Anjo das Trevas

Meu louco professor


– Annika – chamou o Fantasma, ao chegar na biblioteca, onde a moça tirava a poeira dos livros, não resistindo e folheando alguns. Ao ver seu patrão, mais que depressa guardou o volume na prateleira – Arrume Gabrielle com um vestido bonito. Vou leva-la comigo à Ópera, hoje.

Deixando o pano cair de sua mão com o espanto, a mulher protestou:

– Não. – e meneando a cabeça, zangada – não vai leva-la a lugar algum.

– Não estava perguntando. Estava apenas lhe dizendo que arrume sua irmã. Ela irá comigo, e isso não está aberto a questionamentos. – ele ia saindo do aposento, mas Annie lhe barrou o caminho, determinada, cada uma das mãos em um lado da porta. Era muito atrevimento para uma só mulher! Aquilo irritou o Fantasma: será que precisavam de outra briga?

– Saia da minha frente, Annika.

– Não vai levar minha irmã a lugar algum. – a voz dela era baixa e raivosa, e seus olhos – não permitirei que a leve para fora de minha vista.

– Se está com medo de que eu a devolva, pode ficar tranquila: você parece se comportar bem melhor na presença da menina. Não a entregarei a Lucian novamente, a menos que você me obrigue a isso – ele a empurrou para trás – com comportamentos infantis e irritantes como o que está tendo. Agora, trate de me obedecer!

– Você pode ser meu dono, Fantasma – sibilou a moça, bloqueando o caminho das escadas novamente, sem se intimidar – Mas Gabrielle é minha irmã, e não vou deixar que a entregue outra vez ao inferno em que vivemos. Se quiser descontar seu ódio em alguém, faça-o a mim, e não em uma criança inocente! – ela não temia o ódio do amo; só o amor por Gabrielle, e a certeza de que o sobrado era, por hora, o único lugar seguro que havia, a impediam de assassinar o Fantasma para se ver livre daquele tirano e das ameaças que aterrorizavam seu coração. Mas faria o que fosse preciso para manter sua irmãzinha protegida, fosse suportar aquele amo ou mesmo matar o perigoso Fantasma, se ele tentasse entregar a criança a Lucian.

– Você é estúpida, ou apenas se finge de? – perguntou o homem, segurando o pulso de Annika com força, percebendo como esta já ganhara algum peso naqueles dois meses em que estava ali – eu já lhe disse que não devolverei sua irmã, a menos que me dê um excelente motivo para tanto. Gosto da presença dela: faz-me bem, alegra-me, ao contrário da sua. Sua irmã é uma criança cativante, e não desejo o mal dela, a menos que certa irmã mais velha continue obstinada em me obrigar a tanto! – ele empurrou a jovem, que escorregou e teve de agarrar ao corrimão para não cair da escadaria – agora, trate de vesti-la adequadamente. A pequena gosta de música, e pretendo leva-la para assistir a uma apresentação, como parte de sua educação musical. – e ainda mais irritado, gritou – obedeça-me, mulher!

Ereta e orgulhosa nos degraus, ela se empertigou e o fitou intensamente, antes de exigir:

– Jure que não irá machuca-la.

– O que disse? – perguntou o homem, atônito com a ousadia da mulher. Talvez viesse sendo brando demais para com ela, para que houvesse perdido o medo daquela forma!

– Olhe em meus olhos, e prometa-me que não a entregará a Lucian, nem lhe fará qualquer mal. – insistiu, com os ombros para trás e a cabeça erguida em desafio, como se perguntando ao Fantasma se ousaria fitar seus olhos azuis.

Erik revirou os olhos, seriamente tentado a empurrar a irritante mulher escadas abaixo. Talvez ele tivesse sorte, e sua criada quebrasse o pescoço... A vontade, porém, se desvaneceu num devaneio, enquanto seu olhar percorria a figura da jovem: vestida de vermelho – o que passara pela cabeça de Madame Tremain, para trazer um vestido daquela cor para a moça?! – com gola alta e mangas longas em renda, que insinuavam o colo bonito sem o expor... O corpete marcava a curva da cintura, acentuando o volume dos quadris que ganhavam forma a cada dia, e os cabelos cor de ouro, presos numa trança, ressaltavam as feições perfeitas e elegantes demais para serem de uma simples prostituta. De onde, afinal, saíra tal beldade?

