando folhas de eucalipto. De muito longe podia-se ver algumas árvores altas que, Leo sabia, eram o Pátio de Allihanna, lar de grandes bestas da deusa, tão bizarras e medonhas quando a própria, e a parte sul da floresta de Naria.

Se Leônidas estava certo sobre sua localização, só podia estar em Tapista, logo acima das Grutas de Zalah. Quando se virou para trás, Leo viu o horizonte azul e percebeu que não estava enferrujado ainda. Ao sul, via-se os navios dos minotauros saindo e chegando do porto de Calacala, um local bem distante de onde iam e vinham marinheiros minotauros que ousavam navegar o Rio dos Deuses ou aqueles que simplesmente embarcavam para Hershey, o reino das guloseimas, e de lá seguiam para Petrynia, o reino das histórias épicas.

– Preciso voltar aos meus deveres – disse o anão –, quem vocês procuram está nas grutas lá embaixo. Na maior delas.

– Obrigado – disse Aegis –, fez mais por nós do que merecíamos. Volte para os seus deveres. Encontraremos um modo de voltar para casa.

Ele não esperou uma resposta e decidiu sair dali voando em sua armadura dourada, pois já tinha gastado muita de sua energia teletransportando todos os cinco.

Assim que o silêncio dominou, Kurt se virou para os companheiros com ar sombrio.

– Senhores, sabemos o que deve ser feito aqui. Vamos logo.

– Tudo bem. Quando mais cedo formos, mais cedo voltaremos – disse Aegis. Todos concordaram e foram em direção à descida íngreme de quase meio quilômetro que terminava numa fina camada de pedras escorregadias e pontiagudas espremidas entre as ondas violentas e salgadas do mar e o imenso monólito que abrigava milhares de túneis, uns mais aleatórios do que outros. Por sorte, havia alguém incapaz de se perder ali.

– Eu vou na frente – determinou Leo –, conheço isso aqui como a palma da minha... mão?

– Já esteve aqui antes? – Perguntou Aegis, vencendo a vontade de rir que os irmãos Solaris haviam manifestado.

– Nunca – respondeu o minotauro –, mas conheço o mapa de todos os lugares como se houvesse passado a minha vida inteira lá. Não consigo explicar, é natural.

– Vamos logo – disse Ryer –. Parece uma eternidade desde que saí de Wynlla com meu irmão. Não aguento mais esperar um segundo.

Leo olha para Kurt como se perguntasse se tudo está bem, mas tudo que Kurt faz é ignorar o olhar do amigo e seguir gruta adentro. O grupo vai avançando, tomando cuidado para não se machucarem e para não serem emboscados. Os mais brutos na frente e o mago acompanhando o pistoleiro na retaguarda.

Conforme foram avançando, a luminosidade foi diminuindo e tudo foi ficando cada vez mais escuro. Não havia uma única tocha ardendo, apenas o barulho de gotas de água que pingavam das estalactites e um leve brilho inútil de largos filetes de mais água que escorria pelas paredes das grutas, mas mesmo assim Leo sempre parecia saber para onde virar ou em qual direção seguir. Aegis permanecia com a mão nas suas pistolas e o dedo no gatilho, porque tinha suas dúvidas sobre o senso de presença de Kurt e de Leo, que estavam pouco mais de um metro à frente, o que na escuridão mais parecia um quilômetro.

Na décima quarta virada de Leo – ou seria décima sétima? – Kurt vê um leve brilho pálido no fim daquele túnel, algo parecido com uma tocha, ou qualquer outro sinal de civilização.

– Fiquem atentos – ele sussurrou –, qualquer coisa pode nos atacar agora.

Mas para a surpresa de todos, nada atacou, nada se mexeu, nada fez barulho, exceto as intermináveis gotas que pingavam e deixavam Kurt cada vez mais irritado. Foram avançando com cuidado e quando chegaram mais perto, perceberam que havia mais uma última curva que terminava num salão com mais de cinquenta tochas ardendo, para manter cada canto iluminado. Havia apenas uma entrada para o salão e oposta à essa entrada estava um imenso trono de pedra esculpido em ângulos retos e rico em detalhes dourados que pareciam ser fogo sólido, quando iluminado pela luz daqueles muitos archotes. Sentado nesse trono estava uma figura muito conhecida.

– Cumpra sua missão – disse Aegis –. Alguém precisa cuidar da retaguarda e eu lhe garanto que ninguém passará sem ser visto.

