[I]


Era dezembro de 2052 e o inverno estava particularmente rigoroso naquele ano. Sentado à beira do topo de um prédio, Ray, sem conseguir dormir, encontrava-se contemplando a vista urbana noturna, repleta de hologramas luminosos e outdoors, ao mesmo tempo que refletia sobre todos os acontecimentos de sua vida.


Passaram-se quatro anos desde a chegada ao mundo humano e três anos desde o encontro com Emma. Já não eram mais pratos de comida dos demônios; tinham, finalmente, a própria liberdade. A promessa feita para conseguir sair do mundo dos demônios foi um sucesso, mas custou a memória de sua melhor amiga. Inicialmente, foi realmente difícil lidar com aquilo, com o fato de que Emma jamais se lembraria de sua família, de si e de Norman. Era quase doloroso trazer à memória cada sacrifício que ela fez em prol de todos e, no fim, ninguém pôde retribuir cada um daqueles atos de amor. Porém, a convivência com a nova Emma também era como conviver com a antiga; felizmente, parecia que sua personalidade não sofreu mudanças e continuava a mesma amiga calorosa e empática de sempre.


Apesar das tecnologias ultra avançadas mundanas, com alguns poucos lapsos de lembranças, Emma ainda não conseguia recuperar suas memórias. Em suma, basicamente baseou-se nas histórias contadas pelos amigos para entender o valor da relação cultivada entre eles por tantos anos.

Ray sentia-se impotente toda vez que se recordava do que Emma fez para salvar todos no outro mundo. Ele não fez nada e Emma pensou em absolutamente tudo sozinha. Pensava, inevitavelmente, no quão inútil fora nos momentos que mais importavam. Isabelle morreu antes mesmo que pudesse consertar a relação de mãe e filho, sequer conseguindo se despedir ou dizer tudo que estava guardado. Não estava com Emma na hora da promessa. Não tomou a frente de nada. Foi um peso morto.

Entendia, agora, o motivo de Norman gostar de Emma desde crianças. Ela sempre teve um coração muito grande, enquanto que Ray só se abriu depois de várias situações juntos. Pensava no quão egoísta era quando queria salvar apenas seus melhores amigos, enquanto que Emma sempre pensava em todos, até em quem não merecia, antes dela própria, mesmo quando parecia impossível de ser feito.

Soltou um longo suspiro e sacudiu a cabeça, tentando afastar aquela corrente de pensamentos. Não deveria pensar assim. Não havia sequer sentido em relembrar sentimentos ruins, quando agora conseguiram tudo que almejava e tinham uma vida relativamente estável, na qual não eram mais gado. Só era difícil aceitar suas escolhas de anos atrás.

Norman. Assim que esse nome veio à mente, quis se bater; saiu de uma reflexão ruim para ir para outra pior. Era justamente o motivo de sua insônia.


Estava cada vez mais complicado controlar o que sentia e, na verdade, nem sequer entendia direito. Nos últimos três anos — quando encontraram Emma e não existiam mais grandes preocupações —, haviam se aproximado de uma maneira que nunca fora feita antes. Compartilhavam quarto, mas já não eram crianças inocentes; com frequência, um observava no outro todo tipo de mudanças e comportamentos, dos mais triviais aos mais íntimos. Dividiam saberes e, entre concordâncias e divergências, sempre chegavam a um acordo ou se complementavam, de algum modo. Partilhavam pensamentos e emoções que não conseguiam guardar para si, mas que ficavam apenas entre eles e mais ninguém. Claro, eram coisas feitas com alguma frequência com a família inteira, que morava no mesmo prédio e dividia rotina, porém, havia coisas que só ficavam entre eles, porque eles se entendiam. Era um rito conversar sempre à noite, que era o único momento em que realmente estavam livres um para o outro. Era uma amizade íntima, que, todavia, em algum momento, floresceu um sentimento estranho em Ray.


