Anjos Entre Nós

Capítulo 2 - Um encontro às avessas!


" Todos aqueles que a princípio não são bem vindos, compram seu passe de aproximação apenas com o conhecimento que nos será transmitido..."


Narrado por Gabriel


As estrelas eram as únicas luzes no campo aquela noite. O céu estava limpo, e a lua cheia estava tão clara quanto a luz do sol, essas eram as únicas coisas que podiam me fazer ter certeza de que tudo ainda estava bem nos céus, mas sabe se lá até quando seria assim.

Olhei mais uma vez a extensão do campo onde estava alojado, eu tinha ordens expressas pra permanecer aqui até que fosse a hora certa de partir, eu precisava achar a garota antes dos vermelhos, nenhum de nós conseguia explicar o por que da garota ser tão imune aos rastreadores.

Eu sabia desde o início que seria o escolhido, aliás, era meu nome naquela profecia, meu destino seria diferente daquele que meus irmãos seguiriam, e no meu lugar, qualquer um deles se conformaria com o destino traçado, mas eu não. Não, porque as emoções me afetavam de uma forma diferente deles, algumas vezes o sentimento era tão intenso que lágrimas escapavam dos meus olhos sem que eu ao menos percebesse, em outras a dor me corrompia, era como se eu realmente tivesse um coração batendo em meu peito, mas jamais soube exatamente como era a sensação de ter um coração batendo.

Arcanjo Gabriel! Essa era minha realidade. Completamente distorcida, mas era. Os Arcanjos seriam superiores aos Anjos comuns, mas eu nuca vi diferença alguma entre nós. Era somente mais uma hierarquia imposta por alguém que queria o poder centralizado. E além do mais, eu nunca tive poder de escolha, nunca decidi o próximo passo que daria, e agora eu me via sozinho pela primeira vez, e mesmo sozinho ainda precisava cumprir ordens de superiores. Que superiores? Os Arcanjos não eram os Anjos mais altos?

Nathaniel, um Anjo mensageiro, tinha o costume de dizer que as ordens por ele proferidas, eram ordens diretas de Deus. Eu não acreditava. Eu sempre pude sentir o que o MEU Deus queria pra mim, não eram necessárias qualquer tipo de notificações. Eu acreditava que muitas informações reais se perdiam no meio de uma hierarquia muito maior do que a conhecida por nós.

Sentado naquele campo, não pude deixar de pensar no quanto minha atuação aqui seria importante pra todos nós, mas ainda me perguntava se não me acovardaria diante das palavras daquela profecia. Eu não saberia lidar com pessoas jovens e revoltadas, sendo eu, um Anjo milenar e desconhecedor das besteiras da Terra.

Ainda estava sentado na grama úmida quando a luz atrás de mim se intensificou e desapareceu quase que no mesmo instante.

– Você demorou! Eu já estava entediado aqui! – Disse ainda de costas pra figura iluminada e de Asas abertas atrás de mim.

– É com você agora, estamos todos contando com sua força e sabedoria! – a voz profunda de Nathaniel cortou o ar atingindo meus ouvidos, tantos de nós tinham medo daquela voz, mas era só algo que não me afetava mais.

– E o que eu devo fazer após encontrá-la? – Assim que terminei de falar a luz se intensificou novamente, e eu sabia que mais uma vez ficaria sem respostas.

– Somente encontre-a, logo após saberá o que fazer! – Num Flash, qualquer vestígio de luz havia desaparecido. E mais uma vez uma onda de sentimentos tomava conta de mim. Frustração. Há tempos que a insatisfação me rondava, nem sabia mais pra quem eu trabalhava, ou se como Nathaniel diria, pra quem eu cooperava?

– Deus! Daí-me forças pra continuar e não cair diante de teu Reino!

Eu podia sentir tudo bem mais intensificado aqui. Os sentimentos que me perseguiam nos céus, pareciam tão mais fortes... mas a maior parte das vezes, eram coisas que não pareciam sair de mim e sim algo que fosse absorvido, e de repente eu me sentia tomado e dominado por isso, eu mal conseguia reagir quando isso acontecia.

Ultimamente o que mais sentia aqui era o tal do desespero, pois eu sabia que corria contra o tempo, os Caídos já rondavam a garota, isso era tudo o que eu sabia e era muito pouco, na realidade eu necessitava saber o quão próximo dela eles estavam, e eles são tantos que nem sei por onde começar... talvez explicando quem são os Caídos... Em sua maioria são Anjos das Trevas, nós chamamos de vermelhos os que se rebelaram contra os céus e caíram aqui na Terra, no entanto, nem todos os caídos se uniram as Trevas, só os que queriam vingança além da liberdade.