O grupo não quis questionar. Seguiram para o meio do salão Leo, Ryer e Kurt, enquanto o pistoleiro retornava um pouco antes da entrada. Quando chegaram no centro, Gladius se levantou do trono de pedra avermelhada.

– Não repare no meu quartinho bagunçado – disse em tom de ironia –, soube que viriam em cima da hora e não tive tempo de preparar muita coisa. Espero que não se importem.

– Não nos importaremos, seu maldito. – Kurt já parecia prestes à avançar.

– Vá com calma, velho amigo. Ambos já sabemos que as chamas de um serão inúteis contra o outro, não acha melhor...

– Então vamos resolver isso no braço. Agora sim as coisas ficaram interessantes.

– Tudo bem, eu estava querendo mesmo te dar uma boa surra, desde que me impediu de pegar o carequinha aí. Mas me parece um pouco injusto que eu tenha que socar três de uma vez, ainda mais com um minotauro no seu time...

– Desde pequeno é chorão – zombou Kurt –, mas já que insiste... – virou-se para Leo e Ryer – fiquem no canto assistindo eu deformar esse babaca, esperei muito por isso.

– Não é justo, cara – Leo parecia decepcionado –. Eu também queria dar uns socos nele...

– Vamos, Leo – insistiu Ryer –, se ele fizer algo injusto, mataremos ele na hora.

Os dois já estavam indo descontentes para o canto do salão, quando todos ouviram três tiros sendo disparados rápido o suficiente para serem confundidos com o motor de alguma nova invenção. Todos sabiam de quem se tratava.

Aegis entrou voando no salão, aterrissando de costas para Kurt, apontando as pistolas para o portal, seguido por dezenas de escravos vestidos em roupas que mais pareciam sacos de batata e com mãos e pés presos por correntes de um metro e todos os pelos do corpo cortados. Todos morriam quase que instantaneamente ao serem atingidos por um tiro, chute ou cotovelada do pistoleiro, de tão fraco que estavam. Imediatamente Leo e Ryer foram ajudar o amigo.

O minotauro sacou sua arma-herança e pôs-se a deixar a lâmina do machado de batalha mais vermelha do que o brilho do rubi que a ornamentava, enquanto Ryer invocava cada vez mais poder elétrico para queimar, desintegrar ou simplesmente eletrocutar os escravos que passavam pelo portal, com o único objetivo de não deixá-los chegar até Kurt.

– Nunca se deve confiar na sua palavra – disse o guerreiro –, aprendi e reaprendi isso da pior forma.

– Meus projéteis acabaram! – Gritou Aegis – Mas ainda posso atirar pedrinhas do chão e elos de corrente com essa pistola.

– Não seja por isso – respondeu Leo, enquanto decapitava oito escravos com um único golpe monstruosamente forte de seu machado –, o que não falta por aqui são correntes... e nem escravos, pelo visto – e jogou alguns segmentos de corrente para o amigo.

No centro do salão, Kurt e Gladius trocavam socos violentos e chutes capazes de derrubar uma vaca, mas nenhum dos dois parecia sentir dor alguma. Foi quando um dos escravos, que conseguiu passar pelo bloqueio dos três companheiros de Kurt, correu em sua direção e se agarrou em seu braço direito. Com um único golpe da outra mão na testa do escravo, sangue, massa cerebral e ossos moídos escorriam pela pele da cabeça de um corpo sem vida e sem pelos que jazia no chão vestindo um saco de batata.

Gladius sorriu. O escravo havia feito o suficiente.

Um soco de baixo para cima no queixo de Kurt fez três dentes voarem e quando viu o inimigo desorientado, Gladius sabia que tinha ganhado o combate e se preparou para o golpe final. Empurrou a sola do pé no peito de Kurt, fazendo-o dar três passos para trás e correu na direção dele, pulando pouco antes e indo desferir um chute poderoso em seu rosto, que se não fraturasse seu crânio, com certeza quebraria seu pescoço...

... Mas poucos segundos antes de cair, algo o interceptou tão forte e rápido quanto um touro.

