Gabrielle lançou um olhar malicioso para a irmã, quando esta entrou no quarto da menina. Com voz de provocação, perguntou:

– E então? O que aconteceu entre você e certo Fantasma, que os prendeu por mais de um dia nos subterrâneos?

– Não o que está pensando, diabinha. – disse Annika, que já se maquiara e penteara os cabelos, para esconder as olheiras da ressaca. – Nós conversamos.

– Conversaram? Você fica sozinha com o homem que ama, e vocês dois conversam?

– Sim, conversamos!

– E sobre o que? – Gabrielle era insistente até demais! Garota obstinada!

– Sobre o passado. O dele, o meu... – Gabrielle saltou da cadeira, quase derrubando-a:

– Você TEM DE ME CONTAR TUDO!

Rindo, a mulher se sentou na cama da menina e lhe contou em alemão – a fim de garantir a privacidade da conversa – tudo o que se passara entre ela e o Fantasma. A menina riu ao saber da ressaca da irmã, e se horrorizou com a história de seu professor. Quando finalmente a mais velha terminou o relato, a caçula perguntou:

– E agora?

– Agora ele foi para casa, e eu estou aqui, sem ter ideia do que fazer. Ora, bolas, Gabi, eu confessei que o amo!

– E ele?

– Chorou como uma criança. Acho que ninguém nunca disse isso, para ele.

– Bom, ele realmente deve se sentir um monstro, com tudo o que já sofreu. Talvez você possa leva-lo para algum lugar onde ele se sinta bem.

– Algum lugar que signifique algo... Que o faça sentir-se especial... – a mulher pensou, sua mente trabalhando freneticamente por alguns minutos – é claro! Sei aonde leva-lo! A Torre!

– Como arquiteto, ele vai adorar. – respondeu a menina, e adicionou um toque de malícia à própria voz – sugiro que reserve uns três ou quatro dias de folga...

– Você é um monstro, Gabrielle! – censurou a mais velha, gargalhando – criei uma monstrinha!

– que você adora. – disse a menina, com ar de inocência.

– Com certeza – Annika abraçou e beijou a irmã. Impossível dizer o quanto amava aquela traquinas, e como se alegrava em vê-la rir e brincar, a despeito de tudo o que haviam enfrentado. – Agora, sem brincadeiras: ficaria bem, se eu me ausentasse por um ou dois dias?

– Acho que sobrevivo. – respondeu Gabi, desfazendo a própria trança e penteando os cabelos – não é como se não houvesse Madame Giry, Meg e Isabelle cuidando de mim o tempo todo, sem falar nas professoras e tutores... Você tem uma legião para me vigiar!

– E ainda assim, você foge para ver os Garotos do Beco.

– Com os quais estou mais segura do que aqui. – respondeu a pequena, e Annika sabia que era verdade – sei que tem medo que algo me aconteça no caminho, mas Renard ou Charles vêm me buscar todas as vezes. Eu nunca estou sozinha, e vamos sempre pelos telhados. Você pode sumir sem nenhuma preocupação, por uns dias. Vá ser feliz, Annie. Viveu os últimos dez anos para me proteger... Agora, tem de cuidar de si mesma, maninha.

Com um sorriso, a dama afagou o rosto da mais nova, admirando-lhe a sensatez e os cuidados que tinha para consigo:

– Meu pequeno anjo. Sabe que eu nunca teria conseguido sem você, não sabe?

– Teria sim, Annie. Desistir e aceitar a derrota não está no seu sangue, como não estava no de mamãe, como você mesma me contou. Teria escapado, e teria sido vitoriosa, porque a grandeza está dentro de você. – a pequena amarrou os cabelos com uma fita branca, e beijou o rosto da irmã – Mas acho que você tem um ensaio, agora, e eu tenho aula de violino!

– Bons estudos, abelhinha. – a menina saiu aos pulos para o corredor, mal ouvindo quando a mais velha avisou - E nada de tachinhas na cadeira da colega, desta vez!

Rindo ante a empolgação da mais nova, Annika desceu para o salão de ensaios da orquestra; a essa hora, só havia o maestro, que ia ouvi-la tocar como de costume, corrigir suas falhas e prepara-la para a próxima apresentação, dentro de dez dias. Enquanto fazia seu caminho, planejava detalhadamente o passeio que pretendia fazer com seu amado.

*

–Annika, aonde estamos indo? – perguntou Erik pela décima vez, sentindo-se aflito por estar tão exposto. A mulher apenas riu e incitou César a ir mais depressa, impedindo Erik de lhe tomar as rédeas da mão:

– Pare com isso, curioso! Eu já disse que é uma surpresa!

– Você já me causa surpresas suficientes, sem me levar para espaços abertos, em plena luz do dia. – protestou ele, sem conseguir tomar as rédeas.

