Arranha-Céus Flutuantes

Ela me cantará sua canção, eu em minha balsa, passando à deriva; as mulheres se alinharão pelos muros dos jardins de verão cantando, e então cantarei que é passado o tempo do amor?

Doris Lessing

Parte II Arthur

Quando Francis abre os olhos de manhã — são 8h15, de acordo com o relógio digital no criado-mudo que ele olha de relance, quase com o canto dos olhos; mal registrando o fato de que está atrasado — o mundo está em pleno funcionamento. Quer dizer, como não estaria? Mesmo que na última gaveta do guarda roupa fotos se empilhem em infinitas montanhas, o mundo não pararia de girar.

De qualquer forma, quando Francis abre os olhos de manhã, são 8h15, e ele está atrasado para o novo e fascinante emprego. Seu bom e velho grande amigo Gilbert lhe arranjou aquele bico? Aquela atitude desesperada? De qualquer forma, ele estava realmente preocupado, e Francis achou de bom tom não recusar, ou (Gilbert é realmente maluco) ele poderia fazer coisas perigosas, como ligar para algum psiquiatra e insinuar algum tipo de depressão inexistente etc. Mesmo que, ok, ele admite, não seja tão inexistente assim?

(— Novos ares, novas pessoas, e principalmente ficar longe daquele parque decrépito: é isso que você precisa pra melhorar, Francis, e é nisso que o incrível eu vai te ajudar. Totalmente de graça. Vem do fundo do meu coração. — era isso que Gilbert tinha dito e mesmo agora, dois meses depois, Francis quase não conseguia acreditar.)

Ele tem absolutamente zero ideias do que Gilbert pretende que ele faça, mas tem um post-it azul (nunca mais amarelo) com um endereço anotado numa letra corrida, um número de telefone e um nome. Arthur Kirkland. O que isso quer dizer, afinal?

Francis não tem nem noção, e algo na sua alma diz que na verdade ele não vai querer saber.

O que Francis pode falar sobre Arthur Kirkland? Como pode descrevê-lo de forma minimamente satisfatória? Que figura aterradora, exótica é Arthur Kirkland — embora, quanto a parte do exótica, se repreende interiormente. Nunca exótica. Jeanne odiava essa palavra. Seus olhos são verdes, e essa é sua parte mais vulgar. Verde como alguma planta. Alguma planta realmente viva, seus olhos não param nenhum momento, estão sempre analisando, surpreendendo, constrangendo, insinuando. Seus cabelos são loiros e tem as sobrancelhas engraçadas. Quase poderia lembrar a pintora mexicana das figuras de Jeanne, Frida Kahlo, mas ainda não havia chegado nesse ponto, Francis supunha. Ele é baixinho. Bem baixinho. Incrivelmente baixinho. Francis tem certeza, ele é pelo menos uma cabeça mais baixo.

E mesmo assim, toda essa descrição — Arthur Kirkland é totalmente diferente de tudo isso.

Francis chegou exatamente 9h. Bateu na porta com o nó dos dedos, e a porta é de madeira pintada de branco, é legal ressaltar, porque ele está num prédio mediano e todas as portas ao seu redor são marrons. Mas essa na qual ele está batendo? É branca. Bate três vezes até que a dita porta se abra. Escorado no batente está uma figura minúscula, frágil, até; usa uma camisa social azul com os primeiros botões desabotoados e um jeans comum. Está descalço e tem um copo de alguma bebida na mão esquerda. Ele não fala nada, nem bom dia ou quem é você?, apenas faz um gesto que indica que Francis deve entrar e ele assim o faz. O processo dura menos que dois minutos mas é como uma eternidade.

— Você aceita alguma bebida?

— Você tem vinho? — Francis pergunta, sua voz não tem nenhum traço de constrangimento, mesmo quando os olhos verdes fixam-se nele por longos instantes.

