POV Annika

Acordei com o som de água vindo de algum lugar próximo. Ainda entorpecida pela medicação, mas descansada como não me sentia há muito tempo, sentei-me na cama – como era confortável! – e procurei por Gabrielle; como se respondendo à pergunta que eu não fizera, minha pequena entrou no quarto, vinda de um aposento adjacente no qual eu ainda não reparara, e do qual vinha o som de água. Imaginei que se tratasse do banheiro.

Reparei logo nas roupas que minha irmã vestia: não eram as que usava no dia anterior! Agora, envergava um vestido azul, longo, simples, porém bonito, uma roupa como não tivera nos últimos nove anos. Seus cabelos estavam penteados e presos com uma fita da mesma cor do vestido; imaginei que Madame Tremain houvesse trazido aquelas vestes para ela. Certamente não fora nosso patrão. Abrindo um largo sorriso ao ver que eu despertara, minha querida gesticulou para mim:

– Até que enfim, dorminhoca! Faz quase um dia! Madame Tremain trouxe roupas para nós; venha tomar um banho.

Levantei-me devagar, letárgica, e logo Gabrielle praticamente arrancava minhas roupas, empurrando-me para o banheiro. Ah, mas ninguém me obrigaria a tomar aquela droga de sedativo outra vez! Minha cabeça girava e, embora não sentisse dor alguma, eu preferia ser espancada novamente a experimentar a desorientação que me tomava!

Despertei um pouco de tal torpor ao entrar na banheira; a água estava morna, como gostava, e Gabrielle – animada como eu não a via há muito tempo – entrou logo atrás de mim, segurando nas mãos um vestido creme com renda branca, que era a vestimenta mais bonita que eu já vira. Ah, não! Eu não poderia vestir algo tão delicado e bonito! Onde Madame Tremain encontrara uma peça tão linda?!

Ela escolheu este especialmente para você, irmã – gesticulou minha irmãzinha, colocando o vestido sobre um banquinho, juntando a ele anáguas, combinação e roupas de baixo. Eu nem me lembrava de quando vestira algo melhor do que as roupas surradas do prostíbulo, e sentia-me indigna de usar peças tão bem feitas, que poderiam vestir a mais delicada das damas. Gabrielle percebeu meus pensamentos, pois me censurou – Deixe de tolice, Annika! Ela nos trouxe roupas boas para vestir, está sendo muito gentil; recusar seria uma afronta ao cuidado que teve para conosco.

– E desde quando você é tão sensata, abelhinha? – chamei-a por seu apelido de criança, o que a fez sorrir. Mas o que havia deixado a pequena tão feliz?

– Uma de nós tinha de ser. Não seria você, tentando se matar como tem feito. – diabinha atrevida! Já estava a me provocar novamente!

Após me banhar, contei com a ajuda de “abelhinha” para me vestir. Havia acabado de atar o cordão dourado do corpete quando ouvi batidas à porta, seguidas da voz da senhora que cuidara de mim no dia anterior:

– Eu posso entrar, meninas?

– Sim, Madame, por favor! – respondi, ajeitando a saia do traje. Pronta, virei-me para o grande espelho na parede, e quase não me reconheci! Apesar do hematoma em meu rosto, e das olheiras ainda presentes, eu parecia muito melhor: havia recuperado a cor, e as marcas em minha pele estavam mais claras. O vestido assentava em meu corpo magro de forma elegante, escondendo os ossos que insistiam em aparecer por sob a pele, dando-me um aspecto saudável que não tinha desde os doze anos. A senhora me contemplou com satisfação, e exclamou:

– Ah, mas ficou perfeito! Está linda, menina!

– Obrigada, Madame – falei, de olhos baixos. Não tinha coragem de encarar uma mulher honesta nos olhos, pois sentia-me imunda e indigna – mas é um vestido tão bonito! Não sei se eu deveria usá-lo... É lindo demais!

– Assim como você – disse Madame, virando-me outra vez para o espelho – Além disso, o patrão insistiu em que você o usasse, hoje.

– O quê?! – eu estava entre surpresa e zangada: ao mesmo tempo em que não entendia por que ele se importava com minha aparência, ficava furiosa com a falta de limites daquele homem; já não lhe bastava ter-me tirado a liberdade que estava tão próxima, agora tiraria até meu direito de escolher o que vestir?!

– É melhor aceitar, criança: se vai ser a criada pessoal de Messieur Destler, deve se vestir como tal. Ele não tolera a negligência com o bom gosto. É um homem refinado, e exige que seus serviçais se mostrem sempre elegantes. Isso agora inclui você.