Nesses dias que passei no campo afastado da cidade consegui detectar algumas energias, mas todas eram deles, parecia que estavam por todas as partes e nada da garota. Mesmo depois de ter cuidado durante anos da pequena criatura, eu já não conseguia mais sentir seu cheiro, e no fundo eu sabia que aquele cheiro não era mais o mesmo. Ela era como nós e agora tudo começaria a se manifestar. Faço idéia o desespero dela!

Ainda me lembrava de seus olhos fixados em mim enquanto a olhava no berço. Era tão pequena, seus olhinhos esverdeados nem piscavam quando eu me aproximava, tinha a pele branquinha e os fios de cabelo dourados. Mas sempre senti algo nela diferente do normal, mesmo sem saber de sua real origem eu podia sentir a energia que vinha dela. Seria sem dúvidas uma mulher de personalidade forte mais tarde. Todos os mestiços se tornavam pessoas fortes e guerreiras durante a vida. Alguns, os mais fortes e centrados deles, se tornavam Anjos menores quando partiam deste mundo, e eu era um desses. Eu e meus irmãos. Mas fomos classificados como Arcanjos por algum motivo ainda desconhecido por mim.

Já vi tanta coisa nesse tempo aqui, mesmo em um campo afastado, coisas que jamais imaginei realmente como aconteciam. Assassinatos, assaltos, estupros... era realmente deprimente a situação em que a Terra se encontrava.

Não conseguia deixar de pensar em meu irmão vivendo aqui. Sentia falta dele, queria saber como era a vida que ele levava aqui, se havia se apaixonado, se tinha filhos, mas a única coisa que me permitiram saber era que não havia se juntado aos Anjos das Trevas. Eu nunca tinha respostas, eu tinha sempre que agir no escuro, e isso me deixava tão confuso, o que também não é nada normal pra um Anjo, por isso tantas vezes pensei em me jogar aqui também. Queria sentir como era a verdadeira liberdade, como era sorrir sem motivo, aliás, era esse um dos motivos da minha fascinação com a humanidade, o sorriso que tinham em seus rostos sem um motivo aparente ou após um abraço ou um beijo... Abraços e beijos... qual o bem que isso fazia aos mortais pra que sorrissem tanto?... isso me intrigava, e eu queria sentir isso!

Mas existia a maldita daquela Profecia, e minha espécie dependia daquelas palavras e, consequentemente dependiam de mim.

Logo após a partida de Nathaniel naquela noite no campo, me senti completamente sem rumo. Jamais tive qualquer contato realmente com a humanidade. É diferente de quando você é designado a cuidar de uma criança, pois você só mantém contanto com a criança em questão, e mesmo assim ainda são raras às vezes em que é necessário manifestar sua presença. Sentia todo meu corpo terreno tremer em expectativa ao que viria. Como agir diante da humanidade? Como me portar diante de olhos tão curiosos, que em qualquer deslize podiam desconfiar da minha real essência?

Meu primeiro passo era encontrar Miguel, um de meus irmãos que também havia sido escalado para uma Missão na Terra, e de acordo com Nathaniel, Miguel ajudaria na minha adaptação no plano Terreno, seja lá como isso aconteceria.

Sai do campo, onde a maior parte dos Anjos que participariam da Guerra estavam alojados, sem saber aonde iria, mas sabia que no fim estaria no lugar certo. E assim, algumas horas depois estava em uma rua bastante escura, e podia sentir claramente a presença atrás de mim.

– Sempre pontual, não é mesmo Gabriel!

– Sempre! Como vão as coisas por aqui Miguel? – perguntei cordialmente quando pude ver sua silhueta através das sombras.

– Monótonas! A Terra já foi mais divertida! Pronto para o início da sua adaptação?

– A idéia é mesmo parecer humano? – Não que a idéia não me agradasse, mas ver Miguel dessa forma, tão humana, o fazia parecer tão frágil. O Miguel Arcanjo que todos conheciam, sempre impôs sua presença somente com seu olhar profundo, e esse que eu via agora parecia tão impotente. Seus cabelos dourados estavam sem nenhum brilho, seus olhos verdes tinham um tom opaco e sua luz parecia nunca ter estado presente em seu corpo celeste. Todo o brilho natural de um Arcanjo não existia ali.

