Erik levou Annika consigo, proibindo-a de abrir os olhos; ela não sabia por que tanto mistério, e só podia imaginar o que seria quando ele, enfim, lhe falou para olhar. De imediato, a expressão da moça se tornou de maravilha e encanto, pois diante de si estava o que um dia fora o velho conservatório da Ópera e que, agora, era o prédio onde haveria de funcionar a nova escola! Estava totalmente reformado, mantendo o estilo em que fora construído, mas repintado, com janelas e portas alinhadas, as paredes rebocadas, o madeirame trocado! Era lindo, e perfeito! Por um instante a mulher engasgou e não soube o que dizer.

— Isso é... É... – ela fitou seu esposo – eu não tenho nem palavras!

— Do modo como você queria. – disse ele, orgulhoso, puxando sua esposa pela mão – venha ver o interior. Afinal, esta será a sua escola.

Foi com euforia que Annika viu os corredores reformados de modo a serem mais largos, o andar de cima transformado em alojamentos de meninas e meninos, banheiros e biblioteca, enquanto o andar inferior abrigava as salas de aula teóricas e práticas, salão comunal, cozinha e refeitório. No terraço, outrora de concreto bruto, agora havia um magnífico jardim! Roseiras, jasmins, brincos-de-princesa, lavanda... Arbustos altos se alternavam com plantas menores e forrações macias e coloridas, entremeadas por um caminho de pedriscos brancos. A iluminação ficava a encargo de pequenas luminárias a gás e a velas que imitavam archotes, fixas nas laterais do caminho. Uma clareira de grama verde se abria para mostrar um pequeno parque, com balanços e bancos, que serviria de área de lazer. Era impossível conceber algo mais belo e engenhoso do que tudo o que se descortinara diante de seus olhos!

— Gostou? – perguntou Erik, vendo os olhos encantados de sua mulher. Ela o fitou, boquiaberta e maravilhada antes de dizer:

— Sim! É perfeito! É muito melhor do que qualquer sonho! – ela abraçou seu esposo com força – obrigada, meu amor!

— Todos ajudaram e trabalharam muito nisso. Prometi os Garotos do Beco que levaria você, Alain e as meninas para vê-los, amanhã, para celebrarmos juntos a conclusão das obras. – ele acariciou os cabelos da moça, e beijou-lhe a mão – mas tem algo que eu quero lhe mostrar. Um presente meu, se assim pode-se dizer.

Curiosa, Annika deixou que seu marido a guiasse até o piso inferior, onde ele acionou uma alavanca quase invisível, oculta sob a forma de candelabro de parede; menos de um segundo depois, uma passagem se abriu no chão, revelando degraus que levavam para baixo. Ele pegou uma lanterna a óleo e estendeu a mão para sua mulher, a qual o seguiu. Mas o que teria ele aprontado, naquele lugar?!

Desceram os degraus, ela enxergando apenas a fraca luz na mão de seu amor, os dedos dele apertando levemente os seus. Foi só quando alcançaram o último degrau, e seus pés tocaram chão firme, que ele se afastou para o lado e dirigiu-se a sua amada:

— Veja – outra alavanca acionada na parede, e três claraboias se abriram no teto do largo aposento, inundando-o de luz. Annika arregalou os olhos em espanto e admiração, pois o ambiente revelado era, de longe, a mais bela parte de toda a construção! Espelhos estrategicamente posicionados aproveitavam ao máximo a luminosidade solar, mostrando nos mínimos detalhes o ateliê! E não apenas um ateliê, pois ali havia vários instrumentos musicais – incluindo um piano, que ela não sabia como fora parar ali – uma bancada de trabalho larga, que poderia ser usada para esculpir, desenhar, escrever... Um cavalete de pintura, com tintas, telas e pincéis... E ao fundo do aposento, o ateliê se convertia num quarto, com uma cama de casal larga, adornada por dossel, tendo um berço ao seu lado. Uma penteadeira branca e dourada tinha alguns pertences de Annie sobre si, tornando aquilo tudo mais pessoal.

