Anjo das Trevas

Nas profundezas de Paris


POV Gabrielle

Peguei Alain do berço que Annika pusera ao lado de sua cama; ela não dormia mais nos alojamentos, e sim, num quarto próprio, pequeno e acolhedor, com janelas que davam direto para o nascer do Sol. A desgraça nisso era que o bebê parecia saber exatamente quando o Sol nascia, mesmo com as cortinas fechadas, e tratava de acordar meio teatro com seus berros, se não o pegássemos no colo. Annie ralhava comigo, dizendo que eu o mimava, mas simplesmente não conseguia deixa-lo chorar...

Naqueles dois meses, desde que o bebê viera para nossos cuidados, Erik voltara a residir na Casa do Lago – agora totalmente consertada por ele e Annie. Ela, por sua vez, passava muitas noites com ele, nos subterrâneos, e nossos finais de semana geralmente eram passados no sobrado ou, mais raramente, no casarão de Renard e nossos outros amigos, que também terminara de ser reformado. Por ideia e ajuda de Annika, o grupo já não vivia apenas de seus crimes, embora fosse impossível demovê-los totalmente; Tarim conseguira trabalho como ourives, e Sarah – da qual ainda não gosto muito, verdade seja dita – continuava dançando nas ruas e em festas mais modestas, tendo rejeitado a oferta de tentar um lugar no corpo de balé. Miguel, muito hábil com cavalos, começara a trabalhar esporadicamente num estábulo, e Jean começara a trabalhar no teatro, como montador de cenário, graças a sua força física (embora eu suspeite que sua vinda para a Ópera seja devida mais a seu interesse em Meg, do que em um trabalho por si mesmo). Claude conseguira serviços ocasionais como guarda-costas, no que sua simples aparência intimidadora já ajudava. Charles continuava em seus clubes de luta, no que era muito bom, e estava recebendo aulas de esgrima de um professor bastante improvável: Erik.

Mas aquele que mais me interessava, Renard, seguira outro caminho, mais perigoso: não obtivera a alcunha de Príncipe das Ruas à toa, e sua influência se estendia a muitas pessoas. Por conhecer pessoas de dentro das delegacias, ocasionalmente entregava um fora-da-lei que o desobedecesse, e era inclemente para com os assassinos e violadores que, se fossem descobertos por ele. Já o fazia antes, mas parecia que, agora, sem ter de se responsabilizar por todo o grupo de rapazes, tornara-se ainda mais influente. Logo, logo, seria o Rei das Ruas. E por mais que minha mente racional gritasse para eu me livrar dos sentimentos que nutria por ele, uma vez que meu querido raposo acabaria por encontrar a morte numa ponta de faca ou tiro de revólver, eu só conseguia me apaixonar cada vez mais. E foi perdida em divagações que ouvi o choro de meu sobrinho.

Era meio da tarde, e Annika e eu estávamos sentadas na cama, lendo juntas no intervalo de nossas funções – como havíamos feito desde que me entendia por gente – quando o pequeno começara a chorar. Entreguei-o a minha irmã, que o pegou com um sorriso, verificou se ele havia sujado as fraldas e me pediu para brincar com ele enquanto preparava a mamadeira do bebê; não precisou pedir duas vezes, pois eu realmente amava aquela coisinha branca, de cabelos pretos e olhos cinzentos que abria lindos sorrisos quando falava com ele.

Annika estivera tentando adotar o bebê, mas o fato de ser solteira dificultava tudo: não era permitido a uma mulher solteira adotar uma criança, de modo que ela precisara novamente subornar um oficial para que o bebê fosse, então, registrado como seu filho. Agora, meu sobrinho era Alain Anjou, e todos no teatro se derretiam pelo molequinho; a desculpa dada por minha irmã fora a mais próxima da verdade: tratava-se do filho de uma amiga muito próxima, que falecera subitamente. A mãe não tinha parentes, nem posses, então Annie o tomara como sendo seu. Fora o suficiente para todos. Exceto, é claro, para Madame Giry, que ficou sabendo da história real, tal e qual se passara.