– Sim! E respondendo sua verdadeira pergunta... Sua luz estará com você em todos os momentos, você só aprenderá a camuflá-la. – Aquilo em seu rosto era mesmo um sorriso irônico? – Concorda que isso assustaria os mortais, não é irmão?

– Claro! Mas, não mais do que estou assustado com isso Miguel. Não sei se me enviaram no tempo certo. Não me sinto preparado.

– A profecia dizia seu nome, milhares de nós queriam estar em seu lugar agora. Você deveria honrar o nome de nossa Classe Gabriel, somos Arcanjos e querendo ou não você é um Guerreiro. O Guerreiro da profecia.

– Você jamais me entenderia Miguel, você nunca vivenciou qualquer tipo de sentimento. – Não adiantaria nunca discutir, Miguel sempre fora ‘cego’ no que diz respeito ao nosso destino. Para ele um Anjo jamais deveria brigar com aquilo que está pré-destinado á ele.

– Um Arcanjo jamais deveria sentir qualquer coisa, só é diferente com você, e não me culpe se não consigo sentir nada, só vivo de acordo com o meu destino e o meu legado.

– Pelo menos você conhece o passado de sua classe e de seus antepassados. Como posso seguir um legado que me é imposto se nem ao menos tenho qualquer conhecimento do que me antecede? – novamente um sentimento estranho começava a me dominar, era uma espécie de fúria, seria tão ruim um Anjo sentir raiva?

– Gabriel, você precisa entender! Toda nossa espécie depende de você! Logo após a Guerra você terá todas as suas repostas, por favor, não complique as coisas agora. – Como um Anjo de Luz conseguia agir tão friamente? Por isso me pergunto se os vermelhos eram como eu, se tinham sentimentos, se também cansaram da frieza e das ordens estabelecidas na vida Celeste?

– Podemos pular essa parte e ir direto a essa maldita adaptação? - Perguntei já nervoso com aquele princípio de discussão.

– Sabe que é até divertido ver você fora de controle. – Miguel sabe ser irritante, sem dúvida alguma. – Eu gosto de provocar você, e você sabe disso!

– Tem certeza que não sente nada Miguel? – Não sei ao certo se a expressão dele era de aprovação ou se era apenas seu escárnio natural, mas aquilo em seu rosto me pareceu realmente um sorriso verdadeiro.

– Aprendendo a ser irônico? Isso será de grande ajuda para seu disfarce!

Limitei-me a não responde-lo, pois se bem o conhecia, aquele assunto poderia render horas ou talvez toda nossa noite.

– Vamos! Precisamos alcançar meu alojamento antes do amanhecer. – dizendo isso, Miguel seguiu seu caminho por dentro das ruas escuras da cidade comigo em seu encalço.





– Isso aqui é mesmo um alojamento? – Perguntei a Miguel enquanto entravamos no apartamento minúsculo, sujo e caindo aos pedaços.

– Ninguém vem aqui, é um ótimo esconderijo. Aliás, você já parou pra pensar que vai precisar de um alojamento também?

– Eu não tenho idéia sequer de que passo dar primeiro Miguel. – pude ver perfeitamente quando Miguel me lançou um olhar bem descrente.

– Como é possível? O Anjo Guerreiro da profecia, ser tão cheio de dúvidas e tão medroso? – Isso só confirmava aquilo que eu acreditava, até mesmo Miguel queria aquele posto.

– Se você quer tanto assim meu lugar, pode ficar com ele, porque sinceramente, não me importo com esse Status ridículo que existe entre nossos irmãos. – precisei sustentar seu olhar durante muito tempo. Ha um tempo atrás isso me corroeria por dentro, pois Anjo algum conseguia sustentar tanto tempo o olhar profundo de Miguel, mas se eu era realmente o Guerreiro da Profecia, eu podia lidar facilmente com isso. E me surpreendi quando Miguel baixou seus olhos diante de mim.

– O posto é seu. Nada e nem ninguém pode mudar isso, mas honre seu nome e sua classe. Não se deixe cair Gabriel, e se acha que não conseguirá cumprir seu destino, deixe que os Anjos mais antigos assumam o controle dessa Guerra.

– Muito engraçado Miguel. E você espera que eu deixe a humanidade sofrer por nossos erros? Os mortais não têm culpa da infelicidade de alguns Anjos, e aliás, quero saber do Rafael.

Então o Miguel arrogante e irônico estava de volta. Eu odiava aquele sorrisinho sínico dele.

