Annika saltou por sobre as tábuas pregadas que bloqueavam uma rua, parando um segundo para respirar. Que bom que tivera o bom senso de vir com roupas masculinas, ou já teria sido pega por quem quer que a seguisse; encostando-se às tábuas, descansou por alguns segundos, compreendendo que não poderia mais fugir. Segurando a faca na mão direita, com a esquerda arrancou um pedaço de tábua, uma lasca longa e aguda, que poderia usar como arma, também.

Com uma “arma” em cada mão, ela se levantou e caminhou para o meio da viela, ouvindo passos virem de ambos os lados. Dois homens saltaram por sobre as tábuas, levando-a a correr para o outro lado, que foi bloqueado por mais cinco homens. Sabendo que não havia como lutar contra sete, a moça cometeu uma loucura: atirou-se para a parede, usando-a como apoio para um salto muito alto, que a levou outra vez por cima das tábuas, contornando os dois homens, que tentaram impedi-la sem sucesso. Uma vez do outro lado, Annie correu para uma casa em ruínas, entrando na construção em condições precárias.

Ocultando-se atrás da primeira parede, ela aguçou os ouvidos e calculou seu próximo movimento: quando os passos do perseguidor estavam a apenas um metro, saiu de seu esconderijo e, abaixando-se para evitar qualquer golpe, desferiu uma estocada certeira, que atingiu em cheio o abdômen do primeiro, o qual caiu com um grito, o ventre aberto de um lado a outro. Uma vez que por ali passa a maior artéria do corpo, ela sabia que fora um golpe fatal, e escapou a tempo de se desviar do tiro dado pelo que vinha logo atrás. Como uma gata, ela se atirou escadas acima, virando-se com agilidade para atirar a lasca de madeira direto contra o oponente. A lasca não se cravou, mas acertou o pulso do atirador, arrancando a arma de sua mão, mas Annika não permaneceu ali para ver o que aconteceria: subiu agilmente pelas escadas apodrecidas, sentindo a madeira se quebrar sob seus pés. Uma pontada de pânico a atingiu, mas conseguiu alcançar o andar superior antes que os degraus de madeira caíssem. Olhando para baixo, viu mais três vultos entrando na casa, e não quis ficar ali pra descobrir onde estavam os outros dois.

Com a faca na mão, ela se sentiu aliviada: estava no segundo pavimento, e as escadas haviam caído... Agora, só precisava sair pelo telhado, e fugir por sobre as casas vizinhas. Nunca conseguiriam pegá-la! Recuou devagar, sem olhar para onde ia, sem desgrudar os olhos do lugar onde antes estivera a escadaria, o coração ainda disparado após quase ter levado um tiro. O que haveriam de querer com ela?

Preocupada demais com aqueles a quem despistara, não viu que não estava sozinha no segundo piso: três pares de mãos a agarraram pelas costas, arrancando-lhe um grito de susto. Reagindo instintivamente, Annika se virou depressa, a mão escapando à de um dos atacantes e golpeando o que segurava seu braço esquerdo, direto no pescoço. Pensou que seria um inimigo a menos, mas outro tomou seu lugar, e ela percebeu que eram seis os homens que a aguardavam, e apenas um caíra morto! Precisava pegar sua pistola, mas não havia como fazê-lo! Mesmo que alcançasse, não teria tempo de mirar!

Lutando desesperadamente, chutando, se debatendo, ela conseguiu matar mais um atacante com uma facada no olho, e outro com um golpe nas costelas, antes que a faca fosse arrancada de sua mão. Um saco de pano foi enfiado em sua cabeça, e suas mãos foram amarradas para trás, com tanta força que ela sentiu a corda se enterrar na pele. Merda! Como poderia fugir, agora? Mãos rudes a tiraram do chão, e a pianista viu-se jogada no ombro de alguém, cega, amarrada e indefesa. Já estivera naquela situação, antes, e sabia que não terminava bem!

*

Podiam ter se passado uns poucos minutos ou quase uma hora, e ela não saberia dizer. Tinha a impressão de ter desmaiado, mas podia ser que também não houvesse ocorrido; o fluxo de sangue na cabeça a confundia, e a sufocação causada pelo saco de aniagem piorava tudo. De repente, porém, foi jogada no chão, e as mesmas mãos que a haviam amarrado a obrigaram a se erguer, enquanto o saco era arrancado de sua cabeça.

