Annika acordou sentindo os braços de Erik ao seu redor. Com extremo cuidado, para não acordá-lo, virou-se naquele abraço de modo a poder contemplá-lo: estava sem máscara, coberto até a cintura com os lençóis vermelhos, e parecia tão calmo, tão indefeso e vulnerável em seu sono, que ela sorriu ternamente. Ele resmungou ao sentir a jovem mudar de posição, e passou a perna sobre as dela, como se para garantir que ela não sairia dali. Como se a pianista pretendesse fazê-lo!

Sentindo-se aconchegada e protegida como jamais acontecera antes, ela aninhou a cabeça na curva do pescoço de seu amado e fechou os olhos, deliciando-se com a sensação de suas peles se tocando, dos braços dele a apertarem-na pela cintura, protetores e possessivos. A respiração leve fazia cócegas em seu pescoço, e ela não se lembrava de já ter estado tão feliz! Ficou ali, apenas observando-o dormir durante um longo tempo, recordando-se da noite anterior: após uma tarde de amor, haviam se banhado juntos, e ela insistira em que jantassem. Fora para a cozinha usando apenas a camisa de Erik, para provoca-lo enquanto ajeitava o jantar, no que ele a ajudou, prestativo... Mas com tantas carícias e beijos, a refeição acabara bastante atrasada. Após o jantar, subiram para a sala de música, onde Erik lhe mostrou, tímido, a composição que começara. Juntos haviam desfrutado de doces momentos musicais, antes que o apelo do prazer encontrasse outros usos para a espreguiçadeira do aposento... Entre música e amor, haviam permanecido ali até de madrugada, quando então ele a carregara para o quarto e a deitara na cama, juntando-se a ela num abraço gentil. Como o mais perfeito Anjo da Música, cantara suavemente aos seus ouvidos, até que ela adormecera naqueles braços, feliz e protegida.

Perdida em admiração ao rosto de seu Anjo – que para ela nada tinha de horrendo, mas sim, de fascinante... Tal qual os mistérios do monumento que haviam visitado, no dia anterior – abriu um sorriso ao ver os olhos dourados se abrirem e a fitarem profundamente, a princípio com confusão e, depois, com genuína felicidade.

– Diga-me que não é um sonho. – pediu ele, aninhando a mulher ainda mais em seus braços.

– Se for, nós o compartilhamos, e eu nunca mais quero acordar. – devolveu ela, beijando os lábios do Fantasma. Tomado pela mesma felicidade de sua amante, ele correspondeu ao beijo e se colocou sobre ela, sentindo a maciez e o calor do corpo sob o seu, sentindo-se aconchegado, seguro e amado ao perceber as mãos que o abraçavam tão ternamente. Cheio de carinho, fez uma trilha de beijos pelo pescoço da moça, antes de perguntar:

– Feliz? – ele a envolveu pela cintura e virou ambos na cama, deitando-a sobre seu peito enquanto penteava com os dedos as longas ondas douradas. Ele, que aprendera a temer e odiar o toque de outras pessoas, sentia-se no paraíso ao contato daquele anjo encantador, e ansiava por mantê-la junto a si, tanto tempo quanto pudesse! Se dependesse de sua vontade, nunca mais se levantaria daquela cama, mantendo a linda Annika consigo ali, longe do mundo e das outras pessoas.

– Mais do que fui, em qualquer época de minha vida! – respondeu ela, beijando-o com carinho e afagando o rosto marcado com as costas da mão. Não tinha palavras para descrever não apenas o quanto amava aquele homem, mas o quão grata era a ele, por tê-la tirado do inferno e a levado a um lugar que, se não fosse o paraíso, estava bem próximo de lá. – E você?

Erik não respondeu de imediato: apenas sorriu e, tomando-lhe os lábios com paixão, amou-a outra vez, sussurrando ao ouvido da moça o quão maravilhoso era tê-la consigo, o quanto a admirava, como fora tolo em pedir que deixasse a casa, como já não conseguia se manter longe dela... Falou todas as verdades que só a paixão poderia fazê-lo exprimir, palavras que foram apenas parcialmente ouvidas, em meio a gemidos e beijos profundos. Sim, ele estava feliz... Mais feliz do que jamais fora. Provavelmente, muito mais feliz do que merecia.

*

Manhosamente estendida sobre dois travesseiros, Annika abraçou o objeto macio e sorriu para Erik, que acariciava-lhe o dorso com as costas dos dedos. Vendo as longas cicatrizes de açoite que marcavam a pele clara da mulher, tomava cuidado dobrado para que seu toque fosse o mais suave possível. Traçou com os lábios o desenho da maior das marcas, que ia do quadril ao ombro, percebendo o arrepio na pele de sua amante quando o fez, o que lhe arrancou um sorriso. Envolvendo a cintura curvilínea com o braço, sussurrou ao ouvido dela:

– Queria reter este momento pela eternidade, minha Annika.