– Não seja tão frouxo; hoje está até nublado!

– Não me refiro ao Sol, e você sabe disso.

– Bom, vão reparar muito mais num casal brigando sobre um cavalo do que num mascarado. Tente ser discreto! – repreendeu ela, enveredando por mais uma rua, e perguntando enfim – conhece esta avenida?

– É a Champs-Élysées - Respondeu o músico, entre irritado e curioso – só a avenida mais movimentada de Paris. O que estamos fazendo aqui?

– Já vai ver.

Annika ignorou os protesto do Fantasma, que enfim desistiu e se calou, apenas segurando-se à cintura da moça para manter o equilíbrio, enquanto ela dirigia o cavalo através da avenida cheia de transeuntes. Ao longe, a figura da Torre Eiffel se erguia, cada dia mais próxima de sua finalização.

Foi só quando chegaram ao Campo de Marte que, enfim, a mulher parou a montaria. Estavam muito próximos do local de construção da Torre – tão perto quanto a área de segurança permitia chegar – e era impressionante ver o modo como o monumento de ferro se erguia acima da cidade, cada vez mais alta e imponente.

– Aqui estamos! – disse Annika, divertindo-se com o interesse e fascínio nos olhos do Fantasma – era isso o que eu queria lhe mostrar! Aposto como ainda não havia chegado tão perto!

– Li tudo a respeito desta obra, mas nunca a vi tão de perto. – respondeu ele, aproximando-se tanto quanto possível, parecendo esquecido da máscara que o destacava na multidão. A fim de proteger seu amado, Annika se aproximou dele de modo que parecessem um casal normal, o que fazia as pessoas não se demorarem encarando, e sequer repararem no objeto sobre o rosto do músico, que se perdia em admiração – arquitetura do ferro. Mais maleável e resistente do que qualquer recurso em pedra, pode permitir quase qualquer forma, alcançar curvaturas e torções inéditas... – murmurou ele – construída com sistema de rebites, fixados ainda quentes pra que, ao esfriarem, travem a estrutura completamente.

– A maior parte das peças já vem pronta das fábricas – comentou a jovem, mostrando que também sabia sobre a construção, e que podia dividir isso com ele – são montadas aqui no lugar. Geralmente, precisam de quatro homens para fixar cada parte. – e apontou para o lugar onde mais uma peça era fixada – olhe lá! – eles assistiram a todo o processo de colocação da barra e moldagem dos rebites, com um sorriso que só os que amam esse tipo de arte poderiam ter – incrível!

O artista tinha um sorriso verdadeiro no rosto, e passou um braço pela cintura da mulher ao seu lado, agradecido, antes de perguntar:

– Como sabia que eu ia gostar de ver?

– Com todas as plantas e projetos que vimos na Casa do Lago, e sabendo que você é um arquiteto? Era um pouco óbvio.

– É esplêndido – disse o músico, seus olhos dourados brilhando de encantamento – algo totalmente novo. A tecnologia das pontes aplicada, pela primeira vez, em um monumento civil. Veja as formas, Annika! Com nenhum outro material poder-se-ia alcançar tão facilmente essa curvatura em arco de parábola! Nem os romanos, com seu concreto pozolânico, alcançaram tal grau de precisão.

– E ainda assim – começou a pianista, de modo quase inocente – Muitos se opõem à construção desta torre.

– Como assim, se opõem? – se o Fantasma lera tudo o que pudera sobre a construção, o mesmo não dizia respeito à opinião pública acerca desta. – Quem se oporia a tal mostra de engenho, de evolução?

– Aqueles que dizem ser a torre um monstro de ferro a se erguer sobre Paris, humilhando monumentos históricos como a Notre-Dame e o Louvre. O jornal Le Temps disse mesmo que ela enfeará a cidade, como uma mancha de tinta em nosso horizonte, acabando com a beleza tradicional de Paris.

– Isso é ridículo! Essa torre representa o futuro, o progresso, o domínio de novas artes e novas técnicas! A beleza disso...

– Está além do que os olhos podem ver. – completou Annika, acariciando ternamente o rosto do Fantasma – Exatamente. Nem tudo o que é belo pode ser imediatamente admirado; existem belezas que precisam de olhos que saibam como vê-las... Olhos que saibam ver a beleza escondida, e o valor de algo além da primeira impressão que isso lhe passa. – ela tomara a mão de Erik, e acariciava a palma de seu amado com movimentos suaves dos dedos – A torre é enigmática, surpreendente, difícil de compreender. Alguns tolos talvez a vejam como um monstro, mas ela é uma obra-prima. Basta saber ver a beleza escondida... – e seus olhos se encheram de um segundo significado, que tocou o coração do Fantasma. Ele compreendeu porque a moça o levara ali, e seu coração se enterneceu... Annika só podia ser um anjo bom!

