A garoa tinha dado trégua afinal, de modo que era possível sair do lar com um pouco mais de conforto. O sol, já não muito tímido no céu, iluminava as pequenas poças e paralelepípedos ainda úmidos no chão, e mesmo que muitas pessoas não considerassem o melhor clima para caminhar pela cidade, nada impediu que Beatrice D’Angelo fosse em busca de seus aguardados materiais de desenho.

Sim, o frio da brisa incomodava seu nariz e ela não era adepta a andar com pressa, mas o que poderia fazer? Os carregamentos de produtos importados e demais mercadorias costumavam ser feitos no começo do dia e, naquela altura, as aquarelas já deveriam estar expostas na vitrine ou acima do balcão, esperando que Beatrice pusesse suas mãos nelas. Poderia ter ouvido o conselho da mãe e esperado que seu irmão mais velho trouxesse quando voltasse de uma atividade qualquer que executasse naquele dia, ou então que solicitasse a entrega assim que possível. Mas não, a jovem dama não iria esperar um segundo a mais e dar a chance do modesto estoque acabar. Aquela marca foi extremamente elogiada pelo dono da loja e Beatrice até conferiu obras feitas com a tal tinta, apaixonando-se num instante. Ademais… Não fazia nenhum mal caminhar um pouco e desfrutar um leve sabor de liberdade, mesmo que levasse uma acompanhante consigo.

Por vezes invejava os irmãos. Não tinham necessidade de justificar suas idas e vindas, muito menos levar acompanhantes a todo lugar, salvo — é claro — se fossem cortejar outra dama. O mais velho, por ter herdado recentemente o título de marquês de Camugliano, muitas vezes viajava para a Itália e quem sabe o seu irmão mais novo seguisse o mesmo caminho. Beatrice jamais poderia fazer tal coisa, ao menos não sem eles.

E ela sentia falta de casa. Lá era seu lar até três anos atrás, quando seu pai faleceu e sua mãe optou por retornar a Inglaterra, seu país natal. Sentia falta do sol, do idioma, da comida...

Portanto, não havia culpa em aproveitar a oportunidade de sair um pouco com sua acompanhante — uma criada um pouco mais velha que ela e demasiadamente emburrada pela pressa — só para ter a sensação de poder atravessar aquela cidade quando bem entendesse e como bem entendesse.

— Ora, você não está cansada, está? — Beatrice provocou de leve, ajeitando os cabelos castanhos em seu penteado. Sabia que a criada em nada aprovava seu comportamento, fosse pela falta de elegância recatada, que lhe exigia delicadeza, fosse pelo perigo de sujar as barras de seu vestido. No entanto, poderia lhe fazer um agrado pela paciência. — Sei que gosta dos bolos da confeitaria Butler tanto quanto eu e seria interessante caso entregasse algo fresco em casa hoje, não acha?

A criada virou o rosto brevemente para esconder o rubor, e depois — notando que tal reação era rude — voltou seus olhos para Beatrice.

— Se a senhorita acha…

A jovem dama sorriu. Não se acanhava tanto com a criada ao lado quanto ocorria ao interagir com outras pessoas e na realidade pensava que as duas poderiam ser amigas muito mais próximas se não levassem vidas tão diferentes. De qualquer modo, o bolo de maçã a deixaria mais leniente com suas pequenas contravenções… Sem falar que a própria Beatrice muito ficaria satisfeita com um pedaço acompanhado de chá.

Adentraram a loja, que não passava de um pequeno prédio ao meio do quarteirão com vitrines delicadas e pintura na cor verde. O cheiro da madeira dos móveis, das tintas e verniz sempre deixavam a jovem extasiada por um breve instante e naquela vez não foi diferente. Entrou, ouviu os cumprimentos do lojista e lhe respondeu enquanto fechava os olhos para inspirar o aroma. Ao abrir as pálpebras, esperava encontrar a figura usual do senhor Beaumont atrás do balcão, com aquele seu sorriso receptivo que lhe evidenciava as rugas, e qual não foi sua surpresa ao enxergar uma outra cliente ali, com as mãos enluvadas sobre um fino estojo de aquarela.

Justamente da marca que viera comprar.

Os olhos verdes de Beatrice encaravam ora o estojo, ora o rosto da moça que o segurava. Sua boca estava levemente aberta, num suspiro surpreso e tenso.