– Então, somos dois – ela se virou de costas na cama, de modo a encarar o músico. Ele estava tão sereno e feliz, que não parecia ser o mesmo homem com quem tivera brigas tão violentas. Com um beijo no rosto dele, a pianista rolou para a borda da cama e se levantou, sorrindo – não vai se levantar hoje, preguiçoso? – a visão do corpo nu de Erik estendido sobre a cama era um deleite para a jovem, especialmente quando um espreguiçar fingido ressaltou os músculos dos braços e tronco...

– Eu não teria problema algum em ficar nesta cama para sempre – ele se levantou e agarrou a moça pela cintura – desde que a mantivesse comigo.

– Na cama, pela eternidade? – perguntou ela, rindo – deixe de preguiça! – e com alguma dificuldade em se “desvencilhar” de seu amante, a moça conseguiu descer para o piso inferior (vestida apenas com uma camisa do Fantasma) e colocar suas roupas íntimas e combinação. Teria posto o vestido, também, mas ia precisar dele para voltar ao teatro, no dia seguinte... Bom, paciência... Teria de usar só combinação. Não que Erik fosse realmente se opor à ideia, afinal...

Ao chegar à sala, encontrou o Fantasma reclinado na espreguiçadeira, com alguns papeis em mão; estava de máscara, vestindo calça e camisa, e usava um pedaço simples de carvão, tirado do fogão à lenha, para desenhar algo que ela não podia ver. Com um olhar enigmático, ele a fitou por alguns segundos – não um olhar apaixonado ou desejoso, mas como se a medisse de alto a baixo – antes de retornar a atenção ao que fazia. Curiosa, Annika se aproximou e debruçou-se por sobre o ombro do artista; naqueles poucos minutos que passara no quarto, ele fizera um belo desenho: uma mulher, deitada nua num leito de modo que os lençóis só cobrissem suas partes mais íntimas. A luminosidade que parecia cerca-la dava um ar quase angelical às formas em preto e branco. E não obstante devesse ser um desenho sensual, a mulher no desenho – que era ela, a própria Annika! – não emanava sedução, mas sim, uma beleza pura, inocente e despretensiosa. Aquela mulher era bela por ter nascido assim, e expunha-se em inocência que não havia mais nos dias que corriam!

– Erik... – ela começou a falar, mas não teve palavras. Era assim que ele a via, então? Como podia vê-la daquela forma, com todo o seu imundo passado? – O que é isso, meu amor?

– A beleza escondida, minha Annika. – respondeu ele, acariciando a mão da mulher e puxando-a para seu lado, sentando-a consigo – a inocência que você esconde, mas que sua alma transparece. Ártemis e Afrodite, Anjo e Lilith numa só mulher. Esta é você, como surge aos meus olhos.

– É... É absolutamente lindo! – elogiou a jovem, mais do que surpresa em ver o quão depressa ele traçara as mais perfeitas linhas, tornando um simples papel numa obra de arte que poucos poderiam igualar. E pensar que os talentos daquele homem eram ignorados e repudiados, apenas por causa de uma deformidade no rosto... – Não tenho palavras para dizer...

– Não precisa – sussurrou ele, segurando o rosto feminino com ambas as mãos e selando seus lábios num beijo terno. Foi Annie quem finalmente se afastou, dizendo:

– Também tenho algo a lhe mostrar, meu senhor – ela o tomou pela mão e puxou-o para a sala de música, palco de suas brigas mais violentas e momentos mais ternos, e o fez sentar-se na poltrona, enquanto ela própria assumia lugar no banco do piano. Com mãos levemente trêmulas, começou a tocar; era a primeira vez que mostrava a Erik uma composição sua, e temia que ele não a aprovasse... O fato de que criara a música com base em seus sentimentos apenas aumentava a apreensão.

A música já se iniciava com sons intensos, fortes e poderosos, tais como haviam sido as emoções da jovem, ao se conhecerem. Sons intensos, contrastantes, mas nem por isso incompatíveis; remetiam ao misto de amor e ódio que tomara a mulher, e iam se tornando mais suaves, em alguns momentos, passando a um pianíssimo, que em alguns momentos era interrompido por uma sequência de notas altas e graves – memórias das rusgas e discussões perigosas entre ambos. Um alegro encerrava a melodia, com uma última chave longa, cujos sons iam morrendo lentamente, sem declinar a alegria que transmitiam. E quando, enfim, ela ergueu o rosto e fitou seu amado, aliviou-se ao ver o enorme sorriso em seu rosto.

Bravissima! – aplaudiu o Fantasma – onde ouviu tal música?

– Eu a compus. – disse a moça, o que arrancou uma exclamação de surpresa do músico.

– Mas isso é... É incrível, Annika! – ele tomou o rosto dela nas mãos, olhando-a com fascínio, admiração e perplexidade. – Você é a mais preciosa pérola que o mundo já viu. Minha Annika, meu – ele congelou ao perceber que quase a chamara de “meu amor”, e tratou de se corrigir, antes de dizer algo que, sabia, não teria volta – anjo.