Leo encaixou seus chifres em volta da cintura de Gladius e o arremessou contra o chão, a dois passos do trono de pedra. Um raio fez parte do teto desabar e outro, logo em seguida, passou pelo buraco feito pelo anterior e explodiu quase sessenta escravos e por pouco não levou Aegis junto. Sem perceber, Ryer invocara uma tempestade e agora seus olhos haviam abandonado o castanho costumeiro e adotado um intenso amarelo que por pouco não era confundido com branco. Raios pulavam de suas mãos para suas pernas e de sua cabeça para seus ombros e chuva forte entrava pelo buraco no teto, caindo logo ao lado de Kurt, que ainda se recuperava da intromissão daquele maldito escravo. Mas Leo não percebeu nada disso acontecendo, porque estava correndo em fúria com seu pesado machado de guerra erguido e querendo apenas uma coisa: vingar a morte dos pais de seus amigos.

Irmão de taverna vale mais do que irmão de sangue.

O tempo para, mas não literalmente, como tinha ocorrido com o dragão branco há pouco tempo. Ali o tempo parou na mente de todos. Kurt cuspiu mais dois dentes e um pouco de sangue vermelho escuro e pegajoso, limpou o sangue que escorria do nariz e rastejou em direção à entrada da chuva, querendo se molhar, para poder entrar em fúria e voltar para o combate. Ryer, que antes flutuava e direcionava os raios da tempestade para torrar os escravos que não paravam de passar pelo portal, agora estava parado, olhando na direção de Leo, como todos ali faziam. Aegis, havia afrouxado os punhos e tirado o dedo do gatilho. Nem ele podia crer no que havia acontecido.

Esse rubi representa mais do que uma conquista. Ele representa a força e a coragem que todos nós tivemos ao lutar contra todos os povos que um dia desejaram nos conquistar. Ele representa nossa liberdade.

A lâmina do machado de Leônidas estava finalmente banhada em sangue de todos os tipos de tal forma que o sangue escorria pelo gume e pelo punhal, passando pelo meio dos dedos do minotauro e pingando sobre o chão, enquanto a ponta oposta estava enfiada entre o ombro e o pescoço da vítima que sorria para ele. Tal qual o sangue escorria pela arma, lágrimas escorriam pelo rosto animalesco de Leo... e ninguém jamais esquecerá do único dia em que viram o mais forte minotauro que Tapista já conheceu derramar lágrimas. Uma ilusão havia se desfeito. Leo segurava o corpo quase morto de sua própria mãe.

Leônidas, entenda, a força dos humanos não vem dos músculos, como a dos minotauros, mas sim da persistência e da coragem que só nós sabemos ter.

Os escravos, que ficaram paralisados quando o golpe final fora dado, agora corriam desesperados para fora do salão, pensando que finalmente estariam livres... Mas um escravo não deve nutrir esperanças. Uma gargalhada surgiu das sombras junto com a figura de um mago, que emergiu da sombra de Aegis vestindo uma túnica preta com capuz. Assim que os escravos se puseram a correr para fora da gruta, o corredor desabou com todos abaixo deles e somente o teto quebrado poderia ser usado como saída do salão agora.

O mago mal conseguiu terminar a risada, quando uma engrenagem se moveu e uma adaga de cobre arremessada atravessou sua garganta. O verdadeiro Gladius saiu de uma passagem secreta que existia atrás do trono de pedra e que agora já se fechara novamente. Deu dois passos até a direção de Leo, que estava próximo dali, segurando o corpo da mãe, que sussurrava suas últimas palavras no ouvido do filho, enquanto este tentava desesperadamente se desculpar, aos prantos, e chutou o minotauro com tanta força na costela que o corpo pesado caiu de lado, ainda abraçado com a mãe e largando seu machado no chão.

– Ambos foram bons escravos e me serviram bem, mas agora o serviço deles chegou ao fim e não havia mais motivo para mantê-los vivos. – Disse Gladius.

Aegis reparara agora, tanto o mago quanto a mãe de Leo possuíam marcas de tortura pelo corpo e os pulsos e tornozelos em carne viva, por causa do abraço gelado de correntes pesadas.

Kurt já estava em pé, mas algo estava errado com ele. O Solaris mais velho estava logo abaixo da densa tempestade que penetrava pelo rombo no teto, mas parecia não se importar com isso. Ajeitou seu braço metálico, que havia sido colocado à mostra quando o escravo se agarrou nele e rasgou suas vestes, e ficou ali por algum tempo, sentindo a chuva percorrer seu corpo, com os cabelos jogados sobre o rosto e os olhos fechados enquanto tentava se controlar.