– Rafael? Porque quer saber dele? – Miguel sustentava toda essa indiferença com Rafael desde que ele havia escolhido sua liberdade, e no fundo eu sabia que Miguel jamais o perdoaria.

– Ele é nosso irmão, quero saber como ele vive aqui.

– Rafael é só mais um mortal sem graça agora. Você não vai querer vê-lo, ele está realmente entediante. – Enquanto Miguel falava, caminhei até a janela do outro lado da pequena sala. A vista dali era até bonita. Era uma floresta, e agora com o sol nascendo, ficava mais linda ainda.

– Agora sei por que você escolheu esse lugar – deixei escapar sem pensar muito.

– Eu não sou o insensível que você pensa. Eu ainda sou um Anjo, por mais que a Terra tenha me afetado durante todos esses anos, a minha essência continua sendo a mesma, repleta de luz.

– Nunca disse que você era insensível, apenas egocêntrico demais. – Ficamos por alguns instantes apenas nos olhando, sempre fomos contrários um ao outro. Pra falar a verdade, nunca nos demos bem, mas agora isso ia além de nossas vontades. Precisávamos estar unidos para continuar nessa Guerra.

– Tudo bem! Vamos parar com essa conversa. Temos que arrumar um lugar pra você, e algumas roupas também. E depois, vou te mostrar como agir para ser um mortal. – Disse Miguel enquanto entrava por uma porta estreita no canto da sala.

– Isso é o de menos, eu quero falar com você sobre outras coisas. Começando pela garota. – Seus olhos se arregalaram, ele sabia que esse era um assunto delicado, tanto pra ele quanto pra mim.

– É só fazer o que a profecia manda Gabriel. Não é necessário mais nada.

– Isso não importa agora, eu preciso saber do paradeiro dela, não tenho idéia de onde ela possa estar. – Vi Miguel me olhar de uma forma estranha e questionadora.

– Como não sabe de nada, você sente as emoções dela e não sabe ao menos onde procurá-la?

– Como assim sinto as emoções dela? – ele sabia! Sabia todas as respostas que eu queria, isso estava estampado em sua cara agora.

– O que exatamente você sabe sobre as coisas que você sente?

– Nada! Eu não sei nada. Mas vou saber agora.

– Acho que falei demais! – era até engraçado ver Miguel nesse estado, meio sem graça e atrapalhado. Via-se claramente que ele estava tentando formular uma desculpa.

– Pode começar a falar, se me disser isso prometo que não peço mais respostas durante um bom tempo. – eu precisava tentar, aos poucos eu teria um quebra-cabeças completamente montado em minha cabeça.

– Tudo que você sente vem dela, vai dizer que nunca percebeu isso? – Miguel estava realmente surpreso com isso. Eu deveria saber que era tudo vindo da garota?

– Nunca percebi, mas agora que está dizendo, parece fazer sentido. Sempre achei que eram coisas que apareciam do nada e sem motivo. – ainda meio desnorteado, fitei Miguel sentado em uma poltrona velha. – Isso é mesmo verdade?

– É o que tudo indica. Olha, Gabriel, eu quero te ajudar. Você é meu irmão e nossa raça depende de você, conte comigo pro que precisar, mas não me faça quebrar regra alguma, não quero fugir do meu destino. – Sua cegueira era mesmo gigantesca, mas não podia recriminá-lo por querer seguir fielmente seu legado.

– Sei que não pode falar mais nada Miguel, e agradeço pela ajuda hoje. Mas acho que preciso seguir sozinho agora. – Disse enquanto caminhava em direção a porta do quarto.

– Leve essas roupas. Você vai precisar delas se quiser se entrosar com os mortais. – Disse me estendo uma bolsa cheia de roupas. – Tem um par de tênis ai dentro também.

– Tênis? – olhei divertido para Miguel, que continuava com seu sorriso sarcástico no rosto – nunca me imaginei usando isso.

– Você já se imaginou alguma vez dentro de uma mulher?

– O que você quer dizer com isso? – Perguntei incrédulo ao meu irmão.

– A Profecia quis dizer com isso, não é?!

– Isso só diz respeito a mim, e o que farei após encontrá-la é problema meu. Não esqueça que não faz parte da nossa salvação o final daquela maldita profecia. – Embora, todos nós soubéssemos que toda Profecia se concretizava fielmente, eu lutava em acreditar que essa seria diferente.

– Se você diz!

Já estava de saída quando senti meu corpo tombar para trás e uma imensa onda de dor me atingir o peito.