– Prometa! – insistiu ela, tirando Erik de seu devaneio. Aquela meretriz ainda ia acabar por enfeitiça-lo, aquela perigosa Carmen sedutora! Extremamente irritado (especialmente devido ao efeito que ela tinha sobre si) respondeu:

– Que seja! Eu prometo. Satisfeita? – ele o disse fitando-a profundamente nos olhos, e a moça viu naqueles lagos dourados uma pura sinceridade. Ele estava mesmo falando a verdade! Mas... Mas que sentido fazia, para ele, levar a pequena ao teatro? Já não havia como compreender aquele homem! Ele era, definitivamente, insano.

Sem nada dizer, ela desceu para o jardim, onde Gabrielle plantava algumas flores rasteiras para criar uma divisória entre as roseiras e o caminho de pedriscos. Eram flores brancas, com cinco pétalas dispostas como estrela, que se tornavam róseas ao centro. A imagem da pequena ajoelhada no chão, concentrada e tendo um sorriso no rosto, enterneceu a irmã mais velha.

– Abelhinha – chamou ela – venha comigo. O patrão quer leva-la à Ópera, hoje, e você deve estar vestida adequadamente. – Annika já não sentia medo: sabia reconhecer a mentira e as más intenções, e, pelo menos daquela vez, não havia nada disso no olhar de seu amo. Ele realmente faria exatamente o que dissera.

Ópera?! Ele vai nos levar ao teatro? – perguntou a menina, exultante.

– Nós, não, minha querida. Apenas você. Eu e Erik, bem... Não nos damos bem. Mas ele gosta de você, ao que parece, e disse que a visita ao teatro faz parte de sua educação musical. – e abraçando a pequena – quem sabe, a música não traz de volta sua voz?

Eu tenho o piano.

– Mas nem todo mundo entende o código de notas que você criou, não é? – a menina criara uma linguagem com os sons do piano, onde cada combinação simbolizava uma sílaba, letra ou mesmo palavra. Ainda estava em processo de aperfeiçoamento, mas ela e Erik já a usavam para se comunicar. Annika não podia deixar de reconhecer toda a paciência e carinho do Fantasma pela menina... De algum modo, ela começava a duvidar que seu amo realmente pretendesse devolver a menina ao prostíbulo, algum dia... mas o medo por Gabi, (que se tornara seu companheiro constante desde os doze anos) não lhe permitia confiar totalmente. Além disso o homem era louco!

Com um sorriso nos lábios, para não passar à caçula suas preocupações, Annie a acompanhou até o quarto, onde a ajudou a se banhar rapidamente e vestiu-a com seu melhor traje: um vestido azul cobalto, cujas mangas possuíam três camadas, com delicados bordados dourados na camada externa. O corpete também possuía bordados dourados, assim como a barra da saia. A gola era quadrada, sem expor muito o corpo da jovem, e a saia possuía várias anáguas, que a deixavam armada sem exageros. Ajudou a irmã a pentear e prender os cabelos cacheados numa trança lateral frouxa, para então se afastar, admirando o resultado: sua irmãzinha seria uma linda mulher, quando crescesse mais. Aqueles dois meses de boa alimentação e cuidados já haviam feito com que crescesse bem uns três centímetros, e ganhasse peso. Agora, os seios despontavam, e os quadris estavam bem distintos da cintura, mais redondos e volumosos.

– Lembra de quando fingíamos ser princesas, num mundo distante, Gabi? – perguntou a mulher, virando a menina para o espelho, indicando o quão linda ela estava – hoje, você é uma. De verdade. – e beijou a pequena, que a abraçou com força. Brincando com os próprios cabelos, a menina comentou, gesticulando:

– Annie, eu queria lhe contar uma coisa. – e ante o olhar indagador da mais velha – Minhas regras vieram pela primeira vez. Agora, não sou mais uma menina: sou uma mulher.

Sorrindo, Annika se ajoelhou e abraçou a garota pela cintura, deitando a cabeça no ombro ainda magro antes de, com todo o amor que sentia pela garota, acariciar-lhe o rosto: o semblante da mais velha era puro orgulho e felicidade:

– Ainda não é uma mulher, meu amor. Mas já não é uma criança. Está crescendo, minha querida, e logo será a mulher mais linda e talentosa que a França já viu, não tenho dúvidas! – e cobrindo de beijos o rosto da jovem, que sorriu e devolveu o abraço – está linda, cherrie, e fico muito feliz e orgulhosa por você. Mas Messieur já deve estar esperando, e não é bom deixa-lo aguardar.

