POV Annika

Erik havia saído cedo, levando uma carta nas mãos... Eu sabia muito bem aonde ele ia: tentar mendigar a atenção de Christine, outra vez! Desde o episódio no camarim, ele parara de me pedir que levasse as cartas, mas continuava a enviá-las uma vez ao mês! Ah, que perfeito idiota! Eu me roía de ciúmes, e também de raiva: como ele podia ter tão pouco amor-próprio? Sabia que se considerava um monstro, indigno de amor e de atenção, mas a ponto de implorar pelo amor daquela garota, como fazia? Isso era patético!

Com raiva, aproveitei que ele não se encontrava – e que não tinha ensaios, hoje -para me dedicar um pouco mais à casa: limpei o andar inferior cuidadosamente, deixando por último o “quarto intocável”, como eu passara a chamar aquele aposento que um dia deveria ter pertencido a Christine, se ela não houvesse humilhado e abandonado o Fantasma para viver com seu amor de contos-de-fadas. Comecei a limpar o quarto e, para minha surpresa, vi que o pequeno baú de tranca dourada, no qual já reparara antes, estava destrancado; aquilo atiçou minha curiosidade, e não pude resistir: quando dei por mim, havia aberto a tampa.

Nada podia, contudo, ter me preparado para o que encontrei: vários retratos desenhados à mão - tão bem-feitos que poderiam se passar por retratos – de Christine, partituras de músicas – certamente árias que ela cantara – uma caixinha de vidro com um anel de brilhantes em seu interior... Um véu branco... E, junto de tudo isso, algumas cartas. Peguei-as, e comecei a ler; a caligrafia clara e limpa era visivelmente feminina, e comecei a ver as datas... Todas de 1884 e 1885. Devia haver umas dez ou doze, então li a primeira, datada de 12 de setembro de 1884:

Meu amado Anjo da Música

Seus votos de boa sorte para meu casamento me comoveram até as lágrimas. Percebo que cometi um erro em meu julgamento, e que há em sua alma mais bondade do que sua raiva assassina deixa transparecer. Rezo para que um dia consiga me perdoar e, acima de tudo, para que consiga perdoar a si mesmo.

Sinto muito que tudo tenha se passado entre nós do modo como o fez... Fossem outras as circunstâncias, e talvez outros tivessem sido os resultados. Apenas desejo que saiba: eu realmente o amei. Talvez não o amor que você desejasse, ou mesmo precisasse, mas foi o amor que pude lhe dar: o amor de uma filha, de uma discípula devotada a seu mestre, e esse amor nunca morrerá. Sempre será meu Anjo, a pessoa que me tornou tudo o que sou hoje. Infelizmente, não posso lhe dar o amor de que precisa e, portanto, não devemos mais nos ver. Não quero fazê-lo sofrer, meu professor... Assim como eu mesma não desejo mais sofrer.

Para o bem ou para o mal, meu Anjo, fizemos o melhor com o que nos foi dado; nunca saberemos como as coisas poderiam ter sido, mas agora já não há escolha: passamos o ponto sem retorno. Agora, resta-nos viver a vida tal como ela é, aceita-la... Esquecer o passado, ainda que, para mim, ele vá viver a cada palavra pronunciada, a cada cantarolar. Nunca me esquecerei de você, meu mestre, mas, para seu bem, deve me esquecer. Vivemos coisas demais para que eu não deseje sua felicidade, com todo o meu coração.

Eternamente grata e arrependida

Christine

Percebi, pelas palavras escritas, que a moça parecia arrependida; arrependida não de suas escolhas, mas do modo como as fizera. Arrependia-se de ter magoado Erik, e desejava que ele pudesse se recuperar dos males que lhe fizera... Mas como ele poderia? Como ele poderia se recuperar, sozinho na escuridão? Por sorte tivera Meg e Madame Giry, que lhe haviam dado força suficiente para que não se matasse, mas o coração do músico ficara muito abalado. Meneando a cabeça, passei algumas cartas adiante, de 15 de março de 1885:

Erik

Você me perguntou como tenho passado, com a gravidez, e vejo a preocupação genuína em suas palavras. Estou muito bem, fisicamente, mas minha mente se perturba: embora sempre me alegre em receber suas cartas e ter notícias suas, devo insistir em que pare com isso; sabe que não podemos ter mais nada um com o outro... Temos de nos libertar do passado, por mais doloroso que isso seja. Não poderemos ter uma vida, enquanto não o fizermos.

Por favor, meu Anjo... Se realmente me ama como afirmou, pare com o que tem feito. Deixe-me viver, e viva também. Volte para sua música, deixe que as pessoas a vejam. Volte a ser o Fantasma, se desejar, ou busque a paz em lugares longínquos, onde seus crimes não são conhecidos. Há muitos lugares no mundo, locais onde um rosto marcado é nada, comparado à genialidade que vi em sua mente. Por favor, tente ser feliz, mas longe de mim, pois não posso lhe dar o que deseja e o que precisa.