– Gabriel! Está tudo bem? – A figura de meu irmão estava completamente distorcida, e só então percebi que lágrimas escorriam pela minha face enquanto eu me encolhia feito criança no chão. – O que você está sentido? – Eu até tentava responde-lo, mas minha voz estava completamente embargada pelas lágrimas. – Gabriel, por favor, me responda irmão. O que está acontecendo com você?

– Eu... não sei... é muita dor... eu – não conseguia mais falar, as minha forças estavam se perdendo, e então, tudo a minha frente escureceu.



Anjos não dormem e nem sonham, mas de alguma forma eu estava fora do meu normal.

Em pé, diante do berço da criatura pequena e esplendorosa, eu via seus olhinhos me fitarem atentos enquanto acariciava suas bochechas rosadas.

– Manoela! Minha pequena, eu preciso tanto encontrar você. Porque é tão diferente de nós? Seria tão mais fácil encontrá-la se tivesse a mesma energia – e como se me respondesse, seus pequenos lábios se curvaram formando um lindo sorriso, enquanto deixava escapar um som suave e gostoso de uma risada.

Deixando de encarar seus pequenos e lindos olhos, percorri rapidamente o quarto lilás onde eu estive tantas vezes alguns anos atrás. Era o mesmo quarto, sem tirar nem por nada. Agora, o que eu estava fazendo aqui? Talvez fosse algum tipo de aviso do meu subconsciente, ou esses sentimentos podiam estar me afetando mais do que deveriam. Mas por causa disso as condições Terrenas podiam me afetar dessa forma? Fazendo até mesmo com que eu sonhasse?

Avistei, em um canto do quarto, a poltrona onde a mãe da pequena se sentava com ela em seu colo nas noites de tempestade e cantava músicas baixinho em seus ouvidos pra que ela se acalmasse, mas nada além da minha presença fazia com que a menininha se aquietasse.

Sem ao menos perceber o que estava fazendo, deixei meu corpo cair naquela poltrona, como se de alguma forma eu precisasse descansar, e ao sentir o conforto do pequeno móvel, fechei meus olhos deixando pela primeira vez meus sentimentos responderem por mim. Nunca me senti tão em paz como me senti nesse momento. O Silêncio da noite, o aconchego daquela macia poltrona, e de fundo a risada da minha pequena menina. Era como o paraíso. Aliás, muito melhor do que o Paraíso. Mas assim que abri meus olhos novamente, me deparei com a parede suja do alojamento de Miguel.

– Você acordou! – disse Miguel de súbito.

– Não Miguel! Eu ainda estou inconsciente! – fiz menção de imitar seu sorrisinho irônico.

– Nossa! Você não fica nada engraçado assim. O que aconteceu com você? Eu ainda estou preocupado.

– Não sei o que aconteceu, só apaguei e voltei a mim agora. – eu confiava em Miguel, apesar de tudo. Mas não queria que ele soubesse da alucinação com a menina, pois isso só faria com que ele me perturbasse mais ainda por causa das palavras da Profecia.

– Talvez eu precise conversar sério com Nathaniel. Também preciso de algumas respostas sérias – disse Miguel se levantando do sofá velho e passando novamente pela porta estreita de acesso ao minúsculo quarto. – Você vai continuar ai, jogado no chão frio e sujo?

– Como se eu sentisse frio – olhei divertido para Miguel antes de continuar – Belo irmão você, nem ao menos serve pra tirar meu corpo daqui.

– Perder meu tempo e usar minhas forças com você? Fala sério Gabriel, você é o Anjo poderoso e Guerreiro da Profecia. Se você morresse por causa de uma insignificante dor, eu questionaria realmente o poder de Deus.

– Você consegue ser irritante, absurdo, exagerado e realistas em apenas uma frase. Como consegue isso? – por mais irritante que ele pudesse ser, noventa e nove por cento das vezes ele tinha razão no que dizia.

– Eu sou o Anjo existente mais velho que os céus conhecem, alguma coisa eu tinha que saber, não é?! – disse revirando os olhos, como se aquilo fosse alguma coisa óbvia. – Você não vai levantar? To começando a ficar incomodado com você ai no chão!

– Na hora que eu estava tendo um ataque aqui você nem ligou – me levantei somente porque seria complicado demais explicar a Miguel o quanto era bom deixar meu corpo descansar.

– O que aconteceu com você enquanto estava desacordado? Você está... sei lá... mais leve e está aceitando minhas brincadeiras. Pior! Você está respondendo a elas – com essa tive que rir, a cara de espanto dele era mesmo real.