Acostumando-se à luminosidade do ambiente, ela piscou algumas vezes antes conseguir olhar em volta: era um quarto sem janelas nem forro, de modo que podia ver o teto... Uma espécie de sótão, então... As paredes eram de cimento, assim como o piso, e o coração da jovem quase parou, nem tanto ao ver a cama de aspecto duvidoso, mas ao ver quem se sentava na poltrona ao lado desta: Lucian. O homem parecia ainda mais gordo e imundo do que já fora, e tinha um sorriso dez vezes mais cruel do que ela jamais vira.

- Lucian – rosnou ela, debatendo-se inutilmente nas mãos dos três homens que a continham.

- Olá, Annika. – ele se levantou e veio até a jovem, impedida de se mover. Com uma lentidão propositadamente cruel, deslizou um dedo pelo rosto dela – Achou que conseguiria fugir para sempre? Achou mesmo que se fingir de dama refinada, que tocar piano num teatro me despistaria? Você é minha, cadela imunda, e nunca vou esquecer a humilhação que seu amante me fez passar.

- Erik comprou minha liberdade, Lucian. Sou uma mulher livre.

- Você é uma puta! – gritou o homem, vermelho de raiva – e é isso o que sempre vai ser! Uma vadia suja! Mas a ceninha do seu diabo de máscara foi bastante inconveniente: as outras meninas começaram a pensar. Pensar em liberdade, em fuga... Coisas que não devem passar pela mente de uma prostituta. Vocês são minha propriedade, e apenas isso serão, até morrerem. Suas vidas são minhas, seus corpos são meus. Mas preciso restabelecer a ordem que você, vagabunda, perturbou. – ele puxou uma faca comum do bolso, pressionando-a contra a garganta da moça, e então deslizou a mão por sua cintura, direto até o lugar onde ela escondera a pistola, que ele tirou do lugar – mas tenho de reconhecer: melhorou seu estilo. Armas de fogo são novidades. E você matou cinco homens, apenas com uma faca e um pedaço de madeira.

- Você é um cretino, Lucian. Ainda vou meter uma bala em seu olho.

- sonhe com isso. Você vai servir de exemplo para as outras meninas que quiserem sonhar com “liberdade” – e se voltou para os três homens – amarrem-na à cama. Vamos ver até onde a puta aguenta; quero ouvi-la pedir para morrer.

Os três pensaram que conseguiriam cumprir facilmente a ordem de seu patrão, por tratar-se de uma mulher desarmada e atordoada, mas a jovem não era uma presa fácil: quando suas mãos foram soltas das costas, ela se tornou um gato selvagem, arranhando, batendo, chutando! Chutou a virilha de um dos homens, que se dobrou no meio, permitindo a ela pegar sua faca e cravá-la num segundo homem, direto no rosto. Não o matou de imediato, mas ele certamente não sobreviveria. Entretanto, um soco no rosto a atordoou, e os dois pares de mãos restantes a deitaram na cama. Cordas prenderam suas mãos à cabeceira, e seus pés às alabardas da cama, tolhendo qualquer movimento, por menor que fosse. O desespero a acossou: ela matara seis homens, e ainda assim isso de nada adiantara! Ela seria torturada, provavelmente violentada, e morta. Ainda assim, havia uma tranquilidade em sua mente: Gabrielle estava à salvo. Sabia que Erik cuidaria dela, e isso a aliviava.

Foi com este alívio absurdo que, no momento em que Lucian subiu na cama e se pôs sobre ela – ele dispensara os dois homens, para se “divertir” com a mulher, sem ligar para o cadáver no chão - a pianista sibilou:

- Acha que tenho medo de você, pulguento? Matei seus homens como moscas, e vou mata-lo antes do que imagina – ela cuspiu no rosto do antigo dono com um sorriso de afronta, o que lhe rendeu um tapa no rosto que partiu seu lábio e a fez sentir o mundo rodar. Com forças tiradas da raiva, ela o fitou outra vez, pela primeira vez sem se intimidar ante o olhar de ódio de seu algoz – bata de novo. Ande! Eu não tenho medo de você. Mesmo que me estupre, que me mate, eu já venci: nunca mais vou ter medo, seu elefante peludo. – não era o melhor xingamento que existia, mas lhe trouxera uma inexplicável satisfação, mesmo quando outro golpe pareceu romper seus tímpanos.

- Você vai pedir para morrer – disse o cafetão, sacando a faca e cortando fora a camisa e a calça da mulher, deixando-a apenas com as roupas íntimas. Annika fechou os olhos, antecipando a dor, sem se surpreender quando a lâmina fria e serrilhada mordeu a carne, rasgando mais do que cortando uma longa linha em seu ventre. O sangue fluiu, morno, mas ela sequer gemeu... Já sentira tanta dor em sua vida, que seu limite era extremamente alto.