– Seu maior erro, Gladius – Kurt disse calmamente –, não foi ter tentado raptar meu irmão e nem matado nossos pais, mas sim mexer com meus amigos.

Kurt corre como um humano normal na direção de Gladius, sem nenhum vestígio de chama ou faísca, além de úmido e pingando, e tenta socar o rosto do inimigo, mas em velocidade normal, o outro apenas se limitou em segurar o punho do braço de ferro de Kurt. Foi quando percebeu que algo estava errado. O metal do Solaris estava quase a ponto de derreter e agora começava a incandescer. Gladius perdeu a sensibilidade da mão na hora e gritou de dor, enquanto Kurt o segurava com ambas as mãos e arremessava-o contra o trono, quebrando algumas de suas costelas, num barulho aterrorizante que fez com que Ryer quase sentisse pena. A surra não terminou por aí, Kurt segurou o colega de infância com apenas uma mão pelo elmo que ele usava e arremessou-o para o alto. Enquanto caía, Leo continuava a chorar e Aegis tentava consolá-lo, mas de nada adiantava. Kurt pegou um archote da parede, foi ao encontro do corpo de Gladius caindo como um boneco de pano revestido de aço quase sem vida e chutou-lhe no meio do peito, estilhaçando a placa de peito e fazendo com que a parede gelada beijasse a coluna de Gladius de uma forma que por um momento pareceu que sofria tanto quanto Leo. Sem deixar que caísse, Kurt usou toda a chama que havia guardado e comprimido como propulsão para arremessa o archote como uma lança na direção de onde havia estilhaçado a armadura de ferro do outro. A ponta de madeira quase afiada age como um projétil, perfurando não só o ferro estilhaçado, como também pele, ossos, carne, órgãos e até um pouco da parede, prendendo o corpo de Gladius na superfície gélida da parede do salão, junto com outros vinte archotes que ajudavam a iluminar a bela obra de arte que era a mancha de sangue, aço, tripas e vingança.

Quando tudo por fim termina e todos se acalmam, Ryer leva todos voando para fora do salão pelo buraco no teto e a tempestade que ainda caía ajuda a lavar o sangue, o suor e as lágrimas de todos.

****

Uma cabana construída com paredes de pedra e telhado de madeira. Ryer nunca se cansaria de ver aquilo. Aquela casa em Wynlla fora o ponto de partida de muita coisa. A última aventura, há seis anos atrás havia deixado muitas marcas. Ele havia perdido parte da visão por entregar o corpo à eletricidade, enquanto Leo se dedicou às últimas palavras da mãe. Segundo ele, a mãe havia parido outro bebê minotauro, poucos meses antes de sua morte e Leo foi dedicar-se a criar e educar o pequeno touro. Kurt pareceu melhorar cada vez mais, apesar das engrenagens de seu braço já não funcionarem tão bem quanto antes. Já Aegis...

– Irmão, como foi a despedida de Aegis mesmo? – Ryer até agora não havia entendido.

– Não me lembro muito bem ...55... ...56..., mas acho que ele disse ...57... ...58... algo sobre viajar. – Kurt respondeu, sem parar suas flexões.

– Deve ter sido algo assim mesmo – concordou o mago, sem parar de folear seu livro. Mesmo sem quase ter visão, não abria mão de ler –, é bem a cara dele mesmo.

Ryer fechou o livro e ficou encarando a vista da janela, vendo as pessoas passarem pacatas na rua e vendo garotos brincando de serem guerreiros, aventureiros, soldados e matadores de dragões. Chegava a ser divertido lembrar-se que já fora um deles há não muito tempo.

Foi quando alguém bateu à porta.

– Pois não? – Ryer foi abri-la – O que deseja?

– Trago uma mensagem – disse o homem – para os irmãos Solaris.

Ryer sabia reconhecer um mensageiro, entretanto, aquele em particular havia vindo de muito longe. Se a memória não falhara, e raramente falhava, as cores que aquele homem ostentava eram cores de Deheon, o reino capital.

– Somos nós – respondeu Ryer –, pode entrar.

– Não será necessário, obrigado. Qual dos dois é Kurt Solaris?