Talvez, tal paranoia tenha começado desde quando se viu enciumado por Norman sempre estar ocupado com algo ou na companhia de alguém o dia inteiro — lembrava muito bem de como se sentira culpado o dia inteiro por sentir tal sentimento negativo de posse. Quem sabe, talvez também desde o fatídico dia em que Norman havia dito que confessou-se para Emma — sim, estando sem memórias. Seu coração deu uma súbita acelerada inexplicavelmente e, com alguma dificuldade, conteve sua expressão de choque por algum motivo até então desconhecido. Por fim, viu-se respirando aliviado quando o amigo falou que fora rejeitado — e dava graças aos deuses por Norman não ter questionado o alívio, pois nem ele saberia responder. Ou, ainda, desde que teve maior contato com a literatura romântica, que, talvez, possa ter exercido alguma influência em sua imaginação, mesmo sendo superdotado. Não entendia todo aquele misto de sensações ou porquê surgiu, mas, pelos livros, sabia: era paixão.


Havia quebrado a cabeça para compreender o motivo da paixão por longos meses — e continua na mesma situação, na realidade. Leu inúmeros artigos e livros de neurociência, psicanálise e psicologia, obsessivo, em busca de alguma resposta plausível. Encontrou muitas explicações científicas para as sensações que sentia, que deviam-se à liberação de determinados hormônios com a pessoa amada, entretanto, ainda era uma incógnita o que o levou a se apaixonar pelo amigo — tipo, justamente o melhor amigo! —. Em alguns sites, diziam que era atração física ou compatibilidade intelectual, mas tal fato não tinha o menor fundamento, afinal, nunca sequer se viu da mesma forma quando se tratava de Emma ou de qualquer outro membro da família. Então, por que Norman?


A partir daí, foi só ladeira abaixo. Passou a analisar minuciosamente tudo o que era o Norman, desde os mais singelos gestos à aparência. Notou como Norman tinha um sorriso bonito e fácil, embora nem sempre verdadeiro; disfarçava bem quando fingia, no entanto, não enganava nenhum pouco Ray. Seus olhos safiras eram indiscutivelmente lindos; tinham a profundidade de um universo. Porém, decerto, não seria uma causa forte para despertar sua paixão, já que já havia admitido a beleza do amigo para si há muito tempo, antes mesmo daqueles sentimentos surgirem. Reparou em como o cabelo era sedoso nos raros instantes que se permitia fazer um cafuné e em como o perfume amadeirado de hortelã lhe caía perfeitamente bem e era agradável às suas narinas. Perdeu-se, inevitavelmente, nos carinhos singelos e genuínos de átimos íntimos e nas palavras ditas de forma tão bem pensadas ao mesmo tempo que tão repletas de sinceridade. Era um rapaz de convicções firmes e as seguia até o fim, mas que, porém, quando necessário, refletia e, por vezes, também mudava seus ideais; era, certamente, um conjunto de virtudes que Ray gostaria de ter e admirava em Norman. Não só isso: também o fazia se apaixonar gradativamente mais por ele.

Vendo o rumo que seus pensamentos estavam tomando, Ray praguejou mentalmente e passou a mão entre os cabelos, visivelmente nervoso com seu próprio estado e pensando no quão patético era. Norman era seu melhor amigo e estava gostando dele de forma romântica. Seria melhor que se confessasse o quanto antes para poder se resolver — isso se Norman já não suspeitava, o que seria mais constrangedor, mas preferia não pensar nessa probabilidade. Pronto, era isso. Seria provavelmente rejeitado e, com sorte, poderia seguir em frente. Talvez não, mas pelo menos terá tirado o peso da dúvida.

— Ray?


Ray quase sobressaltou-se ali, de susto. Justamente o indivíduo que menos queria ver no momento resolveu aparecer para si. Grande dia.


Norman estava próximo à porta que conectava o interior do prédio ao terraço, agasalhado da cabeça aos pés — precisamente, vestido de touca, luvas, botas, casaco grosso e calça moletom, tudo em diversos tons de azul —, com o nariz meio vermelho por conta da friaca da madrugada. Naquele momento, estava inegavelmente fofo, mesmo com os traços amadurecidos de um adulto e a alta estatura. Ah, porra...


— Será que posso lhe fazer companhia? — Norman perguntou sucinto, mas com clara intenção de conversar com Ray. Apenas deu de ombros, afinal, não havia motivos para fugir de seu amigo e sua noite não poderia piorar.

À medida que se aproximava de onde estava, Ray se acalmava e tentava esclarecer sua mente, buscando consertar sua compostura. Em pouco tempo, Norman sentou-se ao seu lado, quase ao ponto de encostar os ombros, alternando entre analisar sua feição e a paisagem.