Seja feliz

Christine

Vendo o modo como o tom das palavras evoluíra, de pesaroso para apreensivo. A insistência de Erik irritara, preocupara e perturbara a Viscondessa – que certamente devia temer pelo próprio casamento, se o marido descobrisse as cartas do antigo amo. Tive certa pena dela, embora tivesse muito mais de Erik, que continuara implorando por um amor que lhe era repetidamente negado... De repente, a dimensão do desespero dele me pareceu muito maior... Estava mergulhado em trevas, ansiando loucamente por alguma luz que, em sua mente perturbada, era Christine. Apiedada dele, mas também enraivecida por sua atitude de rastejar aos pés da antiga aluna, passei à última carta, de 20 de outubro de 1885:

Erik

Está será a última carta que lhe remeto. Não tenho mais nada a dizer, uma vez que você não quer me ouvir. Dediquei-lhe todas as palavras de carinho e conforto que pude, mas, agora, suas cartas e investidas constantes ameaçam meu casamento. Amo meu marido desesperadamente, e tive um filho, há poucos dias; essa é minha nova vida, meu novo mundo, e você não faz parte dele, como eu não faço parte do seu. Ou, pelo menos, não deveria mais fazer.

Esta carta é um último adeus. Não lhe escreverei mais. Tudo o que me resta é dizer que acabou, e que nossos laços, pelo menos de minha parte, rompem-se aqui. Como já lhe disse, eu te amei. Verdadeira e intensamente. Você foi meu mestre, meu mentor, meu amigo... Até mesmo meu pai. Mas nunca o vi como homem. Esse amor que você deseja é inalcançável, pelo menos comigo, e não por seu rosto, nem mesmo por seus atos hediondos, mas porque, para mim, sua voz sempre foi a do Anjo da Música, a única coisa que me restara de meu pai. E como meu pai eu o amei, até agora.

Com esta carta, rompo tudo o que nos liga; tentei ajuda-lo, confortá-lo e dizer-lhe que poderia haver outra vida, sem mim. O que fará, agora, já não me diz respeito. Apenas deixe-me em paz, pois preciso de tranquilidade, especialmente neste momento em que toda a minha atenção deve ser mantida em meu bebê. Espero que encontre a felicidade, meu mentor, mas que esta esteja longe de mim, e de minha família.

Adeus

Viscondessa de Chagny

A raiva ferveu meu sangue: mesmo após aquela carta – completamente rude e clara em sua intenção de ruptura – aquele filho de uma cadela continuava a se arrastar aos pés da soprano, como um cão servil?! Misturavam-se em mim a raiva contra ela, contra ele e contra mim mesma – por não poder fazer nada a respeito. Ele estava preso, acorrentado à memória de sua pupila como Prometeu ao penhasco... E a culpa, a vergonha, a solidão e a loucura lhe serviam de águias, roendo-lhe não o corpo, mas a alma. E essa noção me trazia lágrimas ao rosto, lágrimas de dor, de raiva, de piedade...

Imersa nas memórias de Erik, não ouvi a porta se abrir... Tudo o que percebi foi uma mão forte me agarrando pelo braço e erguendo-me do chão, virando-me de modo que pudesse fitar aqueles olhos dourados, agora num tom laranja de ódio, enquanto ele exclamava:

– COMO VOCÊ OUSA?! DEPOIS DE TUDO O QUE FIZ POR VOCÊ, DE TUDO O QUE LHE DEI E ENSINEI?! COMO VOCÊ... – no susto, eu me esquivei às suas mãos com um giro de corpo que aprendera com os Garotos do Beco, e me afastei um passo, confrontando-o:

– E como VOCÊ ousa?! Como pode se destruir deste modo, rastejando aos pés de uma mulher que não o quer? Que nunca o quis?! Como pode continuar bajulando aquela menininha mimada que... – ele me segurou por ambos os braços, num aperto tão forte que parecia prestes a quebrar meus ossos:

– Aquela menininha é Christine! Christine! Meu Anjo, minha musa, aquela que me inspirou e me deu forças!

– Aquela que o abandonou! – gritei de volta, quando ele me agarrou pelos cabelos, torcendo-os em sua mão – Aquela que o humilhou, o desprezou e o deixou para sofrer sozinho! Que deixou claro já ter uma vida, na qual você não está incluso! – a dor aumentava minha raiva, e me fazia direcioná-la à pessoa errada – Mas você é patético demais para entender isso, não é? Continua se ajoelhando e pedindo por migalhas da atenção dela, como um cão de rua implora por comida...

– Como uma prostituta implora pela piedade alheia? – ele devolveu, ferino. Mas meu passado não me afetava mais... Pelo menos, não quando comparado ao que eu sentia agora, por razões bem diferentes... Uma raiva tão grande, tão intensa, que me cegava e fazia tudo ficar vermelho.