Com um sorriso, a jovem aceitou a mão oferecida pela irmã, seguindo com ela até a sala. E até mesmo o sombrio Fantasma sorriu ante a delicadeza e elegância da mocinha, quando esta aceitou seu braço e o acompanhou para fora, onde aguardava um belo corcel negro, já encilhado. Com um misto de tristeza por deixar a irmã para trás, e alegria por estar saindo pela primeira vez, ainda mais para ir a um teatro, ela se segurou com firmeza a Erik, deixando que o braço dele a mantivesse na sela.

POV Gabrielle

Messieur Destler foi um perfeito cavalheiro, e foi impossível não me sentir uma princesa: era como se todos os sonhos que Annie alimentara em mim, como um modo de não nos deixarmos vencer pelo inferno do bordel, de repente houvessem se tornado reais. Aquele homem misterioso, gentil e elegante tratava-me como se eu fosse uma dama refinada, descendo-me do cavalo, oferecendo-me o braço para que o acompanhasse. Conduziu-me não pelo salão principal, mas através de uma passagem iluminada por velas em castiçais; parecia tudo tão surreal, tão mágico e lindo, que sequer me importei com as teias de aranha e os pequenos ratos que fugiam de nós.

A passagem se abria diretamente dentro do camarote, que se dividia em duas partes: a antessala – com duas poltronas forradas em veludo azul, de frente para uma mesinha de centro, além de bancos estofados ao longo da parede e um suporte de aspecto estranho onde jazia um violino – e o balcão, onde duas cadeiras de espaldar alto haviam sido postas em posição recuada, de modo que seus ocupantes ficassem protegidos dos olhares de terceiros. Era bastante sóbrio, mas havia enorme bom gosto em tudo aquilo.

Meu patrão me conduziu pela mão até a cadeira, esperando que me sentasse para ocupar o lugar ao meu lado. Com simplicidade, tomou de caneta e papel que haviam sido deixados ali, e mos estendeu, dizendo:

– Para que possamos conversar, se desejar. – eu aceitei com um sorriso e escrevi:

Obrigada, Messieur.

– Não há de quê, criança. – ele me lançou um de seus raros sorrisos – agora, preste atenção. Vai começar já.

A ópera da noite – Fausto – se iniciou. Eu prestava atenção a cada nota, a cada palavra, a cada simples som, e cada um me emocionava e tocava meu coração, a ponto de ele parecer bater no mesmo ritmo das árias. Meu mestre ocasionalmente fazia pequenas interrupções, chamando-me a atenção a detalhes específicos da música: o canto principal, ou melodia, o contracanto, os diversos instrumentos que compunham a orquestra, executando “vozes musicais” diferentes, numa harmonia prodigiosa! Como era possível algum mortal criar tão bela composição? Ele me explicava sobre cada tipo de voz dos cantores, caracterizando as sopranos, as contraltos, os tenores e o baixo, explicando-me como reconhecer cada uma. Eram muitos detalhes técnicos, mas eu os assimilava rapidamente, ansiosa por saber mais.

No terceiro ato, quando Margarita canta seu arrependimento, não consegui conter as lágrimas: a soprano cantava com tanto amor, com tanta entrega, com tanta emoção, que eu mesma parecia ser transportada para dentro do personagem, compreendendo seus dramas e sofrimentos. Neste momento, algo totalmente novo ocorreu: de minha garganta trancada, escapou um soluço de choro! Apenas um, mas era o primeiro som que emitia em dois anos e meio!

Erik se voltou para mim, e havia surpresa em seus olhos dourados, embora também estivessem toldados por tristeza. Pensei em lhe perguntar o que o entristecia, mas então me lembrei de algo que ouvira de Madame Tremain, sobre ele ter amado muito uma jovem soprano, que o abandonara... Melhor não perguntar nada, pois a última coisa que queria era magoar aquele que tanto bem vinha me fazendo.

Quando a apresentação finalmente terminou, pensei que retornaríamos para casa, mas não foi o que aconteceu: Erik me chamou para irmos ao terraço, e aceitei. Talvez, se soubesse o que ele pretendia, não houvesse aceitado, mas foi o primeiro passo para a maior dádiva que recebi de meu mentor.