— Nunca entendi seu apreço por essa poluição visual e luminosa — Norman comentou, a princípio, perdendo seu olhar em algum ponto aleatório — Preferia a vista das estrelas lá em Grace Field. Era um mundo horrendo, mas pelo menos tinha lindas paisagens.

— A paisagem urbana daqui é singular, eu diria. Mesmo sendo poluidora. Não há preferências, mas diferentes experiências. — retorquiu brevemente. Logo tratou de mudar de assunto para o que realmente interessava: — Por que está aqui? — perguntou sem rodeios e, por alguns instantes, Norman pareceu pensar nas melhores palavras. Não demorou para a resposta vir.

— Você está estranho, ultimamente. Nas últimas semanas, está lendo livros por mais tempo do que o comum e hoje está aqui, com insônia. Perguntei-me por qual motivo você não estaria dormindo a essa hora da madrugada, afinal, na grande parte das vezes você é rígido com horários, além de dormir mais cedo durante o inverno — disse calmamente, agora com os olhos azuis fixos em si, o que, aliás, lhe desconcertava pra' caralho — Mas existem exceções, como agora. E geralmente elas se dão por alguma intenção específica sua ou por algo estar lhe perturbando. Então, eu agora te pergunto: por que está aqui? — questionou, curvando os lábios num sorrisinho presunçoso.

Ray apenas revirou os olhos, internamente inconformado com a precisão do amigo. Sentia as mãos suando e não sabia se era por conta do frio ou do modo como o outro o pressionava. Umedeceu os lábios secos.


— Pensamentos demais — respondeu preguiçosamente, optando por algo mais simplista. Norman apenas arqueou as sobrancelhas brancas, à espera de uma resposta mais clara. Revirou os olhos outra vez e prosseguiu: — Estava pensando no quanto as coisas mudaram — finalizou, com uma meia verdade, esperando que Norman entendesse as entrelinhas. Desviou seus olhos dos azuis intensos, não conseguindo olhá-lo por muito tempo; ele o lê como a palma da mão, no fim.

— É verdade. As coisas mudaram bastante desde que saímos de Grace Field — concordou, passado alguns minutos. Surpreendentemente e fazendo seu coração saltar, Norman segurou o queixo de Ray, obrigando-o a olhá-lo para si, ainda à certa distância. Expressava uma nítida seriedade nos traços faciais, contudo, a proximidade e a intensidade da troca de olhares, pretos nos azuis, desestabilizaram e desconcentraram o moreno, que tentava a todo custo se manter são e não ceder ao desejo de descer seu foco visual. Norman continuou: — Mas já passou tempo demais para isso te tirar sono só agora, não é mesmo? Logo, suponho que não se refere aos acontecimentos que se sucederam. Então, de qual mudança se trata?

Engoliu em seco e afastou seu queixo da mão, que, mesmo enluvada, ainda surtia um efeito razoável em suas estruturas internas. Aquele era o tipo de momento que lembrava o quão era extremamente inconveniente a forma como Norman o lia através das mais simplistas palavras e gestos. Talvez, ele já soubesse dos efeitos que tinha sobre si. Mas, bem, isso não importava. Afinal, lia o Norman tão bem quanto ele o lia.


— Mudança de mentalidade. Nós mudamos como indivíduos desde Grace Field. Nossas relações mudaram e estão mudando. Isso é um fato e é inevitável refletir a respeito. — replicou, parecendo ter convencido parcialmente Norman. Excelente. — Bem, obrigado pela preocupação. E estou realmente surpreso que prestou tanta atenção em meu comportamento ao ponto de ficar perturbado. Ficou acordado por mim? — debochou — Creio que não seja só eu o perturbado com algo e com certeza quer chegar a algum assunto. E então?


Norman mordeu a bochecha esquerda, entregando-se na reação; como imaginou, realmente ele não veio à sua procura à toa.


— De fato, quero chegar a um lugar — confirma, passando a dedicar o olhar às próprias mãos para retirar as luvas incômodas — Mas eu te conheço suficientemente para saber que está querendo desviar o foco do assunto. Está ocultando, como na época que descobri que você era o espião da Mama. Só que é diferente desta vez... Porque você, na verdade, está fugindo. Abstendo-se de pensar em algo enquanto lê, ao que parece. E não quer comentar comigo. Isso tem três semanas já, precisamente. Achou mesmo que eu não perceberia que está me evitando? — suspirou, levemente irritado. De fato, após tomar conhecimento de seus próprios sentimentos, Ray afogou-se em estudos. Imaginava que Norman teria reparado, mas não que teria ficado tão incomodado ao ponto de ir até ele e dizer pessoalmente.