A moça era uma dama assim como ela e suas características eram um tanto familiares, embora Beatrice tivesse certeza que nunca a tinha visto. A outra era alta, de cabelos de um tom loiro pálido e uma postura reticente. Mas, por trás de uma expressão neutra — quase melancólica — Beatrice podia enxergar um quê de astúcia.

Ela era a filha de Lady Berkshire. Tinha se mudado para Londres há pouco tempo junto ao irmão, e era a primeira vez que encontrara-se com ela pessoalmente, apesar de já ter ouvido um pouco dela. Diziam que ela era parecida com o irmão e certamente ela era parecida com a mãe.

Foi a voz do senhor Beaumont que a despertou de seus devaneios.

— Veio cedo, senhorita D’Angelo.

— Eu… — Engoliu seco, tentando forçar um sorriso. Não pensava que de fato seria obrigada a disputar pela mercadoria e na realidade já aceitava sua amarga derrota. — Eu vim buscar a aquarela. Se ainda houver um estojo disponível, é claro.

— Ora, imagine se eu não iria reservar para uma das minhas melhores clientes!

Ela levou um segundo a mais para falar e quase sua criada pigarreou forte para lembrá-la de que era educado responder logo.

— Sério? — Aproximou-se do balcão. — Ah, muito obrigada.

— Eu vou pegá-lo nos fundos. Um momento, senhoritas.

Com uma breve referência cortês, o lojista se ausentou, deixando as três mulheres. Alguns minutos se passaram e a criada de Beatrice mantinha-se afastada de sua senhora, somente encarando os produtos com vago interesse. Já a moça loira, mesmo que silenciosa, parecia olhar Beatrice com atenção.

Talvez tivesse notado o pânico exagerado nela, ao encarar antes o estojo de aquarela como uma mãe observaria o filho se afogar sem poder intervir.

Beatrice apreciava sua capacidade de ser articulada e culta, entretanto as palavras escorregavam em sua língua em momentos de grande exaltação ou constrangimento. Não era raro voltar ao seu idioma materno, o italiano, ou então manter-se em um silêncio incerto.

Exatamente como assim acontecia até a moça comentar:

— Será minha primeira vez usando aquarela.

— Oh. Bom, eu… Eu sugiro treinar um pouco em um papel à parte antes. — Beatrice sorriu, optando por ser solícita e delicada. E é claro, era ótimo saber que mais alguém da sua idade compartilhava dos mesmos passatempos. — Pincéis macios são melhores também.

A moça sorriu e Beatrice soube naquele instante que o breve constrangimento tinha ficado para trás.

— Meu nome é Margot Berkshire.

— Beatrice D’Angelo. E minha acompanhante é Violet Smith.

Ao ouvir seu nome, a criada recobrou a atenção e se aproximou rápido, adiantando-se em uma mesura leve.

— É um prazer.

O senhor Beaumont retornou antes que pudessem desfrutar de uma conversa mais profunda e logo entregou à Beatrice um estojo igual ao de Margot. Geralmente, os estojos eram um tanto grandes para se segurar com apenas uma mão, e eram feitos de madeira pesada, tornando-se um tanto incômodos para levar ao parque ou quaisquer outros lugares. Continham ainda outros materiais de desenho além da aquarela.

Não era impossível carregá-los, mas Beatrice viu apenas uma vez na vida uma caixa com uma confortável alça ao lado, igual uma maleta. Aquele estojo, entretanto, era de uma madeira leve e com divisórias para um total de dezesseis cores. E seria possível? Havia uma parte interna com porcelana, para que fosse possível misturar os tons sem necessitar de outro recipiente.

Era perfeito.

Enquanto Beatrice examinava o belo material de pintura em suas mãos, Margot acertou o pagamento de suas compras e pegou seu pacote meticulosamente organizado numa caixa. O lojista ofereceu-se para carregar até a porta, ainda que a carga não fosse demasiadamente pesada, e foi só então que Beatrice notou que não havia nenhum acompanhante com a senhorita Berkshire.

Esta, por sua vez, afastou-se em direção à saída e de repente parou, virando-se para Beatrice.

— Acredito que já tenha sido convidada para o evento que minha mãe organizou ainda nesta manhã… Eu não estava empolgada em comparecer, mas adoraria ver um rosto familiar. Quem sabe possamos falar mais de pintura, não?

— É claro, é claro.

A porta da frente se abriu, revelando um homem de cabelos claros e um casaco azul. Após um cumprimento rápido — e não muito interessado — aos presentes, ele se direcionou à Margot:

— Irmã, já terminou seus assuntos? Estamos atrasados.