Ouvi a porta do quarto se abrir, e pensei que fosse Annie, ficando bastante surpresa ao ver Erik entrar. Ele tomou a liberdade de se sentar na cama – uma vez que era amante de minha irmã há três meses, não havia motivo para não o fazer – e brincou com Alain:

— E então, rapaz? Como está? Cuidando das garotas, por mim? – aquele traidorzinho de seis meses praticamente saltou de meu colo para o do Fantasma, que o pegou com um sorriso. Erik amava aquele menino, e tinha com ele um carinho e ternura que eu nunca vira nele, antes. Isso me deixava feliz por ambos: pelo bebê, porque encontrara em meu mentor um verdadeiro pai, e por meu mestre, porque conseguia, aos poucos, escapar ao medo de amar que sempre nutrira. O modo como brincava com o pequenino, já mais à vontade após dois meses de convivência, mostrava as mudanças operadas pela vinda de Alain a nossas vidas.

— Isso! – protestei – ignorem-me, os dois! – fechei a cara, fingindo estar emburrada, o que fez meu professor me dar um abraço:

— Perdoe-me, Gabrielle. Como está, hoje?

— Sentindo-me traída por Alain, que se joga em seu colo sem nem hesitar! Mas quem se reveza com Annie para cuidar dele, à noite, sou eu!

Erik riu, tirando a mão de Alain de sua máscara, antes que ele a arrancasse outra vez, como já fizera antes. Ato contínuo, minha irmã voltou ao quarto, com a mamadeira do bebê; ela cumprimentou Erik com um beijo e um sorriso, e acomodou-se na cama para dar de mamar ao menino.

— Posso fazer isso, hoje? – pedi, ao que minha querida acedeu, colocando meu sobrinho em meus braços. Ele começou a mamar com voracidade, e não resisti a brincar – quando estou com a mamadeira, você me quer, não é, seu interesseiro? - enquanto alimentava Alain, percebi o olhar tenso e preocupado de Erik, e creio que Annie também deva ter percebido, pois ela perguntou:

— O que houve, meu anjo? – ele apenas deu de ombros e, numa das suas habituais oscilações de humor, deixou o quarto sem falar nada. Bufando, Annie declarou – cuide de Alain, que vou atrás dele. O que será, desta vez?

Enquanto aqueles dois loucos que eram minha irmã e meu mentor iam se entender, eu fiquei ocupada com Alain; ele era, de longe, a pessoa mais fácil de lidar naquela estranha família que havíamos constituído.

POV Narrador

Annika alcançou o Fantasma, que escalara as tesouras de sustentação do teto e se sentara numa viga cruzada sobre o palco. Imaginando o que perturbaria a mente do homem, agora, perguntou:

— O que aconteceu?

— Nada. –respondeu ele, um tanto rude.

— Eu conheço você; e quando diz “nada”, significa: problemas que não quero relatar, mas que estão me matando internamente. – riu-se ela, sentando-se ao lado do músico e o abraçando – ficou triste quando olhou para Alain.

Erik deu de ombros, e a pianista teve uma ideia; divertida, declarou:

— Venha comigo. Quero lhe mostrar uma coisa que, tenho certeza, vai adorar! – e o puxou pela mão, equilibrando-se pela viga em direção às cornijas, pra descer do lugar onde estavam. Entraram numa das passagens de Erik (as quais Annika já conhecia razoavelmente bem), e desceram até os túneis abaixo da Ópera Garnier. Contudo, em vez de seguir pelos caminhos que conduziriam à Casa do Lago, ela enveredou por escoadouros e tubulações desativadas, o que confundiu Erik.

— Aonde estamos indo, Annika?

— Você vai ver! – ela se espremeu por uma passagem estreita, que exigiu todo o esforço de Erik para ir atrás da jovem. Agora já sabia aonde ela ia, mas seria mesmo para o lugar que estava pensando? Afinal, o que haveria lá, que ela quisesse lhe mostrar?