Ok, não está tão bom o rumo que essa conversa está tomando.


— É claro que estou preocupado. — deu continuidade e voltou o olhar ao Ray, agora um pouco mais desanimado — Não sei se está escondendo algo de mim e não imagino o porquê. Enfim. Se você não quiser falar, está tudo bem. Não vou forçá-lo a dizer nem acho necessário, confio em você, sei que cedo ou tarde me contará. E é meu melhor amigo, afinal...

Tão pretensioso, pensava Ray, que franziu a testa perante as palavras do amigo. Por um instante, viu-se pensativo. Norman havia lhe dado a oportunidade de deixar a conversa para outro dia, o que seria ótimo para si, que ainda estava confuso sobre sua paixão. Entretanto, não queria que Norman ficasse chateado e, além disso, gostaria de saber o que o próprio queria falar consigo, o que provavelmente não acontecerá caso queira adiar o diálogo. É, sua curiosidade fala bem mais alto.


Suspirou, derrotado.


— Façamos o seguinte: você diz o que realmente queria falar e, então, lhe direi o que tem me incomodado. — propôs — É desnecessária toda essa situação.

— É uma troca justa — Norman sorriu e desviou o olhar para o horizonte. Pareceu prender a respiração por alguns segundos, mordendo o lábio inferior, como se estivesse nervoso, mas era algo fora de cogitação na visão de Ray. Norman, nervoso? Não mesmo.

— Bem... Queria falar sobre nossa amizade. — coçou a nuca — Quando estávamos em Grace Field, não pude te conhecer de verdade. Você guardou para si uma porção de coisas por muito tempo sozinho. Isso piorou, quando descobrimos o sistema de fazendas e, depois, nos separamos quando fui entregue — pausou, parecendo pensar no que dizer. — Depois que nos encontramos no abrigo, também mal tivemos tempo de nos abrirmos um para o outro. Quer dizer, naquele mundo foi o tempo inteiro assim, sempre meias verdades e meios sentimentos, nunca tudo, porque precisávamos pensar no que fazer para sobreviver e para sair daquele lugar a todo instante. — riu consigo mesmo. Ray ouvia e fitava-o atentamente, e entendia; era um riso triste. — Depois que viemos para cá, até encontrarmos Emma, também foi assim. Eram preocupações o tempo todo e não tínhamos tempo para nós mesmos.


— Passamos por muitos momentos difíceis juntos, sempre se apoiando. Não entendo onde quer chegar... — Ray retruca, perdido. Norman apenas gesticulou com a mão, pedindo para que não o interrompesse.

— Está certo. O ponto é que nos permitimos realmente nos conhecer só nos últimos três anos, sem viver com medo, vivendo livres. Pudemos, é claro, conhecer a nossa própria família também. Mas nós somos melhores amigos e mal realmente dividíamos o que estava dentro de nós com tudo o que aconteceu. — esclareceu — E enfim. Eu também era mais próximo da Emma antes, por conta de antigos sentimentos... Mas estou feliz de estar mais próximo de você, agora. Era só isso mesmo. — finalizou, respirando aparentemente mais aliviado.

Apesar de todo o discurso — quase que comovente, diga-se de passagem —, Ray só ficou realmente interessado em duas palavras.

— Como assim antigos sentimentos? — perguntou, curioso — Não gosta mais de Emma?

Se Ray não conhecesse o jeito calculista de Norman, teria tido a impressão de que o albino quase que arregalou os olhos de surpresa. Estava realmente ficando louco, decerto...


— Não — respondeu rápido e logo viu que poderia ter passado a impressão errada — Digo, não de forma romântica, como era antigamente — consertou-se — A Emma não é mais a mesma, afinal, embora realmente seja quase a mesma melhor amiga de antes agora. E fui rejeitado no ano retrasado, de qualquer maneira — riu — Não poderia continuar me prendendo a este tipo de sentimento por ela.

— Então se hipoteticamente Emma não tivesse perdido a memória, você...? — não terminou a sentença.