— Sim, já estou indo. — Com uma última mesura, Margot se despediu de todos com pressa.— Até mais, senhor Beaumont! Senhorita D’Angelo, senhorita Smith.

Beatrice a observou sair da loja com curiosidade. Ela costumava ser receosa em eventos sociais, tímida como uma borboleta, embora não se achasse tão graciosa quanto. O fato é que agora vislumbrava um motivo para ir ao evento de Lady Berkshire, ao qual tinha sido convidada, mas que Beatrice não tivera um pingo de ânimo para comparecer. No entanto, o começo de uma amizade era sempre bem-vindo e, infelizmente, o bolo de maçã de sua criada Violet ficaria para outra ocasião.

Naquela mesma manhã, em uma das maiores propriedades de toda Londres, olhos tão azuis quanto o mar abriram-se para contemplar mais um dia. Embora o céu não estivesse tão ensolarado quanto ela gostaria, a brisa suave que invadia seu quarto através da fresta da janela fora suficiente para que Madelyn julgasse o clima digno do evento esplêndido ao qual fora convidada. Ela bocejou, esticando os braços na direção do teto. Os lençóis de linho e o colchão macio insistiam que ela ficasse por mais tempo, mas ela não poderia perder o desjejum organizado por Lady Berkshire. Aquele evento prometia ser memorável e qualquer dama da sociedade que dispusesse de alguma importância estaria lá. A noite lhe fora deveras agradável e, embora tencionasse pedir um bis, Madelyn se levantou, enrolando o corpo despido num robe tão branco quanto as nuvens do céu. Com um sorriso satisfeito, ela olhou por cima do ombro para os dois corpos estirados na cama de dossel, antes de fechar a porta atrás de si e entrar no quarto vizinho, onde sua criada a aguardava.

O seu banho já estava pronto e, embora a garota se sentisse inclinada a passar horas deitada sob a água morna, ela tinha pressa e, portanto, não dispensou muito do seu tempo na ação.

— Não deseja se arrumar em seus próprios aposentos, senhorita?

Ela perguntou, incomodada com as visitas que ocupavam o quarto de Madelyn. Sempre que o Duque de Marlborough partia, ela dava as boas-vindas à vida boêmia em grande estilo, para o desgosto da serviçal.

— Ah, não. Gosto deste aqui. — Ela sorriu, virando-se para a criada. — Penso até que ele poderia servir como closet, o que acha, Rose?

— Parece-me uma boa ideia.

A criada riu, enquanto penteava os cabelos negros da garota. Um dia, essa esbórnia será a sua ruína, pensou, mas manteve os lábios fechados, enquanto arrumava as longas madeixas em um coque apertado. Ela quis falar — alertá-la de que, mesmo que fosse cuidadosa, há coisas que ela não pode controlar, como a língua dos criados — mas não cabia a ela sugerir como Madelyn deveria viver a sua vida, embora temesse pela honra de sua senhora.

— Gosta deste rouge, senhorita? — disse, enquanto aplicava a cor rosa suavemente em suas bochechas.

— É lindo, Rose! As outras garotas sentirão inveja, estou certa — ela vibrou, levantando-se para admirar o vestido azul-claro que a criada trouxera.

— É muito gentileza, muito obrigada, senhorita.

— Ah, Rose! Creio que eu já tenha permitido que me chamasse pelo nome — disse. — Papai já tornou a viajar.

A mulher concordou acenando suavemente com a cabeça, enquanto a ajudava a se vestir.

— Espero que Jasper não tenha se atrasado, novamente. Ele prometeu levar-me nos jardins de Vauxhall esta manhã.

Ela saltitou, impaciente para o início da temporada. Ela adorava as festividades, mesmo que suas alegações fervorosas de que não estava pronta para o seu debute e sua insistência em pedir que o irmão advogasse em seu favor sugerissem o contrário. Para o seu deleite, a jovem conseguira adiar a sua apresentação à sociedade em mais um ano. A garota não poderia estar mais satisfeita, afinal, sempre julgara poder aproveitar melhor os divertimentos como uma moça solteira fora do mercado casamenteiro.

— Você está linda, Madelyn.

Rose sorriu, e foi retribuída com uma visão dos dentes perfeitamente brancos de sua senhora, antes que ela descesse as escadas tão rápido quanto uma ventania. Assim que ela chegou a sala de estar, um rosto a encarou com um olhar de reproche.