— Tenho. — o desconhecido (Arthur?) traz a bebida num copo simples, de vidro. Francis quase acha que poderia ser um desses de requeijão, de extrato de tomate. Arthur parece fazer o estilo. Mesmo assim, o vinho é bom. — Você é meu novo editor, então. — seu tom não é uma pergunta, mas Francis se confunde mesmo assim.

— Seu editor?

— É, meu editor. Gilbert te mandou, não é? Eu preciso de um novo editor, quer dizer, o antigo se demitiu. Admito que posso ser difícil de lidar, às vezes. Quase sempre, tudo bem. Mas o Gilbert te mandou aqui sem nenhuma informação? Zero? Parece típico.

— Zero. — Francis confirmou, e deu mais um gole no seu vinho. Desejou virar a garrafa inteira. — É a minha formação, mas quando ele disse que tinha me arranjado um emprego… Quer dizer, eu pensei numa cafeteria.

— Clichê.

— Leio muitos romances.

— Imaginei. — um suspiro. Arthur está sentado na poltrona vermelha, seus olhos inquietos dentando descobrir quem Francis é, por quê. — Enfim. Eu sou Arthur. Arthur Kirkland. Eu escrevo. Escrevo o tempo todo. 24/7. Nem tudo é aproveitável, mas prefiro pensar que a maioria é.

— Com o que você trabalha?

— Com tudo. Contos, principalmente.

— E o que você e Gilbert querem que eu faça, afinal?

— Seja meu editor. Obviamente. Você está ouvindo o que eu estou falando? — de fato, Francis pensou, seria uma longa manhã.

Eis Arthur Kirkland, jogado no sofá da própria casa, bêbado de vinho caro servido em copo barato. Como acabaram assim, ele e Francis, Francis e ele? Talvez seja esse o mistério. Bateram um papo, entornaram garrafas, deram umas risadas. Inevitavelmente — Francis falou de Jeanne. Aquela que era seu sol e que foi embora para nunca mais voltar, um cigarro apagado no cinzeiro sendo sua memória mais nítida. Para um desconhecido, sim! Arthur lhe fitou com a mais desinteressada das expressões, e então disse aquela que seria a máxima do relacionamento que cultivariam, dali para a eternidade: você não me leve a mal ou leve, se assim quiser mas isso não é da minha conta e eu não quero saber.

Quando Francis foi embora, tropeçando nas próprias pernas, esbarrando nas paredes e correndo o risco de rolar escada abaixo, ele só conseguia pensar que era a primeira vez que alguém o mandava calar a boca de uma forma tão…! Ele estava ofendido. Injuriado, até. Decidiu nunca mais voltar naquele lugar, Arthur que se danasse, não importava o quão bom fosse o vinho ou a necessidade de tocar a vida para sempre, não compensava o abuso, existiam outros vinhos no mundo, isso não era certo?

Mas é claro que seus planos foram frustrados por uma ligação no dia seguinte mesmo, 10h32 de acordo com o relógio que ficava na cabeceira da cama. Francis estava lendo. Era um dos livros que Jeanne deixara para trás, era Kafka, e a cada doze páginas ele compreendia algo como uma, mas ele seguia firme. O telefone tocou e ele atendeu.

— Alô? — disse, sua voz era rouca de sono e cansaço e talvez um pouco de ressaca, mas isso nem de longe pareceu comover a pessoa do outro lado da linha, que imediatamente se pôs a gritar.

— O que você pensa que está fazendo? — era Gilbert, e Francis se achou pouco surpreso. Na verdade, a única anormalidade era a pontualidade. Desde quando Gilbert se daria ao trabalho de ligar para resolver algo assim, tão pouca importância, às 10h da manhã? — Perdeu completamente o juízo? O incível eu— meu deus, o incrível eu— qual seu problema, Francis?

— Não quero ir, não gosto dele.