Mal crendo no que seus olhos viam, ela caminhou pelo ambiente: tudo, desde o cavalete até a cama e penteadeira, era desenhado nos moldes do art-nouveau orgânico, com volteios, formas que lembravam folhas e gavinhas, exatamente do modo como ela tanto amava! Deus, aquilo era insano! Erik pensara nos mínimos detalhes, como os floreios na penteadeira, o tom claro do dossel, o móbile no berço largo, onde poderiam dormir as três crianças... Os pincéis com o nome da pianista gravado. A pena de escrever negra, com ponta dourada, os espelhos com molduras decoradas... Tudo era perfeito! Emocionada, voltou-se para ele:

— Como você...

— Considere um presente antecipado de nossas primeiras bodas. – disse o Fantasma, com seu costumeiro ar orgulhoso. Ele envolveu sua mulher pela cintura, e deu-lhe um longo e demorado beijo – gostou?

— Se eu gostei?! Isso é maravilhoso! Ah, céus, eu sequer tenho palavras para descrever! É tudo perfeito! Mas por quê...

— Se eu a conheço, e eu conheço bem, sei que irá passar muito tempo aqui. Devia ser um lugar apenas seu, um lugar onde esteja em casa, onde tenha um espaço próprio. Agora, tem um lar aqui também. Nós temos um lar aqui.

Ela abriu um enorme sorriso, envolvendo-o num abraço e começando a beijá-lo de novo. Erik a levantou nos braços e a empurrou contra a parede, sem parar de beijá-la; era incrível como, por mais que tivesse de sua esposa, nunca era o bastante. Ouvira dizer que o desejo diminuía após alguns meses, mas, com ela, isto não era uma verdade. De fato, cada dia ao lado de Annika o fazia amá-la, deseja-la e apaixonar-se ainda mais por aquela mulher inacreditável que era sua esposa! E ele nem podia imaginar como ela se sentia da mesma forma, em relação ao seu esposo.

*

— Um brinde ao retorno triunfal de nossa garota! E à conclusão da escola! – exclamou Renard, erguendo seu copo de cerveja. A festa seguia animada no Casarão, enquanto todo o grupo ria, brincava e celebrava a volta da amiga à vida normal. Sarah participara de tudo, mas no momento ocupava-se brincando com Carol e Selly, imaginando como seria ter os próprios filhos; depois de Alain e das gêmeas, já não desconsiderava a ideia... E Claude, bobalhão e alegre como era, sempre mimando Alain, certamente seria um bom pai. Quem sabe um dia...

Até mesmo o sisudo Erik não conseguia ficar sério em meio àqueles jovens que, no fundo, eram exatamente como ele: criados por si mesmos, enxotados por todos, vivendo por conta própria... Ali não havia julgamentos, não havia olhares hostis... Ele conseguia se sentir confortável. Estava sentado junto à janela, contemplando o mundo lá fora, sereno, quando Gabrielle veio pular em seu colo: com dezesseis anos, ela não era mais uma menininha, mas continuava a agir como a pequena aluna a quem ele um dia começara a ensinar piano. Ele sorriu e apertou de leve a bochecha dela, perguntando:

— O que foi, abelhinha?

— Vai ficar hipnotizado, aí, a festa inteira? Deixe de ser antissocial e venha se divertir! – o músico deu um breve sorriso, e respondeu:

— Eu estou me divertindo, criança.

— Alguém precisa lhe ensinar o que significa diversão, sabia? – resmungou a jovem, saindo do colo de seu mentor e indo se juntar a Sarah numa dança. Renard observava a jovem de cabelos dourados com o mais puro carinho, o que fez o Fantasma chama-lo:

— Rapaz, venha aqui. – o jovem atendeu – gosta mesmo dela, não é?

— Eu a amo, senhor. – ele foi franco – mais do que palavras podem dizer. Eu me casaria com ela, se fosse este o desejo de Gabrielle, mas ela já deixou claro que não pretende se atar a ninguém. Assim, contento-me com a parte de seu coração que ela me dedica, como um faminto se contenta com as eventuais refeições que consegue.