POV Narrador

Ao ouvir o soluço de choro de sua aluna, Erik se surpreendeu: ela era muda! Não, não naturalmente muda, de acordo com Madame Tremain... Ficara muda havia poucos anos, após algum trauma sofrido. E agora, suas garganta fechada emitia aquele único som, movida pela emoção. O fato deu uma ideia ao Fantasma: se emoções fortes haviam fechado a garganta da menina, outras emoções podiam devolver-lhe a fala. Ele esperava.

Ao fim da apresentação, decidiu que não esperaria para pôr seu plano em prática – não pensava em Annika, naquele momento, mas apenas em ajudar a menina ao seu lado – e convidou Gabrielle a subir ao terraço consigo. E a menina foi, de boa-fé.

Saíram para o ar frio da noite, e o mascarado se aproximou da borda, fitando a cidade abaixo; inocente, a mocinha foi para o lado dele, imaginando que, talvez, seu professor quisesse lhe dizer algo, mas não foi o que aconteceu. Com a velocidade de um gato, ele agarrou a mão da menina e a empurrou, fazendo com que ficasse pendurada no ar, à beira do teatro, vários metros acima do solo, tendo apenas a mão do Fantasma a segurá-la. O susto do momento fez com que, pela segunda vez em muito tempo, um som escapasse a seus lábios: um grito estrangulado e fraco, mas nem por isso inexistente.

Em pânico – tinha pavor de altura – e sem compreender por que o Fantasma fazia aquilo, a garota o fitou com olhos desesperados. Em resposta ao pânico dela, o músico explicou:

– Muito bem, Gabrielle: você está a trinta metros do chão, e tudo o que a está segurando é minha mão. Agora, lhe dou duas escolhas: peça-me para puxá-la de volta, e eu o farei, ou emudeça e fique aqui pelo tempo que quiser. Eu posso aguentar por horas.

Os olhos dela o acusavam, o chamavam de louco, apavorados! Ela tentou subir por conta própria, mas o Fantasma a empurrou, impedindo-a. A mão enluvada era tudo o que a separava da morte certa! Mas por que ele fazia aquilo.

– Muito bem, Gabrielle, agora peça-me para puxá-la.

Ela meneou a cabeça, em pânico.

– Peça! – e quando a mocinha insistiu em fazer movimento negativo, abriu a mão, deixando-a escorregar. Agora já não lhe segurava o braço, e sim, a mão pequena – Eu não quero soltar você, garota, então peça! – e apertando a mão dela – Peça! Peça!

Em extremo pavor, pressionada também pelos gritos de seu mentor, que só a apavoravam mais, ela pôs toda a sua força na mais difícil tentativa de sua vida. Com a voz fraca, trêmula e falha de uma garganta muda há muito tempo, ela implorou:

– Por... Favor! – e mesmo aquele pedido tão débil, tão simples, foi tudo de que o Fantasma precisava. A prova de que podia trazer a voz da menina de volta. Com um sorriso, ele a puxou de volta para o terraço e a abraçou com força, ignorando os tapas que ela lhe dava.

– Perdoe-me por isso, Gabrielle, perdoe-me! – ele parecia tão angustiado quanto ela – Eu nunca a soltaria, menina. – ele lhe segurou o rosto e a fitou, abaixando-se para que ficassem à mesma altura – entende isso? Eu nunca machucaria você, mas precisava fazer isso. Agora, temos a prova de que sua voz está aí, trancada, mas presente. Assustá-la pareceu-me o único modo de conseguir que soltasse as palavras que estão presas em sua boca. – e beijou-lhe a testa – perdoa-me por isso?

Ainda com cara de choro, ela anuiu e o abraçou: um misto de susto, ressentimento, mágoa, gratidão e alegria borbulhava em seu peito, fazendo com que não soubesse exatamente quais eram seus sentimentos. Mas saber que poderia voltar a falar era, definitivamente, uma alegria que punha abaixo todo o resto. E a gratidão a Erik, por lhe mostrar isso, jamais seria esquecida.

Foi com um sorriso que montou no cavalo, antes que o Fantasma subisse atrás dela, também muito feliz. E um lindo sorriso era o mais belo adorno da jovem, enquanto faziam o caminho de volta para casa.