— Desta vez, foi você quem se atrasou. Infernizou-me por séculos por causa deste evento — resmungou.

— Foram apenas cinco minutos, não seja bobo.

Ela o encarou com um sorriso que derreteria até a maior das carrancas, envolvendo o seu braço no dele, enquanto caminhavam até a carruagem que os levaria para o café da manhã organizado por Lady Berkshire.

— Está animada?

O homem de cabelos castanhos escuros desviou o olhar da janela para o rosto suave e delicado da irmã. Entretanto, ainda que a fitasse diretamente, o marquês parecia estar a milhas de distância.

— É claro! Adoro ver todas aquelas pessoas se esforçando tanto para fingir que se suportam — gargalhou, alisando a saia do vestido. Ela via graça na forma como suas vidas inteiras pareciam depender da aprovação de outrem, mas não era esta a sua única motivação. Além do mais, Madelyn pura e simplesmente gostava da energia alegre e festiva que preenchia Londres e, mais que isso, gostava de ser parte dela.

— Você faz o mesmo… — Jasper retrucou, com um olhar divertido, enquanto a irmã brincava com os inúmeros anéis que ornamentavam seus dedos.

— Ah, não faço! Apenas faço bom uso de minha educação, como você — Madelyn tornou o seu olhar para ele, encarando-o com a intensidade de um polígrafo. — Mas diga-me, o que ocupa os teus pensamentos com tanta tenacidade esta manhã?

— Negócios… — murmurou, passando a mão pelos cabelos levemente ondulados, incapaz de segurar o olhar da irmã.

— Mentiroso! Posso ver em seu rosto que está me escondendo algo — acusou, ao que o homem respondeu revirando os olhos castanhos. — Não hei de força-lo a revelar seus segredos, Jasper, mas eu sempre sei quando está a contar-me caraminholas.

— Pois bem…

— Não me diga que é uma mulher! Homens são tão tolos… — Madelyn suspirou, com um semblante ligeiramente decepcionado. O irmão sempre agia como um paspalhão quando apaixonado e, pior que isso, esquecia-se dela. Ela não se orgulhava de seus ciúmes, mas não podia evitar.

Quando crianças, costumavam proteger um ao outro. Acobertavam-se depois de suas travessuras, mesmo que a cumplicidade os fizesse ganhar um castigo mais severo. A garota se lembrava bem de quando o irmão a ajudou a subir em uma das árvores mais altas da propriedade da família e, quando estava prestes a sentir a luz do sol em seu rosto, seu vestido enroscou-se num galho e ela despencou em queda livre. O médico garantira que foi por milagre que Jasper tenha escapado com os ossos intactos, visto que o garoto colocara-se entre Madelyn e o solo. Levou como lembrança do tombo um corte profundo no braço direito, enquanto o irmão tivera de ficar longe de seus amados cavalos por um mês inteiro.

— Jasper, você…

— Chegamos!

O Marquês de Blandford suspirou aliviado, descendo da carruagem num salto. Ele se virou, oferecendo a mão à Madelyn, para que ela o encontrasse no solo. Mas, assim que viu uma jovem magra e baixa se aproximar da irmã, inventou uma desculpa esfarrapada e fugiu na direção dos nobres que se amontoavam.

— Bom dia, Lady de Loughrey. É um prazer revê-la. — Uma garota de cabelo castanho claro e franjas a cumprimentou, aliviada em ver um rosto familiar.

Embora tivessem personalidades opostas, Cecília apreciava poder se esconder sob a expansividade de Madelyn, uma vez que a garota possuía em excesso o dom que lhe fora negado, a comunicatividade. A jovem sabia conduzir uma conversa com a mesma habilidade que um maestro ao conduzir uma orquestra, mantendo o centro das atenções longe de Cecília e, com isso, os comentários desagradáveis sobre sua mudez.

— Ah, olá. Como vai? Foi você quem desenhou este modelito? — Ela sorriu, admirando o vestido rosa claro, com bordados intrincados. — Está divino!

— Lady de Loughrey! Por favor, fale baixo!

Cecília sussurrou, irritada. Embora tivesse na costura uma de suas maiores paixões, uma dama de seu status social jamais poderia ser conhecida por seu talento para a confecção de roupas. E, apesar de Madelyn não ser conhecida por ter uma boca grande, Cecília estremecia sempre que se lembrava de quando a nobre a pegara de surpresa, escondida, desenhando o seu próprio vestido para o próximo baile da temporada social.