– Eu sei o que está tentando fazer, Annie. – sussurrou ele, virando-se de frente para a moça e segurando-lhe a cintura – E fico grato por isso. Você é um anjo bondoso, minha dama.

Ela sorriu e fechou os olhos, saboreando a carícia em seu rosto; nunca teria esperado, porém, o delicado beijo que Erik deu em seus lábios, pouco mais que um leve toque mas, ainda assim, uma carícia que fez seu coração acelerar.

Ficaram ali por mais algum tempo, assistindo à montagem do monumento e discutindo sobre os processos de construção do mesmo, até que o Sol subiu a pino. Neste momento, Annika convidou o Fantasma para almoçar com ela num restaurante próximo; ele tentou declinar, mas a mulher foi mais insistente:

– Você viu que as pessoas não reparam. Se nos tomam por um casal, desviam logo os olhos por questão de respeito, e mal reparam em sua máscara. Enquanto estiver comigo, você estará seguro!

Fazendo troça da moça, ele a colocou sobre César outra vez e devolveu:

– Não sei o que eu faria, sem essa dama corajosa para me proteger. – e ainda rindo, montou logo atrás dela – Montada de lado, desta vez, pode ser?

– Odeio montar de lado. – respondeu Annika, fingindo mau-humor – vai precisar guiar o cavalo.

– Será um prazer, mademoiselle. – pela primeira vez em muito tempo, o Fantasma não tinha medo de se expor. Sabia que as palavras de Annika eram verdadeiras e, de qualquer forma, a última coisa que queria era estragar o passeio com a moça. No centro de Paris as pessoas não eram tão atentas à vida das outras, quanto no pequeno mundo do teatro. Ali, ninguém o associaria ao Fantasma da Ópera.

*

O almoço se transcorrera sem incidentes. Exceto pela pequena discussão entre o fantasma e sua serva, que desejava pagar a refeição uma vez que fora a responsável pelo convite – discussão que terminara com um acordo onde dividiram o valor entre ambos, após muitos sussurros zangados em alemão – haviam conseguido conversar sem brigas, e um clima leve se instalara no lugar. Terminada a refeição, decidiram deixar o centro da cidade e, para a surpresa da mulher, Erik lhe pediu que fosse consigo para o sobrado, ao que ela acedera.

Levaram César ao estábulo juntos, e juntos também cuidaram do cavalo, escovando-o e mimando-o, antes de irem de braços dados para a casa que, na mente de Annika, ainda tinha conotação de lar. Ela nunca vira seu amo tão feliz e sereno, e quase temia que isso fosse terminar em outro rompante de raiva, coisa que não dera sequer indícios de acontecer.

Foi com surpresa que ela constatou a ordem e limpeza da casa e, quando Erik a levou ao jardim, percebeu que este continuava intacto!

– Você cuidou do jardim...

– Não podia deixar morrer o milagre que você e Gabi criaram, podia? – ele se aproximou de um dos canteiros, onde crescia um cardo – mas não tive coragem de arrancar esta erva daninha. De certo modo, ela me lembra você.

– O quê?! – apesar do tom de brincadeira, a pianista se sentiu levemente ofendida – quer dizer que eu sou um cardo?

– Com certeza – afirmou Erik – espinhenta, difícil de se aproximar, fere quase só com um olhar... – ele então ergueu um ramo da planta, onde crescia uma linda flor arroxeada – mas, se olhar melhor, e estiver disposto a se ferir nos espinhos, vai encontrar uma das mais lindas flores.

Aquele comentário tocou profundamente o coração da moça, que repreendeu a si mesma, em pensamento: ele estava apenas sendo gentil. Não significava que correspondesse de qualquer forma a seus sentimentos! Não podia ser tola, e agir como uma menininha apaixonada!

A fim de se distrair dos pensamentos perturbadores que tão simples elogio despertara, ela se sentou à margem da fonte e, com ar de pura inocência, jogou água no Fantasma. Ele a ignorou, então ela repetiu o gesto uma e outra vez. Quando o músico enfim se voltou para ela, a artista percebeu que passara dos limites, e que isso teria troco: ele tinha um sorriso divertido e levemente cruel no rosto ao se erguer e vir atrás da dama, que tratou de correr. Porém, tropeçou na barra do vestido – droga de saia longa! - e os braços do fantasma se fecharam ao seu redor, tirando-a do chão.

– Não! Erik, largue-me! – ela esperneou e tentou se soltar, mas ele só ria e a arrastava consigo:

– Vamos esfriar um pouco esse seu ânimo, Annika! – e com essas palavras, jogou-a dentro da fonte, o que rendeu uma torrente de palavrões em alemão enquanto a moça saía da água gelada, ao som dos risos do Anjo. Já o ouvira rir mais vezes em seus dois últimos encontros, do que em todo o ano anterior.