Ao ver que o rosto dela mal se alterara, Lucian repetiu o ato, agora no seio, cortando fundo; isso sim, arrancou um gemido da mulher, que forçou as cordas sem sucesso. Seu carrasco bateu nela outra vez, e abriu um corte no lado interno de sua coxa; deliciando-se com a impotência e a dor dela, mordeu o pescoço da moça com força, até seus dentes rasgarem a pele clara; isso arrancou um grito.

- Isso, prostituta. Grite para mim. Você vai gritar muito; quero que grite. – ele apalpou o corpo dela, arranhando – nunca foi tão bonita quanto está, agora. Aquele mascarado cuidou bem de você, vagabunda: está mais macia, com curvas... Acho que vou aproveitá-las um pouco, antes de mutilar esse corpo. – e para comprovar suas palavras arrancou as peças íntimas dela e enfiou a mão entre as coxas da moça, que fechou os olhos com força. Era como estar em um de seus pesadelos, mas este era real... E não havia como escapar. Ele distribuiu dolorosas mordidas por seu corpo, relembrando-a de toda a dor que já sofrera nas mãos daquele ser abjeto, e isso não a desesperou, mas enfureceu. Ela lutava contras as cordas, puxava-as desesperadamente, tentava soltar as amarras de suas mãos, mas era inútil. Só o ódio aumentava e se reforçava, ódio profundo contra aquele monstro! Assim que ele a soltasse, ela o mataria! Lenta e dolorosamente! O único modo de fugir ao asco e à vergonha daquele momento - em que se sentia de volta ao inferno de sua primeira juventude - era imaginar como iria tortura-lo, quando se libertasse! Era inútil, ela sabia, pois ele a mataria assim que estivesse saciado... Mas era o único modo de não sentir o que ele fazia... De tentar ignorar o corpo nojento sobre o seu, e fingir que ele não abusaria dela outra vez, em poucos segundos.

De repente, porém, uma voz fria, feminina, soou bem perto de ambos:

- Vai ter uma bala nas suas entranhas, se não sair de cima dela, filho da puta. – a pistola que Lucian arrancara de Annika foi encostada à cabeça dele, que ergueu as mãos, ficando de joelhos sobre a jovem. Atrás dele, estavam Jean e Renard; o louro empunhava um bastão, enquanto o ruivo ainda tinha um dos capangas de Lucian carregado pelo pescoço, e atravessava uma faca em sua garganta. Estavam os dois jovens molhados de sangue, mas quem empunhava o revólver era outra pessoa: Gabrielle. A menina pressionou mais o cano contra a cabeça de seu velho dono – agora, saia de cima de minha irmã, bem devagar. Estou acompanhada e, se tentar algo, transformamos você numa peneira.

Lucian estava lívido – era um covarde – e obedeceu. Gabrielle estava irreconhecível, dura, fria, impiedosa enquanto empunhava a arma de fogo e, com voz cortante, ordenava:

- Sente-se na poltrona – e para Jean – amarre-o bem. – Renard já soltara Annika, e a menina jogou um casaco comprido para o amigo – trate de cobri-la.

A pequena, tímida e delicada Gabi parecia transformada numa valquíria furiosa enquanto continuava apontando o revólver para seu velho algoz. Foi só quando este estava totalmente amarrado que a adolescente correu para sua irmã, agora sentada na cama, refazendo-se do quase-estupro que sofrera, os olhos chispando de ódio ao fitar seu atacante.

- Annie! – a mais moça abraçou com força a mais velha, que se recobrava aos poucos; parecia que um de seus tímpanos se rompera, pois não ouvia nada com o ouvido direito, mas a adrenalina fazia seu corpo mal sentir a dor dos ferimentos ao se levantar de súbito. Estava com raiva, verdadeiramente furiosa, e algo sombrio despertava em si. Sua expressão era tão enraivecida, que a própria Gabrielle se assustou – Annie? Annie, por Deus, o que está havendo?

- Você está bem, abelhinha? – preocupação era a única outra coisa nos olhos da mulher, além daquela raiva intensa.

- Sim eu estou... Mas o que você... – não teve tempo, contudo, de terminar sua frase, pois a irmã se voltou contra o homem amarrado.