– Acho ...75... ...76... que sou eu

– Muito bem. – O homem desenrolou um papel e pôs se a ler – É com grande honra que o reino capital de Deheon, em nome de todo o Arton convida Kurt Solaris, nascido nas fortes uivantes e filho de uma clériga do Deus-Sol, aquele que suportou o calor de vulcões em seu treinamento e que prestou grande serviço ao matar Gladius, à juntar-se a nós e ser capitão da terceira legião do Protetorado do Reino. Assinado, Rei-Imperador Thormy Pruss.

– Não acho que possa recusar ...97... ...98... uma oferta do rei.

O mensageiro rapidamente desembrulhou outro papel.

– Minhas condolências pela morte dos seus pais, mas fiquei sabendo que foram bem vingados. Pessoas de vilarejos vizinhos às grutas espalham boatos de uma tempestade colossal que os deuses mandaram para lavar a terra de Tapista, mas nós sabemos a verdade. Venha com seu irmão para Deheon e venha ter comigo na Academia Arcana. É bem possível que consiga aprender muito mais conosco e quem sabe ensinar o que sabe aos mais novos. Atenciosamente.... Talude? – o mensageiro pareceu não acreditar – Cara, vocês devem ser fortes... Queria ser como vocês

– ...100... – Kurt se levantou e deu um tapinha no ombro do mensageiro. – vai por mim, cara, não queria não. Vamos irmão. Temos que arrumar as malas.

****

– Pelas histórias que você conta dela, parece que foi a mais forte das mulheres de Arton – Ryer disse, ainda com os olhos dourados e descargas pulando de seus pés flutuantes para o chão.

A chuva ainda varria o alto da colina onde o anão havia deixado eles.

– Ela terá um enterro digno. – Disse Kurt – Um enterro digno agora! – e pôs-se a cavar.

Meia hora depois, sobre a incansável chuva que caía, a sepultura estava aberta e Leônidas repousava o corpo da mãe. Ryer deixou na sepultura seu grimório já memorizado. Aegis deixou sua bandana que nunca havia tirado da cabeça. Leo fechou a cova e Kurt arrancou uma das placas de ferro de seu braço mecânico e marcou com seu fogo inscrições que diziam “descanse em paz”. Repousou a placa ali para ter algo a deixar. Leo não deixou nada, muito pelo contrário, ele levou o legado da mãe, junto com tudo que ela lhe havia ensinado. Ele era grato por isso. Aquela mulher fora forte até o momento de sua morte e ninguém era capaz de afirmar o contrário.

– Para onde vão agora? – Perguntou Ryer.

– Acho que ninguém pensou nisso... – disse Kurt, percebendo que nem ele sabia para onde iria – Acho que voltarei para Wynlla. Querem vir com a gente?

– Não posso – respondeu Leo –, acabo de descobrir que tenho um irmão e pretendo cria-lo, mas antes tenho que encontrar o pirralho. Minha mãe não queria que ele fosse achado por Gladius.

– Entendo. – Nada mais surpreendia Ryer – E você Aegis?

– Minha missão aqui acabou. Tenho que voltar para o meu tempo. Adeus amigos.

Ao dizer isso, virou-se para trás e pôs-se a correr em direção à descida íngreme que eles haviam percorrido para encarar seu destino. As pedras pontiagudas lá embaixo pareciam chamá-lo e então todos compreenderam o que ele iria fazer... Mas já era tarde demais. Os irmãos e o minotauro correram para perto da descida, mas quando chegaram, já não havia mais nada lá embaixo. Nem vestígio do corpo estraçalhado do amigo.

Leo queria voltar a chorar, Kurt queria bater em alguém e Ryer só tentava entender o que havia acontecido, mas nenhum deles realmente acreditava que Aegis havia morrido. Ele havia passado por muita coisa para simplesmente morrer assim... Para simplesmente se matar assim...

Eles estavam certos.

****

Aegis ultrapassa uma das portas brancas sem maçanetas daquela sala, deixando o cheiro do mar do lado de fora. A sala era um dodecaedro, uma figura quase redonda de vinte lados, formada por pequenos triângulos e cada um desses triângulos tinha três portas iguais à que ele tinha acabado de atravessar. A sala parecia ter gravidade para todos os lados e para lado nenhum. Nada ali fazia sentido, mas de certa forma, Aegis parecia compreender. Todas as portas eram exatamente iguais, mas ele sabia exatamente por todas que já havia passado.

Ele vasculhou a sala à procura de uma porta, como se tivesse que escolher a dedo alguma porta pela qual ele não passou ainda.

– Para que lugar do tempo eu vou agora...?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.