– Idiota – finalizou ela, torcendo a saia – agora estou encharcada!

– Não faça drama. É só se trocar. – respondeu ele, dando de ombros.

– Não deixei roupas aqui, lembra-se? – Não, o Fantasma não se lembrava, e sentiu uma pontada de culpa, naquele momento. Annika não podia ficar molhada como estava, uma vez que o outono começara, e trouxera consigo ventos bastante frios... Mas se não havia vestidos por ali, então precisaria deixa-la usar uma roupa sua... Sua pequena brincadeira, agora, tornara-se constrangedora para a dama.

– Precisa se secar. – disse ele, envergonhado – mas acho que... Bom, se não há vestidos... Talvez deva usar uma roupa minha, até seu vestido secar. - A moça corou ante a ideia, mas acabou aceitando; já estava com frio, e não podia ficar encharcada daquele jeito. Mesmo com vergonha, anuiu.

Erik lhe deu uma camisa longa, de gola fechada, e uma calça que, certamente, seria grande demais para ela. Mas era bem melhor do que um vestido pingando água! Fechando-se no quarto, ela tirou o vestido, a anágua, a combinação e as roupas de baixo – merda, nem as roupas de baixo haviam se salvado! – e, após se secar com uma toalha, vestiu as roupas de Erik. Ficaram grandes para ela, mas a aqueceram e fizeram cessar o tremor, mesmo quando saiu do quarto. Erik teria rido da figura da jovem, enfiada em roupas onde caberiam ela e Gabi juntas, se a visão dela com uma camisa sua não lhe houvesse trazido pensamentos indiscretos... Mas que inferno! Por que a moça tinha aquele efeito sobre si?! O fato de os seios bonitos se delinearem despudoradamente contra o tecido de seda não ajudou, é claro...

Tentando recuperar o ambiente leve e descontraído que houvera mais cedo, percebendo a tensão de seu amo, a própria Annie fez uma piada:

– Acho que vou chamar Gabi, porque cabemos nós duas aqui dentro. – e cruzou os braços, consciente do quão pouco a roupa masculina escondia seu corpo – mesmo assim, obrigada. Está bem mais quente do que o vestido molhado.

– Perdoe-me pela brincadeira. Achei que tinha roupas aqui. – ele se sentia um pervertido, e culpava-se por isso. Annika não era uma mulher qualquer, e merecia mais consideração e respeito de sua parte! Mas como não se sentir atraído por ela?!

– Ah, não é a primeira vez que uso calças. Na verdade, são mais práticas que saias – disse ela, sentando-se no sofá e reparando no o bule fumegante sobre a mesinha de centro – o que é isso?

– Para se aquecer. – respondeu o Fantasma, servindo um pouco do chá escuro para a dama – devia-lhe isso, depois de quase mata-la de pneumonia.

– Você me subestima, Fantasma. – disse Annika, aceitando a xícara que ele lhes estendia e chegando para o lado, para que ele pudesse se sentar consigo. Desde quando haviam ficado tão íntimos? Desde a casa do Lago, talvez? Não tinha certeza, mas estava gostando muito.

– Devia deixar-me cuidar de você. – a mão grande pousou na nuca da moça, causando-lhe um arrepio involuntário – Já que nunca deixou que outros o fizessem. – ele a fez erguer o rosto, contemplando com fascínio os olhos azuis da dama, tão próximos dos seus... Nunca vira olhos tão cheios de força, paixão e inteligência, antes. Annika era uma bela mulher, mas seus olhos eram, certamente, a parte mais marcante de sua aparência, perfeitas janelas para a alma de aço que o aspecto delicado ocultava.

A pianista o encarou de volta, mergulhando nos hipnóticos olhos dourados que, no momento, tinham uma encantadora mistura de desejo, admiração, curiosidade... Ele era um curioso inveterado, e tentava descobrir a alma de Annika com aquele olhar. Mas ela não deixava por menos, e fazia o mesmo; após tudo o que ouvira na Casa do Lago, Erik já não era um mistério tão grande assim... Mas ainda havia muito a descobrir sobre tal homem, e ela desejava ardentemente trilhar cada passo dessa descoberta.

De repente, sem que soubessem como, já não estavam se encarando, e sim, se beijando. Não um beijo casto, mas ardente e profundo! As mãos do músico a cingiam pela cintura, e ela subiu em seu colo, envolvendo o corpo masculino com as pernas; o recato e o bom-senso exigiam que parassem, mas agora não havia ninguém para os interromper, nem segredos para os impedir. Conheciam um ao outro, e queriam-se exatamente como eram. O beijo se tornava mais passional, à medida que as carícias começavam a acompanhar sua intensidade, e quando o Fantasma se levantou, segurando a mulher no colo e dirigindo-se para as escadas, os dois souberam que haviam passado de um ponto sem retorno.