— Se me conhecesse um pouco melhor, saberia que eu sei ser muito discreta.

Madelyn abriu um sorriso travesso, mas a outra apenas estreitou os olhos. Sua criação não a favorecera com o conhecimento necessário para que compreendesse as insinuações da nobre ao seu lado, mas tampouco se importava. Cecília era uma jovem taciturna e que apreciava em demasia a própria companhia. Na grande residência dos Lorde e Lady de Winter, não era incomum vê-la buscar alento na sala de desenhos ou na cozinha, mesmo que o pai não poupasse esforços na tentativa de desencorajar a moça.

— Eu aprecio a sua discrição. — Ela sorriu, olhando ao redor de si, como se buscasse por algo ou alguém; ou, talvez, buscasse por algum lugar. — Bem, eu preciso…

— Precisa de espaço, eu suponho.

Madelyn pressupôs, observando a expressão perturbada da garota. Seus olhos eram de uma singularidade extraordinária: Cecília ostentava olhos grandes e verdes, exceto pelo olho esquerdo, que dividia a cor de esmeralda com um tom de chocolate. A divisão se fazia de maneira tão perfeita que parecia ter sido desenhada com uma régua.

— Você já deve estar cansada de fingir que gosta de interagir com toda essa gente, pobrezinha — disse, com um sorriso gentil. — Com a sua pontualidade impecável, ouso dizer que você chegou junto à nossa anfitriã.

— De fato…

A temporada social era particularmente desagradável para Cecília, que era dona de uma timidez inveterada. Para os poucos que tinham o privilégio de vê-la desabrochar, a garota tinha uma personalidade bem-humorada e alegre. No entanto, ela ainda via em seu caderno de desenhos a melhor das companhias.

— Eu sei onde você pode se esconder e, talvez, criar mais um de seus maravilhosos vestidos — sugeriu, arregalando os olhos azuis ao imaginar os modelos maravilhosos que surgiriam de mãos tão talentosas. — Por Deus, eu adoraria usar uma de suas peças.

— Não é má ideia. Mas e se…

Cecília sentiu um calafrio ao pensar na possibilidade de alguém vê-la desacompanhada. Ela não arruinaria a sua honra e o seu futuro apenas para fugir de um evento social. Não, não, não valeria a pena. Seus pais ficariam tão desapontados…

— Confie em mim, eu conheço os melhores esconderijos de toda Londres. Será um prazer te mostrar o caminho.

Madelyn a guiou até uma sala privada alugada em nome de sua família, embora soubesse que a garota não se atreveria a pisar ali se estivesse ciente de todos os pecados que os irmãos de Loughrey já haviam cometido naquele aposento.

— Eu te ofereceria a minha companhia, mas sei que prefere ficar sozinha. Sinta-se à vontade. — Ela abriu um sorriso largo, deixando a chave dourada na posse da senhorita de Winter, antes de tornar ao centro do evento. — Saia sozinha, se sentir necessidade, mas voltarei na companhia de meu irmão para buscá-la mais tarde. Assim, não terá de se preocupar com burburinhos.

Enquanto Cecília rabiscava espirituosamente em seu caderno, inspirando-se na decoração opulenta que se acumulava nas paredes, um navio atracou no porto.

A embarcação não era grande e nem havia necessidade de ser, pois transportava poucas mercadorias e a principal função era trazer o dono da empresa, Salazar Roffman, de volta a Londres. O jovem ajeitou o casaco azul marinho e passou as mãos nos cabelos pretos para puxá-los para trás, numa tentativa não muito bem sucedida de arrumá-los. Aspirou bem o cheiro salgado e úmido do porto, focando-se em algo mais do que a sua pura tensão de voltar para casa.

Os mares andavam perigosos de se navegar com a guerra ao sul e os embargos na Europa, mesmo que não houvesse dúvidas quanto à soberania naval do Reino Unido. No entanto, não era a pólvora, o sangue ou o mar turbulento que lhe tiravam a paz, e sim o inevitável reencontro com sua mãe, Amélia. Ele poderia apenas focar no andamento no seus negócios de importações e exportações, sem se preocupar com a língua afiada dela, mas sabia que ao fim teria que encará-la.

Deu alguns comandos aos seus subordinados no navio, oferecendo instruções sobre quais caixotes iriam a quais destinos, e quais outros pertences deveriam ser levados à sua casa, próxima ao centro. Suas ordens, como sempre, foram ouvidas com atenção, uma vez que Salazar cultivava um relacionamento cordial com os homens do navio.