Porém, o caminho realmente levava para o lugar conhecido pelo Fantasma: as passagens e túneis sucessivos abriram-se, afinal, numa caverna mais larga, forrada com caveiras humanas. Todas as paredes, do chão ao teto, forradas de crânios humanos, e nichos recheados de ossadas já totalmente brancas... Uma catacumba.

— O que estamos fazendo nas catacumbas, Annie? – perguntou ele, confuso. Aquele sempre fora um lugar onde gostara de vir, onde o silêncio da morte lhe dava paz e serenidade nos piores momentos. De algum modo, sempre se reconfortara na ideia da própria mortalidade, e em ver aquilo que os seres se tornavam, após a morte: apenas ossos descarnados.

— Queria que visse isso. – respondeu a moça, levemente ofegante pela caminhada rápida – as catacumbas. Algumas existem desde a dominação romana, enquanto outras, bem menos charmosas, como esta aqui, foram construídas há poucas décadas, por causa da superlotação dos cemitérios.

— E o que queria me mostrar?

— Queria um lugar tranquilo onde pudéssemos conversar. Os mortos não têm ouvidos, afinal. – ela sorriu e se sentou em meio à caverna, parecendo extremamente à vontade diante dos sorrisos espectrais de milhares de caveiras, cujas órbitas vazias pareciam se fixar em ambos. Erik deu um leve sorriso, e sentou-se ao lado dela:

— Não tem medo? Não lhe perturba o olhar vazio da morte? – ele pegou um crânio no chão, virando-o para a mulher, que sorriu e o tomou nas mãos, revirando-o com fascínio:

— Sempre gostei deste lugar. Foi Renard quem mo apresentou, e fiquei tão... Encantada!

— encantada? – Mais um tom sombrio da alma da mulher, que o Anjo da Música ainda não conhecia. Quantas surpresas mais aquela garota guardaria?

— Sim. Quer dizer, olhe isso: é grandioso. Existe algo de tão igualitário na morte... Não importa quem sejamos, o que tenhamos feito, ela é nosso destino final. A meta final de tudo. – segurou o crânio nas mãos quase com reverência – quem terá sido esta pessoa? Homem? Mulher? Nobre ou mendigo? – ela sorriu – não importa. Este aqui é igual àquele – ela apontou para outro crânio, na parede – que é igual a todos os outros, aqui. E tudo o que resta é nada. Nada, e ainda assim, fazem parte de uma obra maravilhosa, em sua igualitária insignificância. Tijolos para uma construção. Os mortos sustentando os vivos acima, esquecidos, mas nem por isso inexistentes.

— A morte sempre foi, para mim, uma ideia consoladora. – respondeu Erik – mas não a perturba?

— Não. Os mortos são melhor companhia que os vivos, muitas vezes; mais silenciosos, mais serenos... Estão em paz. Eu vinha muito aqui, quando precisava de forças. – ela se aninhou contra o músico – costumamos lamentar os que partem, mas devíamos antes lamentar os que ficam. Para os que morrem, a dor terminou. E ainda assim, continuamos lutando para estender nossas jornadas ao máximo.

— Mas é apenas um breve instante entre o nascer e o morrer, não importa quanto tempo dure. – concluiu o Fantasma – não faz diferença. E, se vamos todos morrer, por que nos importar quando, ou o que fazemos antes disso?

— Responda-me você. Por que se preocupa? – ela deitou a cabeça no ombro do artista – agora diga-me, Erik: diante disso, diante da morte, e da aniquilação que ela representa... Por que se preocupa? O que o preocupa?

— Acho que eu não seria um morto em paz, Annika. – respondeu ele, acariciando a mão da moça – com tudo o que carrego dentro de mim, nem sei se poderia morrer... Acho que poderia virar um espectro, vagando para sempre na noite.

— Por quê? – a moça era insistente, e isso arrancou um sorriso tenso e triste do Fantasma.

— Acho que todo ser tem medo da morte. É por isso que nos ocupamos de nossos atos, em vida... Queremos ser lembrados, como se a memória pudesse, de algum modo, preservar aquilo que somos, aquilo que fomos. Como Aquiles, Ajax, Heitor, que sobreviveram nas lendas, nós queremos sobreviver à própria morte, na lembrança dos outros. Creio que se resuma a isso: como seremos lembrados, quando partirmos.