- Você! – Annika avançou na direção do porco atado à poltrona – seu monte de merda! Gosta de dor?! Gosta de sofrimento?! Então eu vou lhe dar um pouco! – ela devolveu o soco no rosto. Parecia mal suportar estar em pé, mas uma vontade férrea a mantinha ali, um ódio puro e primitivo, um lado sombrio que ela nunca deixara alguém ver. Pegando a faca no chão, abriu um grande corte no braço dele, outro no peito, outro no rosto; cortes fundos, mas não letais, que o fizeram urrar. Um sorriso mau se fez no rosto dela, assustando os amigos e a irmã, que jamais haviam cogitado haver tal lado em Annika – Não é tão divertido quando você é a vítima, é? - Gabrielle a segurou pelo braço, pedindo num tom quase choroso:

- Annie, pare! Você não é assim! – assustava à adolescente ver a irmã causar dor deliberadamente a alguém. Assassina, sim... Mas aquilo era tortura! Não que a própria Gabrielle não quisesse vingança, pois aquele porco roubara sua infância, sua inocência... Contudo, ver sua irmãzinha agindo daquele modo era terrível!

- Ah, eu sou, sim, Gabrielle – os olhos da moça estavam toldado como os de um viciado em ópio, embora houvesse ali mais do que desejo por sangue: havia também uma pontada de terror a movê-la, como se fosse um leão muito tempo enjaulado que de repente se atira sobre um tratador abusivo – quero o sangue dele. Quero a dor dele. Ele vai pagar por cada dia que vivemos daquele pesadelo! Ela vai pagar por cada vez que te machucou. Vai sentir na pele toda a dor que nós duas sentimos, abelhinha, e então, quando eu o matar, nós vamos estar livres! – Esquivando-se à mão da irmã, ela esfaqueou seu algoz na barriga, num ponto não-letal. Teria feito de novo, se dois braços muito fortes não a envolvessem e a tirassem do chão, tirando-lhe toda a força.

- Largue-me! – gritou ela, sem saber quem a segurava, crente que se tratava de um dos rapazes. Uma mão grande, fria e forte se fechou sobre a dela, arrancando-lhe a arma, e uma voz grave e poderosa se fez ouvir:

- calma, Annie! Calma, sou eu! Sou só eu! – ela tentou lutar:

- Eu vou matar esse bastardo, Erik! – ela tentou fugir às mãos do mascarado, mas o Fantasma a virou para si, obrigando-a a encará-lo:

- Pare! – ele a sacudiu de leve, e soava quase zangado – esta não é você. Controle-se! – ao ver seu amado, a raiva da jovem se amenizou, e a sensação de estar segura em seus braços quase a fez chorar. De repente, todos os seus ferimentos doíam, mostrando o estrago que Lucian fizera nela; poderia ter caído no choro, se o orgulho não a impedisse.

- Você não entende... – disse ela, a voz embargada de dor e de choro contido – não entende o que esse bastardo fez comigo e com Gabrielle... Não entende o que ele queria fazer, outra vez... Não vou deixa-lo vivo, Erik. Não vou deixa-lo vivo... – ela parecia em choque, mal tendo percebido a presença dos amigos. Vendo que as coisas ali ficariam bastante tensas, o Fantasma se voltou para Renard:

- Tirem Gabrielle daqui. Eu resolvo, com Annika.

Mesmo aos protestos, a adolescente foi levada pelos amigos, enquanto o Fantasma se via sozinho com sua amante e aquele que fora o carrasco dela por anos. Lucian sangrava pelos cortes, e estava apavorado demais para dizer o que fosse... O tipo mais desprezível de criatura que poderia haver! Olhando para Annika, o Fantasma viu o tremor em seu corpo, a lividez de seu rosto, e compreendeu que só a morte do homem na poltrona poderia fazê-la sentir-se segura outra vez. Ele próprio sentia um ódio frio, mortal e cortante, e teria enorme prazer em torturar a criatura que machucara novamente sua Annika.

- Você está bem? – perguntou o músico, examinando os cortes da moça, que não sangravam tanto quanto esperado.