– Você quer que eu volte a retrucar tudo o que você fala? Se quiser pode me dizer – disse arqueando uma de minhas sobrancelhas.

– Pode continuar assim. Juro que não falo mais nada.

– Só que existe uma condição pra que eu tente viver em harmonia com você – eu sabia que receberia exatamente aquele olhar. Um olhar meio mortal e raivoso.

– Eu sabia que tinha alguma coisa aí. Qual é a condição? – se Miguel aceitasse minha condição, eu poderia começar a colocar meus planos em prática. Mas primeiro eu precisava que Miguel parasse de opinar a respeito do que eu deveria ou não fazer, e eu duvidava muito que ele aceitasse se submeter a qualquer tipo de situação.

– Não quero mais que você me diga o que eu devo ou não fazer, nem que você se meta no meu destino ou sequer fale das palavras daquela Profecia estúpida – disse tudo isso olhando diretamente em seus olhos, e vi perfeitamente o instante em que seus olhos se arregalaram diante de minhas palavras e do tom de minha voz. Não era um pedido. Era uma exigência.

– O que te faz pensar que vou me submeter a isso? Só porque você é o tal do Anjo poderoso não quer dizer que eu te devo obediência – dessa vez Miguel sustentou meu olhar de uma forma desafiadora.

– Não quero que me obedeça, nem que se submeta a nada – se ele queria um desafio, eu daria um a ele agora – Mas se vocês precisam de mim pra que nossa dimensão seja salva, vai ser do meu jeito. Eu decido como as coisas vão acontecer daqui pra frente. Pode escolher. Se quiser usar minhas forças nessa guerra, eu tomarei as decisões. Mas se você e os nossos supostos superiores quiserem continuar dizendo o que eu devo ou não devo fazer, eu estou fora dessa guerra.

– Por que fazer isso agora? Essa batalha está prestes a estourar, você não pode abandonar todos os seus irmãos.

– Irmãos que se preocupam com a existência deles, mas não se importam com bem estar do irmão que supostamente seria responsável por essa existência? – se ele sabia ser sarcástico, eu aprenderia a ser mais ainda.

– Tudo bem! Você venceu! Vai ser do seu jeito daqui pra frente – Miguel só fazia isso por que não tinha escolhas. Ele sabia que todo o tempo eu tentaria fazer as coisas acontecerem diferente da Profecia. E não estava enganado. Eu faria tudo que pudesse pra mudar o fim de tudo aquilo.

– Então precisamos conversar sobre meus planos e como faremos...

– Qual o seu medo? Conhecer o mundo Terreno? Gostar demais da liberdade? Esses sentimentos desconhecidos? Qual o seu problema com a Profecia? – nos encarávamos raivosos e instáveis, como se de repente fossemos nos atacar. Seus olhos pareciam pegar fogo e os meus não deveriam estar diferentes. Miguel sabia melhor do que qualquer outro o quanto eu negava meu destino, mesmo que também soubesse das chances daquela profecia estar certa – Vamos Gabriel! Diga-me o que te faz mais medroso?

– Cumprir as palavras daquela maldita profecia me tornaria covarde diante de pessoas inocentes – eu já conseguia sentir o peso daquela conversa em minha cabeça, que ultimamente vivia mais confusa do que o habitual.

– Covarde? – rindo sem humor algum, Miguel parou seu corpo a centímetros do meu, em uma atitude clara de desafio – O que te tornaria covarde? Deixar de salvar seus irmãos e fugir de seu destino simplesmente porque não quer magoar os sentimentos de uma garotinha supostamente inocente?

– Não.se.meta.nisso! – Fiz questão de pontuar cada palavra, talvez assim ele se lembrasse do acordo que fizemos á segundos atrás.

– Você nasceu covarde! – Miguel praticamente cuspiu aquelas palavras – Dar uma de bom moço, não fará de você um herói. Mas agora, quero pagar pra ver – disse Miguel se afastando de mim aos poucos – se você acha que será capaz de burlar seu destino, vou estar aqui assistindo a isso de camarote – e depois de me lançar mais um olhar frio e um riso irônico, completou – mas quando você cair, eu vou fazer questão de ser o primeiro a estar do seu lado, somente pra dizer a você: EU TE AVISEI.

Dizer que aquelas palavras não me atingiram seria uma grande mentira, mas em nenhum segundo desviei meus olhos dos dele. Não seria fraco agora, algo dentro de mim dizia que no fim tudo seria da forma como deveria ser.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.