Imediatamente tais palavras atraíram o olhar de Norman para si. Será que ficou muito óbvio que estava incomodado com aquilo? Agh, definitivamente não deveria ter começado essa pergunta, puta merda.

— Bem... — Norman se recobrou, as sobrancelhas franzidas, ainda meio sem reação — Primeiramente, creio que Emma não retribuiria meus sentimentos, porque ela me via como família, sabe disso tanto quanto eu. Depois, se eu fosse rejeitado, teria feito o mesmo que estou fazendo agora — umedeceu os lábios — Mas por que...


— E, de repente, com a rejeição, você consegue superar esses sentimentos? Quer realmente que eu acredite nisso? — interrompeu-o, assumindo um tom sarcástico. — Eu lembro como você gostava dela e lembro de tudo que ela fez por você. Sei que é grato e gosta da Emma pelo jeito altruísta dela. E ainda lembro quando encontramos ela sem memória! Você estava com ela todos os dias. Algo mudou e duvido que foi por ter sido rejeitado — articulou, pouco convencido das palavras de Norman. Estava praticamente entregando como se sentia, mas quer saber? Foda-se.

— Sim, algo mudou... — disse baixo, ainda com serenidade, embora um pouco incomodado com o tom de voz de Ray. Parecia que Ray estava discutindo consigo, extremamente transtornado, e não entendia bem o porquê; estava começando a se sentir mal com o caminho do diálogo. Suspirou, vendo que não tinha saída, e concluiu, atentando-se à reação do outro: — Eu estou gostando de outra pessoa.


— Ah.

A surpresa foi tanta que Ray não conseguiu formular nenhuma frase. Pensou em várias possibilidades, imaginando que a mais provável seria a de que Norman ainda gostasse de Emma, mas jamais considerou aquela. Não fazia sentido. Como diabos ele...


— Você deve estar se perguntando como não percebeu, imagino — disse Norman, rindo da expressão de confusão do amigo. Olhando com mais atenção, as bochechas pálidas de Norman agora pareciam levemente coradas. Provavelmente do frio, é claro — Acho que consigo ser bastante discreto, quando quero. Enfim. Qual é a dessa reação?


— Só fui pego um pouco de surpresa, nada demais. De qualquer modo, sua vida amorosa não me diz respeito e você sabe o que faz — um pouco? Estava MUITO surpreso.

Norman sorriu, discreto, vendo o apoio indireto nas entrelinhas das palavras.

— Entendo. Só não imaginava que ficaria tão incomodado sobre a Emma. Você não dava tanta importância a esse lance de sentimentos até um tempo atrás... — murmurou pensativo, estranhando o comportamento do moreno. Até que veio uma ideia à mente — Não me diga que está com ciúmes! — brincou, rindo.

Instantaneamente, Ray ruborizou e virou a cara para o lado oposto. QUE ESTÚPIDO!

— Está mesmo com ciúme? — Norman questionou, vendo que Ray não respondeu e escondeu a cara. Que fofo. Riu e passou o braço por trás do pescoço do mais velho, quebrando qualquer distância que existia num meio abraço. — Não se preocupe. Você sempre será uma das pessoas mais importantes para mim, Ray.

Se a intenção era fazer o cérebro de Ray entrar em combustão, Norman conseguiu. O súbito contato físico e a declaração fez com que ambos ouvidos ficassem completamente vermelhos. Seu coração batia alto e era difícil pensar com clareza. Entretanto, tinha que se manter lúcido ou não poderia encerrar aquela conversa.


— Agora, está na sua vez de cumprir o trato, certo? — Norman sorriu e encarou Ray, curioso — O que está lhe incomodando?

— Eu... — Ray tentava pensar, mas era difícil com aquela proximidade das faces. Era uma distância adequada entre amigos normais certamente, mas, para sua situação, era meio complicado. Mordeu o lábio inferior e resolveu se entregar: — ... também estou gostando de alguém. — respondeu. Agora a merda tá' feita. Observou Norman, por um segundo, demonstrar abalo, porém, logo a feição se recuperou. — E esses sentimentos estão perturbando meus pensamentos — suspirou — E já que você não quis falar de quem gosta, creio que seja justo eu também não falar.


Certo. Ainda não precisava confessar, não é mesmo?