Lutei contra Erik com todas as minhas forças e, na luta, minha mão lhe acertou a máscara, arrancando-a e lançando-a ao chão, onde se partiu ao meio. Seu rosto ficou exposto, mostrando a deformidade que se estendia por todo o lado direito, da raiz dos cabelos – que recuavam até a linha da orelha – até a base do nariz, como cicatrizes de ácido; uma pele pálida e translúcida se esticava sobre a pouca carne e sobre os ossos, esticada e repuxada. Era estranho, certamente, mas não a pior coisa que eu já vira... Mas fez-me recuperar a razão.

Sabendo que ele reagiria com mais raiva ainda, tateei a mesa e alcancei o abridor de cartas em forma de espada, colocando-o contra o pescoço de meu amo, numa falha tentativa de me proteger. Ele sorriu como um demente, mistura de ódio e divertimento, e segurou meu pulso, mas em vez de afastar a lâmina, pressionou-a contra a carne até que um fio de sangue escorresse:

– Agora já sabe! Agora, que viu o monstro, talvez seja mais fácil mata-lo! – minhas mãos tremeram, e mina voz se foi enquanto fitava o rosto dele, tão cheio de emoções perturbadas. Ah, Erik, meu pobre Erik! Quanta dor via em seu olhar! Quanto medo, e quanta mágoa! Alguma vez teria sequer uma pessoa acariciado seu rosto com carinho, em vez de medo? Alguma vez teria uma voz lhe dirigido palavras de amor? Em seu ódio por si mesmo e pelo mundo, ele apertou ainda mais a faca, e sibilou – Faça de uma vez, Annika! Mate-me, e liberte-se do monstro! – e mais baixo ainda – mate-me, antes que eu me canse desse jogo.

As mãos de meu senhor me apertaram dolorosamente, e vi que ele estava oscilando outra vez, entre o medo, o ódio e a culpa. Mas havia principalmente medo, um medo irracional, aprendido muito cedo e arraigado em seu ser... Um medo que palavra alguma poderia afastar. O que vi em seus olhos perturbou-me tanto! Podia sentir sua dor como se fosse minha, ver o sofrimento daquela alma, que sequer lembranças boas possuía para se refugiar das sombras... E porque eu o amava, aquilo doeu muito mais em mim do que nele.

Deixei a faca cair, impotente, enquanto sentia lágrimas escorrerem por meu rosto: lágrimas quentes, de dor profunda pelo sofrimento dele. Soluços agitaram meu corpo, e pude ver a mais pura confusão nos olhos dourados, antes que a raiva retornasse:

– Chorando de medo, Annie? – o cinismo ocultava a criança assustada em seu interior – Medo do monstro? Deve, mesmo! Acha que ISSO é horrível? Ainda não viu o que está dentro de mim!

– Não choro por mim, Erik – respondi em meio ao soluços, desesperada por ajuda-lo – choro por você. Porque é um homem sozinho e sem amor, correndo atrás de algo que não é real, agarrando-se a uma boia imaginária enquanto se afoga num mar de sombras... Não enxerga o que é real, o que está bem diante de si... Por isso choro.

– E o que está diante de mim, meretriz?! – perguntou por entre os dentes, num rosnado que, em outra situação, me teria feito sair correndo. Eu soltei uma das mãos e lhe acariciei o rosto marcado com todo o carinho que pude, sentindo uma lágrima escorrer por meus dedos... Meu Fantasma chorava com minha carícia.

– Eu estou, Erik. – sussurrei, sentindo o aperto em meu braço e pescoço afrouxar – eu sou real, e estou aqui.

Ele parou por longos segundos, mirando-me com aquela doce surpresa que substituíra a raiva; em meio ao próprio pranto, respondeu-me:

– Só até não estar. – e então soluços começaram a sacudir-lhe o corpo, enquanto ele escorregava para o chão, indefeso e atormentado... Meu coração se partiu em um milhão de pedaços com tal cena, e me abaixei ao seu lado. Abracei-o confortadoramente e trouxe sua cabeça contra meu colo, sentindo seu pranto molhar minhas roupas; ficamos assim por um longo tempo, antes que ele se se recompusesse e, como se jamais houvesse tido aquela crise, se erguesse dignamente com a mão ocultando a própria deformidade:

– Quero que vá embora, Annika. Não a quero mais aqui.

Aquelas palavras me doeram como uma faca incandescente a penetrar meu coração... Nenhum espancamento ou abuso doeu tanto quanto aquelas poucas palavras. Tentei compreendê-lo, tentei ficar calma, mas a dor era grande demais para suportar... Corri para o quarto e deixei-me cair na cama, chorando até que a escuridão me dominasse; não sei se adormeci ou desmaiei, mas foi uma abençoada escuridão que me cegou ao sofrimento, pelo menos por algumas horas. Para onde eu iria? Para o teatro, é certo, onde minha irmãzinha já passava boa parte de seus dias e noites – como estava naquele dia, pelo que era grata... Mas para onde Erik iria? O que se passaria com meu Fantasma? Essa era a pergunta que mais me atormentava.