— E pesa em sua alma o modo como será lembrado?

— Não pesava, até Alain... – ele encarou a mulher – tenho muitos crimes em minha alma, Annika, e agora reconheço. Nunca me importei. Você começou a mudar isso, com sua luz, mas o bebê... – ele pigarreou - Agora, toda vez que olho para aquele menino, sinto-me imundo e indigno. Lembro-me de todas as coisas terríveis que fiz e, olhando para a inocência dele, só consigo pensar: como posso encarar este menino? Como posso ajudar você a cuidar dele? Como alimentar coisas boas nele, quando eu mesmo estou podre, por dentro? Quando sou tão carregado de erros e escuridão?

— Nós dois somos, Erik... Mas não nos resumimos a isso. – a mulher o abraçou ternamente – somos aquilo que escolhemos ser. O agora é o primeiro segundo do resto de nossas vidas. Se não está contente com seu passado, mude seu futuro.

— É o que mais quero, Annie. Um futuro. Um futuro com você, com Gabrielle, e Alain... Um futuro onde minhas mãos não estejam sujas de sangue. Mas como fazer isso? – ele se levantou e começou a perambular pelo ossuário – por onde começar a pedir perdão? E pedir perdão a quem? – ele olhou para cima – não sou religioso, mas, às vezes, gostaria que houvesse alguém que pudesse me perdoar, me eximir de minhas falhas... Permitir-me ser um novo homem.

— Eu encontrei perdão naqueles a quem amo. – disse a moça, pousando as mãos ternamente no braço do Fantasma – você, Gabrielle, Madame Giry, os meninos do beco... Cada um de vocês é meu perdão, é uma razão que me torna cada dia mais uma mulher diferente da que fui. Meus acertos não vão apagar meus erros, mas talvez deixem a lembrança de alguém melhor, quando eu me for. O que lhe traria perdão, Erik?

Ele pensou longamente, antes de responder:

— Errei com muitas pessoas, mas... Creio que exista uma com a qual eu devo me retratar. Só não sei como fazê-lo. Não sei se tenho coragem suficiente para fazê-lo.

A pianista o encarou intensamente, seus olhos de gelo mergulhando nos olhos dourados dele, as duas cores parecendo se fundir, fagulhas e chamas se acendendo entre ambos quando ela afirmou:

— Se não tiver coragem, tome a minha. Quando as forças lhe faltarem, eu estarei ao seu lado para puxá-lo comigo. Não importa o que precise fazer, Erik Destler... Eu estarei com você.

Aquelas palavras tão sinceras, de tão puro amor e confiança, afirmando não apenas o amor de casal, mas a cumplicidade e amizade que se instalara entre ambos, tocou o coração do Anjo. Como acontecia todos os dias, ele redescobriu seu amor e paixão por ela e, tendo apenas os mortos como testemunhas, abraçou-a pela cintura, beijou-a e declarou:

— Eu amo você, Annika Anjou. – e, numa atitude que parecia mais do que apropriada ao sombrio Fantasma da Ópera, ajoelhou-se no meio da cripta, seus olhos cheios de angústia, esperança, desejo, medo – será que, um dia, quando eu me fizer digno de tal honra e privilégio, você me concederia a felicidade de ser minha esposa?

Espantada, chocada e comovida, sem jamais ter esperado ouvir aquelas palavras do homem a quem aprendera a amar tão loucamente, naqueles quase três anos de convívio, Annika abriu um lindo sorriso e, delicadamente, tirou a máscara do homem. Queria vê-lo tal como era, exatamente como o amava. Ajoelhando-se diante dele, beijou-o com paixão, e sussurrou:

— Mas você já é digno, meu amor. E não haverá maior felicidade do que chama-lo de meu marido. – os lábios de ambos se selaram e, na escuridão da catacumba, iluminados apenas pela lanterna tremulante, consumaram seu amor. Ninguém mais entenderia tal ato... Apenas eles dois, tão diferentes e tão iguais, unidos no amor, na música e nas trevas.