— Então, façamos um segundo e último trato por hoje — Norman sugeriu, aparentemente sério. — Eu digo de quem gosto e você diz de quem gosta. Assim, não haverá mais segredos entre nós. Não precisa ser algo estressante. — explicou.

— E se eu quiser recusar? — questionou. Teria que se sujeitar à rejeição logo hoje? Assim é que não iria conseguir dormir mesmo.

— Bem... Eu digo então. — O quê? Não entendeu absolutamente nada, sem reação. Sua cabeça estava entrando em um quase colapso. O que diabos...?


Norman apenas se aproximou de sua orelha, como se fosse dizer um segredo. Ray estava suando frio. Não queria saber quem era a nova dona dos sentimentos de Norman, no fundo. A respiração quente do amigo batendo em seu ouvido só o deixou mais nervoso; só conseguia praguejar mentalmente, odiando a si mesmo por ter deixado chegar àquele ponto. Até que escutou o sussurro:


— Eu... Gosto de você, Ray.


[II]


Norman logo afastou-se, para poder ver a reação de Ray.


Planejava desde o início da conversa confessar-se ao moreno, já que não conseguia guardar mais o sentimento para si, mesmo que disfarçasse muito bem. Entre várias enrolações, no fim, finalmente o fez; e seu coração batia aceleradamente, com grandes expectativas. Estava nervoso, as mãos suando, mas, de alguma forma, estava mantendo seu semblante de sempre, sem transbordar pela expressão sua paixão efervescente pelo amigo, mesmo que agora dita em alto e bom som.

Esperava a segunda rejeição de sua vida, entretanto, só conseguiu enxergar os olhos arregalados do amigo, não transparecendo nem resposta negativa nem positiva.


— Creio que faz mais de um ano e meio... Quando nós estávamos discutindo sobre a teoria da mente ser energia e ser capaz de moldar a realidade, reparei na forma como dizia com tanta curiosidade e uma sutil paixão sobre aquilo. — soltou um risinho — Você não percebe, mas sempre foi assim sobre tudo, desde quando éramos crianças. Sempre teve essa fome de conhecimento, numa busca incessante pelo desconhecido de todo tipo. Numa busca incessante de aprimorar e expandir o próprio conhecimento limitado. Nisso, nós somos bastante semelhantes. E... É bom ter com quem dividir essas coisas. E tudo, também. — virou o rosto para não olhar para Ray, novamente mordendo a bochecha para conter sua agitação. Ah, que constrangedor! Realmente não estava preparado para isto...

Dado alguns minutos de silêncio sepulcral, sentiu mãos geladas em cada lado da bochecha; quase que ofegou com o mero toque. Novamente, era olho no olho; aquela intensidade lhe tirava os sentidos, por vezes. Ray continuava inexpressivo, o que dificultava a leitura facial e preparar-se para a possível resposta. A ansiedade o estava matando. Quer dizer, obviamente pensou em todas as probabilidades antes de agir — as piores situações possíveis, no geral — e devia estar mais centrado ali. Mas, naquele momento, qualquer preparação psicológica fora evaporada e...


— Você está realmente falando sério? — Ray perguntou, circundando com o dedão a bochecha esquerda num carinho singelo. Se aquilo era alguma técnica hipnótica, estava fazendo um grande efeito em si.

— Estou. — respondeu firme e simplista. Entregando-se ao calor do momento, inclinou a cabeça e semicerrando os olhos, apreciando o afago, por pouco, segurando o suspiro. Agh, o que estava fazendo?, repreendeu-se. Nem sabia se era recíproco. Foco! — E... Quanto a você?

Ray suspirou pesadamente. As respirações misturavam-se, dificultando qualquer tipo de raciocínio muito preciso. Precisava saber urgentemente. Precisava da resposta.


A resposta não veio em palavras. Ray, lentamente, colou suas testas e o olhou nos olhos, antes de relaxar e fechá-los. Automaticamente, fez o mesmo, sem sequer pensar. As respirações quentes colidiram e seu bpm encontrava-se bem acima do normal; porém, sabia, não teria uma taquicardia realmente. Na verdade, não conseguia pensar em mais nada; tudo sumiu.


E seus lábios, por alguns milésimos, se tocaram.