Ela sorriu e o beijou apaixonadamente. Ele não dissera que a amava, mas já não se importava: estava feliz com a parte do coração de Erik que ele lhe dedicava. Seria isto o verdadeiro amor, do qual falavam os livros? Amar tanto que só lhe importava a felicidade do outro, e alegrar-se com o que ele pudesse lhe dar em troca? Pois era exatamente assim que se sentia, e já não sabia em que momento passara a amar daquela forma o seu recluso, sisudo e perigoso senhor.

*

– Ali, está vendo? – perguntou a moça, apontando a constelação e fazendo seu desenho com o dedo – é o cisne.

– Os gregos diziam que Zeus o colocou no céu, após usar a forma de um cisne para seduzir a rainha-feiticeira Leda. – contou Erik, sorrindo para a mulher deitada em seu braço. Estavam ambos deitados no telhado (ideia de Annika, é claro, que praticamente arrastara o Fantasma para lá), observando as estrelas. Nos dias que corriam, já não havia tantas no céu, graças à fumaça das fábricas, mas o artista se lembrava de um tempo em que podia fitar o céu e contar inúmeros pontos brancos no firmamento... – Fazia muito tempo que eu não olhava o céu!

– Já tinha feito isso?

– Quando era criança – respondeu ele, dessa vez sem tanto pesar – Só podia abrir as janelas de noite, quando não poderiam me ver, mas era melhor hora que havia. Eu olhava para o céu, e parecia que elas estavam lá, incontáveis, brilhando para mim. Elas me davam esperança, e toda noite eu jurava que, no ano seguinte, seria livre. – ele sorriu com tristeza – mas é como se eu houvesse carregado aquele sótão dentro de mim, por todos esses anos. – ele segurou a mão dela, e lhe afagou a bochecha – Até agora. Obrigado, Annie. Obrigado por ser meu anjo, por ter me trazido de volta à vida.

– Não me agradeça – sussurrou ela, de volta – eu é que sou grata, meu querido, por tudo o que você é, e por tudo o que me tornou. – ela se inclinou para beijá-lo, mas isso quase a fez escorregar – opa! Pensando melhor, vou ficar por aqui, antes que caiamos os dois.

– Como foi que você me convenceu a subir aqui, mesmo? – perguntou o homem, voltando a fitar o céu.

– Eu subi e você veio atrás, para me arrastar lá para baixo... – ela ergueu levemente a cabeça, olhando para a borda do telhado inclinado – só não faço ideia de como vamos descer...

Os dois riram, e continuaram a olhar o céu. Em dado momento, porém, a pianista silenciou, e ficou apenas contemplando o firmamento escuro, salpicado de pontos luminosos. Confuso com o silêncio dela, que até há pouco falava animadamente, Erik perguntou:

– Em que está pensando?

– Em como tudo mudou, desde que te conheci. – ela mordeu os lábios – passei do inferno ao paraíso... Mas quantas pessoas não estão presas no inferno, como nós estivemos, Erik?

– Muitas. Mas não há nada que possamos fazer, Annie. Cada um precisa cuidar de si, e não podemos salvar o mundo.

– Raciocine comigo: se todos pensassem assim, você teria sido executado nas arenas persas, ou morrido no circo. Eu e Gabi ainda estaríamos no bordel. A vida foi boa para você, e você foi bom para nós... Não é papel meu e de Gabrielle passarmos adiante o bem que nos foi feito?

– Talvez ajudem, ou mesmo salvem, uma, duas, ou até dez pessoas... Mas não vão mudar o mundo.

– Vamos mudar o mundo das pessoas que pudermos ajudar.

– Oras, Annika... – o artista se irritou, e teria saído dali, se não pensasse melhor sobre as palavras da jovem. Após alguns segundos de reflexão, desistiu de discutir – e o que, exatamente, pretende fazer?

– Não sei. Mas não consigo me esquecer das palavras de minha mãe: o mundo só será melhor se todos estiverem decididos a serem melhores. Faço a minha parte, e que cada um lide com a própria consciência. Ela também falava que grandes mudanças são feitas por pequenos passos... E tenho pensado muito nisto.

– Pense. – disse o Fantasma. Não concordava com Annika: se o mundo não lhes demonstrara compaixão, por que deviam se preocupar com o destino dos outros? Ainda assim, aquilo parecia importante para ela, e ele não tinha a menor intenção de magoá-la outra vez. Já havia feito isso muitas vezes, e não repetiria o ato. Para evitar a tensão deixada pelo assunto, brincou – e agora, precisamos descobrir um modo de descer daqui. Com essa inclinação, o jeito mais fácil é escorregar até lá em baixo, e esperar não quebrar nenhum osso. Temos de voltar ao teatro, amanhã, e seria difícil cavalgar ou andar com uma coluna quebrada.

Annika riu e, virando-se de bruços, começou a escorregar devagar e com cuidado até o beiral. Subir no telhado, de repente, podia não ter sido uma boa ideia... As ideias que havia contado a Erik não seriam esquecidas, mas certamente podiam esperar até amanhã. Queria que aquele final de semana terminasse tão bem quanto havia estado, até agora.