— Não encare deste modo. Ela também o ama, mas Gabrielle... Tem muitos horrores em seu passado. Não sei se ela, algum dia, conseguirá ter um relacionamento normal.

— Sei disso. E acredite, monsieur: eu jamais machucaria Gabi, ou a magoaria.

— No que eu acredito. – o Fantasma sorriu – ande! Vá tirar sua namorada para dançar!

O moço deixou o homem sozinho, sem entender muito bem o que significara aquela conversa; Erik, porém, via bem os olhares que o jovem casal trocava e, se um dia Gabrielle mudasse de ideia quanto a relacionamentos, ele seria o primeiro a apoiar um casamento entre ambos. Sim, Renard era um marginal, proscrito, fora-da-lei... Mas era um bom homem. Muito melhor do que muitos que se passavam por gentlemans na sociedade, mas tinham vidas e corações podres.

Os minutos de contemplação de Erik não duraram muito tempo, pois Annie veio se sentar ao seu lado, oferecendo-lhe uma taça de vinho. Dividiram a bebida em meio a olhares significativos antes que, sem qualquer pudor, a mulher puxasse seu esposo para um beijo intenso e apaixonado, o que rendeu palmas e assobios, especialmente de Meg. Embora Madame Giry raramente fosse ao Casarão, a menina continuava a frequentá-lo – ela terminara o breve relacionamento com o bailarino, e retornara aos braços de Jean, por quem afirmava estar verdadeiramente apaixonada. Madame Giry não via tal união com bons olhos, mas tampouco se opunha, de modo que a bailarina passara a, indiretamente, fazer parte do Casarão - como o grupo começava a se autodenominar.

Inesperadamente, quando Tarim começou a tocar violão, o Fantasma puxou sua mulher para uma dança, enlaçando-a firmemente pela cintura. Annika arregalou os olhos, surpresa, mas ele a silenciou pousando um dedo sobre seus lábios, começando a conduzi-la no ritmo da música. Os demais do grupo se animaram, e logo Jean bailava com Meg, Claude com Sarah, Renard com Gabi, e os outros rapazes com suas namoradas e amigas, ou mesmo entre si.

Em meio a brincadeiras, risos, música, dança, os jovens obrigaram Annika a fazer um discurso, no qual ela agradeceu por tudo o que haviam feito, e garantiu que na escola havia lugares para todos, fosse como professores ou alunos. Tarim riu e falou, na linguagem de sinais que Gabi lhe ensinara – e que todos ali já dominavam – que ele matricularia Sarah nas aulas de etiqueta, o que fez os irmãos saírem rolando pelo chão, brigando. Annika e Renard separaram ambos, rindo até lhes faltar o ar.

Foi só quando já ia caindo a noite que, enfim, Erik, Annika, Gabrielle, Meg e as crianças voltaram ao teatro. O Fantasma conduziu o coche pessoalmente, com sua esposa sentada ao seu lado, enquanto Gabrielle e Meg iam com as crianças dentro do carro. Era impossível saber quem estava com mais sono: as adolescentes ou os pequenos. Após deixarem Meg e Gabi no teatro, Erik e Christine desceram para a Casa do lago com as crianças; Alain ia praticamente desmaiado no colo do pai, ao lado de Carol, enquanto Annika embalava Selene suavemente. As pequenas sequer haviam estranhado o ambiente novo do Casarão, abrindo lindos sorrisos para quem falava ou brincava com elas, e isso deixara seus pais bastante satisfeitos.

— Acho que alguém não vai acordar para o banho – disse o Fantasma quando Alain sequer se moveu ao ser sentado na poltrona. Rindo baixinho, continuou – eu cuido deste aqui.

Revezaram-se para banhar e vestir as crianças, que não despertaram uma vez sequer, exaustas de toda a brincadeira e confusão; na verdade, também o casal estava bastante cansado, e foi com um sorriso de vitoriosa felicidade que adormeceram, abraçados, cantarolando melodias serenas. Não podia haver maior vitória do que a conquistada: dois renegados, proscritos, rejeitados pelo mundo, haviam conseguido não apenas superar as dificuldades e se tornar pessoas cujos dons tendiam ao excepcional, como também – e talvez o mais importante – haviam conseguido, enfim, encontrar o amor. Amor um pelo outro, mas também amor por si mesmos, aceitando a si mesmos e ao outro tal qual eram. Tudo isso culminara numa família linda, à qual amavam desesperadamente, e que lhes trazia aquele doce sabor de felicidade todos os dias.