Aquele contato tão curto foi o suficiente para passar uma corrente elétrica por todo seu corpo por meio de suas sinapses; seu cérebro, no entanto, continuava um branco. As faces se afastaram poucos centímetros, suficientemente para poderem se olhar novamente; Norman ainda esperando a confirmação em palavras, e Ray, tentando organizar o que deveria fazer — mesmo que não houvesse muito a ser dito ali, naquele instante.


— Ray...? — chamou a atenção, buscando uma explicação concreta para aquilo. Tentava não se antecipar numa comemoração interna; Ray era Ray, então, ele lhe diria claramente o que aquilo deveria significar.

— Norman, eu... Também gosto de você — soltou de uma vez, fazendo uma expressão dolorida, nitidamente porque admitir em voz alta custava um pouquinho de seu orgulho. Ao mesmo tempo, suas bochechas estavam levemente ruborizadas pela situação; ali, viu-se ainda mais apaixonado. Após, enfim, absorver a informação, Norman riu nasalado, feliz e quase que bobo.

— Isso foi... Inesperado — comentou, divertido. — Como não percebi? — perguntou mais para si mesmo, revisando mentalmente todo o comportamento de Ray nos últimos meses. Fora as três semanas que antecederam, não havia notado em nenhum momento qualquer mudança de hábito ou indícios da parte do outro.


— Da mesma forma que você, também consigo ser discreto. — rebateu com um meio sorriso convencido. — Mas como vamos proceder? — questionou. O que os dois seriam, agora?


Norman pegou o rosto de Ray com uma das mãos, afastando a longa franja e querendo apreciar o calor da pele do moreno. Pela primeira vez, não queria se antecipar e pensar naqueles detalhes naquele exato instante, de fato.


— Podemos deixar isso para outrora — sorriu. — Não precisamos pensar em nada além de aproveitar a companhia um do outro agora. — disse por fim, logo aproximando-se novamente para beijar Ray, que cedeu instantaneamente ao contato. Era só o segundo selo, mas, honestamente, já encontravam-se viciados em saborear aquela quentura e o gosto de ambos misturado.

Bom demais, Norman pensava consigo mesmo, enquanto intensificava o ósculo e enfiava a mão entre os fios negros. As línguas, inexperientes, ainda se conheciam com calma, apreciando o sabor uma da outra. Ray amparava-se abraçando o pescoço do albino com um dos braços, colando mais e mais os corpos, e Norman, guiado pelo mesmo desejo instintivo por maior proximidade, espalmou o final da costa morena, ainda por cima do agasalho, apertando o outro contra si. Isto estava começando a ficar deveras perigoso e quente.


Finalizou o toque caloroso com uma delicada mordida no lábio inferior de Ray, esfregando ainda os narizes. As respirações estavam descompassadas, tal como seus corações, e não queriam, de modo algum, afastar-se para perder aquela sensação. Entretanto, as frentes frias cada vez mais fortes mostravam-se um verdadeiro obstáculo.


— Vamos entrar — Ray sentenciou, ainda apreciando o calor do outro — Acho que não terá mais nada que tire meu sono por hoje — enunciou, curvando os lábios num pequeno e sincero sorriso.

— Vejo que será eu quem perderá o sono agora pensando em você. Serei obrigado a não te deixar dormir. — Norman brincou, depositando um último selo demorado nos lábios do outro antes de descer do assento e estender a mão para aquele que seria seu quase namorado. Ao mesmo tempo, encontrava-se pensando em como aquilo tudo era muito louco; estava vibrando internamente com o que estava sentindo. Pensando em como o calor de Ray lhe acalentava e fazia todos seus pensamentos evaporarem e em como ambos se complementam em todo o resto quando estavam frente a problemas e o que quer que fosse. Sim, era isso: eram como complementos.

Paixão. Era um sentimento instável, repleto de incertezas, certamente. No entanto, valia a pena. Valia a pena cada segundo para sentir aquele sentimento de que não precisava de mais nada no mundo além da presença um do outro; não se tratava de dependência, contudo. Tratava-se de complementar-se. De simplesmente estar e existir, sem precisar desejar mais nada.


Tinha suas explicações científicas, mas sentir? Era algo inefável. E, talvez, fosse estúpido entregar-se a emoções tão volúveis e frágeis. Tinha completa ciência disso, porém, não se importava. Realmente não se importava. Só queria viver. E isso importava.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.