- O bastante para acabar com esse filho da puta. – ela estava pouco ligando para seu vocabulário. Pegou outra vez a faca no chão, e se deliciou com o tremor que viu em seu velho dono. Ia aproximar-se e fazer outro corte, quando a mão de Erik se fechou sobre a dela: havia nos olhos dourados a mesma raiva assassina que em sua alma, porém, muito mais fria, muito menos passional. Uma raiva que ele aprendera a conter e canalizar. Como se fosse apenas um professor ensinando uma criança a ler, declarou:

- Não desse modo. Você reage como um animal encurralado. Ele, agora, não pode lhe oferecer nenhum mal, então, por que a pressa? – um sorriso cruel se desenhou no rosto do músico, quando guiou a mão da mulher e a fez introduzir a ponta da faca por sob a unha de um dos dedos de Lucian, arrancando um uivo do homem, deslizando a lâmina até destacar completamente a peça da carne. Ela se deliciou com aquele som, mas Erik sabia que, se deixasse sua amada torturar o homem, ela jamais se perdoaria depois. Não se perdoaria, porque tinha um bom coração, e princípios elevados. Ele, Erik, porém, tinha um coração podre, e não sentiria o menor arrependimento. Aliás, ansiava por causar toda a dor do mundo a quem tanto ferira sua querida Annie. Sentando Annika na cama, disse – seja uma boa aluna, e deixe o mestre trabalhar. Deixe-me fazer o serviço sujo por você. Apenas observe, e delicie-se;

Dolorida com os tantos cortes e mordidas em seu corpo, a pianista se sentou como se fosse uma criança assistindo a truques de mágica, e se deliciou vendo Erik demonstrar tudo o que aprendera na Pérsia, em termos de tortura física. Era incrível o que ele podia fazer com uma simples faca, e os gritos de agonia de Lucian eram, para ela, o bálsamo que curava suas velhas feridas. Nunca desejara a dor para os outros, mas aquele homem, que roubara sua infância e a de Gabrielle, arrancava o pior de dentro de sua alma e o fazia aflorar.

Foi só quando Lucian, já mais morto do que vivo, implorou para morrer, que o Fantasma se ergueu, orgulhoso, e estendeu a faca para a dama:

- Faça as honras, Mademoiselle. Este direito, eu não tenho.

Trêmula de excitação, medo, adrenalina, raiva – emoções demais para citar – ela tomou o objeto e se aproximou do homem moribundo. Com uma voz fria que não revelava as chamas de vingança em seu interior, sussurrou ao ouvido de Lucian:

- Nunca mais vai vender garotinhas, Lucian. O Diabo tem um bom lugar reservado para você, no inferno. – e com essas palavras, abriu um rasgo na garganta do cafetão, que gorgolejou asquerosamente, afogando-se no próprio sangue antes de, enfim, fechar os olhos na inércia da morte.

Ao ver seu velho algoz expirar, enfim, a moça foi tomada por inúmeras emoções... Finalmente sentia-se livre, sentia-se liberta da vida da qual fugira, mas que permanecera consigo! Ao mesmo tempo, o choque de ter matado alguém tão friamente, de ter assistido a uma tortura com verdadeira satisfação, a culpa por sentimentos tão abomináveis que nutrira – que ainda nutria, e que talvez nunca fossem embora – a assaltaram com força, e ela cambaleou. Teria caído, se Erik não a pegasse nos braços:

- Você está bem machucada. Vou leva-la para casa.

- Estou bem, posso andar. – protestou ela.

- Andar até a Ópera Garnier? – riu-se ele – achou que estamos um pouco longe. – ambos fitaram o cadáver – deixe-o aí, para que apodreça. É mais do que ele merece.

Iam deixando a casa quando Annika, já não mais tomada pelo ódio mortal, virou-se para seu amado:

- Erik, obrigada. Obrigada por não ter me deixado fazer aquilo... Eu o teria estraçalhado, como se eu fosse um animal...

- Você não é assim, Annie – disse ele – o bastardo merecia uma lição, mas eu não podia deixar você fazer isso. Sei que se sentiria culpada por isso, depois.

- E você, não?

- Não. – respondeu ele, beijando os lábios da moça antes de coloca-la sobre o cavalo – Sinto-me culpado por ter ido tão rápido. Aquele rato merecia sofrer alguns dias, antes de morrer, por tudo o que fez a você e a outras moças.

- Outras moças?! Ah, meu Deus! – exclamou a jovem – temos de voltar ao prostíbulo, AGORA!

- Gabrielle falou o mesmo, e foi com os rapazes para lá.

— Tenho de ir, também! É urgente! – ela insistiu, embora estivesse exausta.

— Annie, você mal se aguenta em pé! O que quer que seja, pode esperar até amanhã! – repreendeu o Fantasma.

— Não, não pode! – ela ia descendo do cavalo, quando tudo ficou escuro, de repente.

Com certo remorso, Erik abraçou firmemente a moça desmaiada; não queria bater na cabeça dela, mas não lhe dera outra escolha. Sabia que Renard e Jean manteriam Gabrielle a salvo, mas agora precisava cuidar de sua Annika.