Bufei, irritada com tamanha frivolidade, ao mesmo tempo em que me intrigava com o modo de ser daquele mascarado estranho, e me fascinava também. Eram muitos sentimentos em relação a uma pessoa só, e creio que eu poderia ter atirado outro vaso nele, se o visse na minha frente. Sim, confesso que tenho reações exageradas, por vezes, mas meu novo dono conseguia pôr abaixo meu bom-senso e fazer-me sentir com clareza cada uma das violentas emoções em meu interior. Talvez fosse apenas frustração por ver a liberdade outra vez tão longe de mim e de Gabrielle, mas uma vozinha irritante insistia em dizer que não era apenas isso. Erik era, para mim, um desafio e um enigma, e eu tinha uma patológica necessidade de vencer desafios, e desvendar enigmas.

– Acha que já está bem para deixar o quarto? – era impossível não pensar em minha mãe, ante os cuidados daquela mulher mais velha, tão gentil com seus sorrisos calorosos. Como uma pessoa como ela podia trabalhar para alguém como Erik?

– Ficar deitada não é de meu feitio, Madame. – respondi – E estou bem melhor.

– Ótimo! – ela retirou um envelope do bolso, e mo estendeu – Messieur Destler teve de ir à Ópera, e deixou isto para você.

Peguei o envelope, agradecendo, cheia de curiosidade: o que teria ele a me dizer? Abri a carta – que estava lacrada com uma macabra caveira vermelha – e li em silêncio o que dizia:

Srta. Annika

Espero que esta carta a encontre bem disposta e fortalecida. Minhas obrigações na Ópera me manterão fora por todo o dia, de sorte que lhe remeto esta carta com orientações para sua nova vida.

Primeiramente, devo lembra-la de que me pertence, e sou extremamente possessivo e ciumento daquilo que é meu; não pense, portanto, em algo tolo como uma tentativa de fuga, pelos motivos que já discutimos. Creia-me: eu a encontraria, e seria obrigado a tomar medidas desagradáveis.

Uma vez que sua saúde debilitada exige cuidados constantes, Madame Tremain permanecerá em minha casa por todo o dia, até que seus cuidados não sejam mais necessários. É uma mulher boa e digna: trate-a bem, e ouça seus conselhos. Ela lhe dirá o que fazer, e quais serão suas atribuições.

Quanto à sua indumentária, Madame lhe trouxe vestimentas adequadas, assim como para Gabrielle. Certamente não é o tipo de traje ao qual está acostumada, mas faço questão de que meus funcionários se apresentem dignamente vestidos. Portanto, quando retornar, espero encontrá-la adequadamente trajada.

Ademais, peço-lhe que se sinta à vontade para conhecer o sobrado; exceção feita aos meus aposentos privados, no segundo andar, não lhe faço restrições na casa. Conheça-a bem: vai passar muito tempo nela.

Esperando que tenha um bom dia

O.

Inacreditável! Ele continuava a me ameaçar e controlar, mesmo à distância! Por sob as palavras elegantes em caligrafia fluente e masculina, estava a clara ameaça de entregar minha irmãzinha outra vez ao inferno onde vivíamos, se eu o desobedecesse. Cretino! Calhorda! Ele não perdia por esperar: eu encontraria um modo de escapar, mesmo se isso levasse muitos meses, ou mesmo anos. E, quando chegasse a hora, eu o faria pagar por ousar ameaçar Gabrielle!

Por hora, contudo, estava de mãos atadas; não havia me recuperado totalmente, e sequer sabia em que parte da cidade ficava a casa. Enquanto não tivesse meios de fugir, seria a melhor das serviçais – pelo bem de minha pequena – apenas para que, em algum momento, ele enfim se descuidasse, facilitando nossa partida. Sim, é verdade que me socorrera, mas isso não acalmava o ódio em minha alma. Ódio sim, pois nada além disso podia ser despertado em mim, quando algo ameaçava Gabrielle. Ela era tudo para mim: minha família, minha irmã, minha razão de viver. Ameaçá-la era o mesmo que declarar-me guerra; e se meu novo senhor, aquele Messieur Destler queria guerra, iria descobrir que eu não era uma oponente fácil de vencer.

O que ele lhe diz, Annika? – perguntou-me Gabrielle, curiosa. Eu lhe sorri, ocultando minha raiva, e respondi:

– Apenas diz esperar que eu esteja bem, querida, e que Madame Tremain há de me ensinar quais são minhas funções, na casa. Nada demais; ah, sim! Também deixou claro seu desejo de que, a partir de agora, nós nos vistamos adequadamente. O que, graças à Madame, já estamos fazendo. – eu lhe beijei a testa, tentando parecer tranquila – e finalmente, diz-me para conhecer bem a casa, uma vez que começarei a cuidar dela.