POV Annika

Para mim, a vida não podia melhorar: tinha três filhos lindos – um menininho que acabara de completar dois anos, e duas garotinhas prestes a fazer dois meses – um esposo a quem amava com toda a força de meu coração, uma carreira brilhante, uma irmãzinha que deixava de ser menina e se tornava mulher, com uma carreira promissora pela frente... Tinha amigos muito queridos, e colegas de trabalho que me faziam gostar ainda mais da profissão – sem mencionar o incentivo e orgulho de Erik. Em resumo, a vida parecia perfeita. A escola deveria abrir logo, mas os processos burocráticos eram lentos e exaustivos, cheios de detalhes e pormenores, exigências aqui e ali, permissões, avaliações, restrições... Realmente não compreendo as pessoas que seguem carreira no ramo das leis.

Quem mais me ajuda com tudo isso, além de Renard – ele seria um brilhante advogado, mas preferia usar seu conhecimento absurdo sobre leis para burlá-las e contorna-las – era Madame Giry. Esta era a pessoa a quem amava como minha própria mãe, e deste modo ela agia. Madame, Madame... Nunca poderei agradecer o suficiente por tudo o que já fez por nós todos. Se existir um céu, acima de nós, tenho certeza de que a senhora é a favorita dentre os anjos, com sua bondade.

Numa manhã qualquer, ia descendo da sala de música no quarto andar para o refeitório, quando fui interpelada por Meg; em suas roupas brancas de bailarina, ela parecia uma fadinha alegre; mesmo com vinte e um anos, e noiva de Jean, seu rosto era o de uma menina de quinze ou dezesseis, puro e até mesmo infantil. Ela me abriu um lindo sorriso e pediu:

— posso ficar com as meninas, agora à tarde?

— Bem, elas precisam mamar, daqui a duas horas – respondi – mas não vou tirar sua alegria de dizer não. – deixei que ela pegasse minhas filhas, indo se acomodar numa “long-chaise” acolchoada, que arrumou para ninar as pequenas. Não pude evitar um sorriso, mas logo outra pessoa me chamou a atenção: Maurice, um garoto de dez anos, filho de atores e que prometia seguir a carreira dos pais. Ele me encarou com seus olhos castanhos e, ofegante por ter subido quatro lances de escada correndo, falou:

— Madame Destler... Tem um homem lá em baixo, no saguão, querendo falar com a senhora.

— Um homem? – perguntei, imaginando se seria algo relacionado à escola – quem?

— Não sei, mas não é oficial de justiça. Disse que era um conhecido; já passa dos cinquenta anos, com certeza.

Suspirei, dando de ombros, e agradeci, tomando então o caminho para o saguão; quem seria este “conhecido” que desejava me ver? Há muito que os poucos homens que me haviam reconhecido de minha antiga vida se haviam silenciado, ante as ameaças de Renard, Claude e Erik. Quem seria este, agora?

Assim que cheguei ao topo da escadaria, pude ver o tal senhor: bem-vestido como estava, devia ser nobre, ou um burguês muito rico. Tinha cabelos grisalhos, já rareando no topo da testa, barba cinzenta, a pele clara de quem nunca precisara trabalhar no sol. Contudo, foi quando olhei em seus olhos que o reconheci... Olhos azuis como o gelo, grandes e amendoados... Os olhos que eu herdara. Raiva, asco, medo, confusão... Tudo isso se misturava dentro de mim e, se estivesse de espartilho, eu teria desmaiado. Pois ali, em pé às portas de minha casa, estava o homem que eu não via há quase vinte anos... Ele também pareceu me reconhecer, pois tirou a cartola que usava e, com ar quase humilde – se é que ele era capaz de tal atitude – saudou:

— Olá, minha filha.

(para compensar esse final, uma imagem de Renard)