— E você tem o que, três anos! — um barulho de deboche veio de Francis, porque quer dizer, Gilbert repreendendo alguém sobre se comportar como se fosse uma criança era a maior piada desse lado do mundo.

— Isso não está em discussão. Me ligue depois.

— Não bata o telefone na cara do incrível eu, Francis, não faça isso ou eu vou aí bater na sua cara, entendeu? Você vai se levantar, tomar um banho, colocar uma roupa, sei lá, e ir trabalhar. Você está sendo pago, caralho. Arque com as suas responsabilidades. Tá achando que a vida é fácil?

— Mas—

— Não quero saber dos seus motivos ridículos, Francis, não sou seu juiz ou inquisidor, vá trabalhar. — disse e bateu o telefone na cara de Francis. Simples assim.

Quando Francis volta pro corredor com aquela planta meio morta no canto, portas marrons e tapetes de boas vindas, se impressiona novamente com o quão destoante Arthur Kirkland pode ser desde a entrada da sua casa até sua personalidade e, bom, seus copos. A porta é branca e não há tapete a vista, nem recepcionando nem mandando embora. Francis respira fundo e bate com o nó dos dedos, duas vezes, e demora um minuto inteiro para Arthur aparecer. Quando ele faz isso, Francis está de costas e estava quase indo embora, porque afinal — isso tudo é uma grande loucura, não é?

— Francis Bonnefoy! — ele diz, e algo como sarcasmo pinga da sua voz. Mas, de alguma forma, não é hostil. É algo divertido. Seus braços estão estendidos e ele o convida para entrar, metaforicamente apresentando tudo outra vez. — Deu o ar da graça.

— Eu não pretendia voltar.

— Não achei que você fosse do tipo que se ofende fácil.

— Não achei que eu fosse um tipo, para começo de conversa.

— Todos são um tipo, eu acho. — Francis entra, finalmente, porque ele Arthur lhe dá as costas e se joga no mesmo sofá onde estava embriagado no dia anterior. Há um copo de uma bebida destilada de cheiro forte na mesinha da sala, ao lado de um notebook e uma pilha de papéis. — Mas você voltou, e é isso que importa. Deve checar meu progresso? Eu acho? Ou você quer conversar? Eu prometo: não serei maldoso. — há riso em seus olhos, em seus movimentos, em todo o conjunto que compõe seu corpo e sua alma. Francis realiza, subitamente, que não sabe nada sobre Arthur Kirkland, o escritor, porque passou o dia anterior conhecendo Arthur Kirkland, o cara. E achando tudo muito interessante.

— Você é muito bem humorado. — sua voz, ao contrário, soa cheia de mau humor e acidez.

— Em dias bons, sim! — ele sorri em sua direção, seus olhos brilhantes, brilhantes, brilhantes. — Mas em dias ruins, eu não sei. Quer dizer, não posso me autoavaliar com certeza, mas se eu tivesse que apostar minha vida…

— Se você tivesse que apostar sua vida...?

— Eu não sei, apostaria que eu sou uma droga, insuportável mesmo. — não soa como comiseração, entretanto; soa como uma piadinha juvenil, ou como o movimento da Terra: natural.

— Eu também apostaria. — Francis diz, muito quietamente. Passa o resto da tarde lendo sem parar, até seus olhos ficarem tão cansados que queimam em suas órbitas. Arthur passa o dia todo na sua frente, a distância de dois passos, copos e copos de requeijão cheios de bebida destilada, seus olhos pesados e cansados e os dedos furiosos presos à teclas de notebook. Francis não pergunta o que ele tanto escreve, porque ele tem algo de desesperado em seus movimentos, no modo como relê e, cheio de ódio, apaga tudo. Ao final de um dia todo de trabalho, só uma página sobreviveu àquela matança e ele não deixa Francis ler. Não é para você, ele diz. Francis não insiste. Pega seu casaco e sai sem se despedir.

O corredor é particularmente desolador sem a presença vibrante de Arthur.