A senhora de cabelos grisalhos me olhou com aprovação, antes de falar enfim:

– Bem, se Messieur deseja que assuma logo suas funções, Annika, é melhor que conheça a casa. – e se dirigiu à porta – vem comigo?

Dando de ombros, segui a mulher. Hora de assumir o papel de serva obediente, na melhor atuação que eu já fizera em minha vida.

*

A casa era bastante grande e, devo reconhecer, mobiliada com o melhor dos gostos. Messieur Destler podia ser um patife desprezível, mas tinha muito bom gosto, de fato. Devia ser um nobrezinho rico e mimado, como tantos outros por aí, que encontrava no tédio a motivação para seu gosto em me ferir. Esses pensamentos, contudo, guardei para mim mesma, enquanto seguia a senhora Marguerite pela casa.

O piso inferior, que eu já conhecera em parte, consistia em duas suítes de hóspedes, uma sala de estar grande – onde um sofá e duas espreguiçadeiras se distribuíam ao redor de uma mesinha de centro, voltadas para a grande lareira -, uma sala de jantar – na qual figurava uma mesa longa de ébano, com seis cadeiras da mesma madeira, com estofamento em veludo vermelho-escuro - e uma cozinha. Da sala de estar, uma escada levava ao segundo pavimento: ali, além dos aposentos particulares do senhor, que me estavam vetados, havia uma sala de música – um piano de cauda ocupava a posição principal, mas vi ali também um violino, uma flauta transversa e uma harpa, além de estantes cheias de partituras – e, para minha euforia momentânea, uma biblioteca que devia conter mais volumes do que eu podia contar! Gabrielle parecia já ter estado ali, pois foi direto até uma das prateleiras, da qual retirou um volume com encadernação em couro azul.

– Mas já está se sentindo em casa deste modo, abelhinha? – perguntei-lhe, surpresa em ver como a pequena, sempre tão retraída e assustada, parecia à vontade naquele lugar. Ela me sorriu e gesticulou:

– Messieur Erik me mostrou a biblioteca, e disse-me que podia ficar à vontade para ler o que quisesse, se pusesse o livro no lugar, outra vez. – seu rosto de menina refletia uma alegria que eu nunca vira antes – Ah, Annika! Ele é um homem completamente diferente de todos os outros!

“Sim” – pensei comigo mesma – “É um manipulador barato, que finge para uma criança enquanto a usa para chantagear sua irmã” – ainda assim, não pude deixar de me sentir grata a meu carcereiro, por proporcionar aquela alegria a Gabrielle. Mas o que estava pensando?! Grata a ele?! No dia trinta de fevereiro, com sorte!

Madame Tremain nos levou de volta ao primeiro andar; reparei numa porta cuja presença me passara por despercebida, e que conduzia a um jardim nos fundos do sobrado; estava abandonado e malcuidado, mas devia ter sido muito bonito, no passado, com as roseiras que agora estavam sufocadas por ervas daninhas, e uma fonte em forma de Vênus que já não vertia água. Não pude deixar de ter pena das plantas que, presas pelas parasitas, já não floriam mais. Sabia exatamente como elas se sentiam...

– Bem, crianças, esta é a casa. Não está muito bem cuidada, admito, mas, com minha idade, faço o que posso. – disse-me, enfim, a senhora, sentando-se num dos bancos do jardim.

– Faz mais do que deveria, senhora – eu lhe respondi, sem deixar transparecer exatamente o que pretendia dizer. – posso lhe fazer uma pergunta?

– É claro, menina.

– Reparei nos quartos de hóspedes... São bem diferentes entre si. Aquele que divido com Gabrielle é bastante sóbrio, mais impessoal... O outro parece que foi ocupado recentemente. Tem objetos pessoais e... E eu vi um nome escrito no porta-joias. Christine, acho que era isso.

Madame suspirou, e reparei num grande pesar em seus olhos; ao me fitar, parecia preocupada e desgostosa:

– Não fale com o patrão a respeito disso, menina, e menos ainda que lhe contei algo! Ele preza muito sua privacidade, e o assunto Christine é algo doloroso, para ele. Vamos apenas dizer que ele praticamente criou a menina: amava-a de todo o coração, e fez por ela o que nunca havia feito por ninguém. Mas a garota o deixou. Ela partiu seu coração, e não é algo do qual Messieur Destler goste de se lembrar. Não mencione Christine para ele.

Eu apenas anuí, sentindo uma leve pontada de maldade: assunto doloroso, então? Pois muito bem... Talvez houvesse ali uma pequena chance de me vingar – nem de longe do modo como eu desejava, é claro – pela perda da chance de me libertar, e pelas ameaças feitas a minha irmã. E isso sem qualquer risco para ela, afinal, a ignorância não é um crime. Ah, sim! Erik Destler, você não perdia por esperar!