E é claro que eles também respeitavam uma promessa de pagamento adequado.

Ele mal tinha saído da rampa de madeira quando avistou uma figura relativamente conhecida, um rapaz de sua faixa etária e com um sorriso parvo no rosto.

— Ora, ora. Se não é meu rival de maior estima… Salazar Roffman. — Ele fez uma mesura teatral, para então lhe encarar mais atentamente. — Não está tão bronzeado quanto achei que estaria depois de todas essas viagens.

A visão dos dois não poderia ser mais oposta: enquanto Salazar vestia azul, o outro trajava vermelho; e se a pele do rapaz era pálida, a do outro tinha o mesmo tom que o ébano.

— Senhor Strawell… — Reconheceu-o e logo os dois puseram-se a caminhar lado a lado para fora do porto. — Porventura eu já deveria lhe chamar por Conde de Stormhold?

— Cale-se antes que se torne verdade. — Retrucou, já um tanto sem humor.

Isso provocou um sorriso em Salazar. Não era nenhum segredo que Frederik Strawell evitava a todo custo ganhar o título — que lhe traria inúmeras responsabilidades — mas para impedir tal honraria, o primo dele, Henry Dashwood, precisava logo de uma esposa e herdeiros. Era o mínimo para transmitir estabilidade e confiança antes de quebrar determinadas tradições na herança do título.

Isso sem mencionar outros dramas mais polêmicos envolvendo a família deles.

— Então o que lhe trouxe a Londres, se me permite perguntar?

Henry me trouxe a Londres. — Ele bufou o nome do primo. — A temporada social logo começará e ele terá dúzias de moças para escolher.

— E não se interessa por nenhuma delas?

— Sabe que me interesso por muitas delas, e é esse o problema. Eu não vim aqui para casar e ter filhos, senhor Roffman, eu vim para evitar que isto aconteça. E, — Ele adicionou. — Também venho a negócios aqui em Londres, assim como você.

— A desgraça só é desgraça se ela vem em dobro.

Frederik riu e deu tapas amigáveis no ombro dele.

— Eu senti falta desse seu sarcasmo brilhante. Pobre Londres com nós dois aqui, de fato. E sabe, seu auxílio seria muito bem-vindo…

Frederik era um boêmio, dado aos jogos de cartas, apostas e bebidas. O destino parecia leniente com seu comportamento, dando-lhe além de uma boa aparência e saúde, sorte e carisma. Nos negócios, ia igualmente bem e trazia produtos autênticos do Oriente, mais as anedotas e contos vergonhosamente indecorosos. Era um viajante libertino. No entanto, se Roffman já não confiava na sua prudência em acordos comerciais, no âmbito pessoal toda e qualquer promessa estava fora de cogitação.

Uma pena, na verdade. Fisicamente, Frederik muito se parecia com seu primo Henry, mas ambos diferiam em interesses e humor.

E Salazar bem preferia a companhia do futuro Conde de Stormhold.

— Poupe-me de seus negócios escusos, Strawell.

— Nem mesmo para ajudar o pobre viúvo Henry Dashwood a conhecer o novo amor da sua vida?

— Eu tenho uma empresa de importações e exportações, não de casamentos.

— Sei, sei. E eu só quero continuar no ramo dos negócios assim como você, e não ficar enfurnado em Stormhold como conde. E para tal coisa…

Os dois estavam já ao lado de uma carruagem que levaria Salazar até o resto do caminho. Ele se virou para Frederik, agora um tanto mais seco:

— Acredito que eu tenha sido claro.

— Pois bem. — O outro recuou. — Ao menos visite velhos amigos, sim? E compareça a algumas festas.

Salazar sabia que também não iria escapar de tais coisas. Ele inspirou fundo, agora já no interior da carruagem, e ficou a encarar as ruas pelas quais passava, as lojas que ainda eram familiares e as casas. Estava um tanto acostumado com o movimento das cidades, uma vez que viajava bastante; e também não poderia reclamar sobre imprevistos, pois o mar estava cheio deles. No entanto, existia algo em Londres que o deixava temeroso. Um marinheiro experiente não subestima a capacidade dos ventos de mudarem de repente e a mesma sabedoria poderia ser aplicada agora.

A temporada social começaria em breve e sua intuição advertia-lhe que teria que lidar com mais coisas do que a parva situação de Frederik Strawell.