Animos Domi

Capítulo 38 - Ultima adivinhação


A casa de Alden era grande e com apenas um andar, como todas as outras. John, que achava que a casa seria tão colorida como o resto do bairro, se surpreendeu. Todos os móveis eram de um estilo antigo e de madeira escura, do tipo de coisa que a nobreza poderia ter possuído. Se John não conhecesse, diria que algum empresário rico morava ali.

Na soleira havia várias pantufas que, agora sim, eram incrivelmente coloridas. Os dois tiraram os sapatos e as calçaram, então entraram de vez. Foram seguindo o som de vozes até chegarem em uma espécie de sala de jantar, onde deram de cara com duas crianças. Duas menininhas com marias chiquinhas castanhas e uniforme escolar verde escuro. Duas garotinhas exatamente iguais, aparentando mais ou menos seis anos de idade cada. Gêmeas.

–-Hã... –Engrolou John, completamente constrangido. –Acho que entramos na casa errada, desculpem... –E tentou puxar Rose para fora, mas...

–-Vocês são John e Rose, não? –Disse uma das gêmeas. Os dois confirmaram com a cabeça. –Sou Simmea.

–-E eu, Sellena. –Disse a outra. –Mamãe nos contou sobre vocês. Ela está na cozinha. –E as duas apontaram para uma porta.

–-Hã... Obrigada. –Disse Rose. Ela cutucou John nas costelas e eles atravessaram a porta que os dedinhos das meninas haviam apontado. Alden e Enrico estavam lá, cozinhando em silencio.

John nunca imaginara Alden como mãe e esposa. Sempre a imaginara como algo incrível e intocável, não como um ser humano normal.

–-Certamente vocês nos ajudarão a preparar tudo, não? –Perguntou Alden, olhando por cima do ombro e sorrindo. O casal foi até a pia, hesitante. Alden fez John picar legumes, Rose preparar a carne e Enrico lavar os pratos. A própria Alden preparou saladas e molhos e fez as meninas arrumarem a mesa.

Era fácil esquecer que Alden estaria entregue a morte. Ela e Enrico formavam um belo casal: Quando ele passava, ou a abraçava ou murmurava frases em italiano. John se perguntou se eles seriam sempre assim ou se estariam apenas tendo uma longa despedida. As meninas vieram até a cozinha, esperançosas, quando o cheiro da sobremesa se elevou, mas conseguiram apenas que Alden lhes melecasse o nariz com molho. John não sabia dizer quem era Simmea e quem era Sellena. Uma vez Shiff veio até a cozinha, arrulhando. Entrou andando, pela porta, feito um ser humano, o que fez Rose e John rirem. A certa altura, enquanto descascava batatas, John se lembrou de algo.

–-Spock! –Gritou, de repente. Se levantou e entregou a faca a Alden, limpando as mãos no jeans. –Vou encher o pote de ração de Spock, já volto. –E tentou sair correndo, mas Rose o segurou pelo braço.

–-Pegue umas roupas para a gente. –Disse ela. –Vamos passar a noite aqui.

–-Hã... Vamos?

–-Vamos. –Respondeu ela. –Por Alden.

John sorriu.

–-Claro que vamos. Bom, vou indo. Volto já. –Ele deu um beijinho em Rose e correu até o carro.

John dirigiu depressa até sua casa, onde Spock se enrolava para lá e para cá nas pernas do humano, enquanto John pegava roupas e toalhas. Colocou tudo em uma mochila, esquecendo das inúmeras vezes em que Rose comentava o quanto odiava roupas amassadas. O humano abasteceu a comida e a água de Spock e pediu a um vizinho para fazer o mesmo até ele voltar, cedo do dia seguinte.

Quando ele voltou a mesa já estava pronta e todos o esperavam.

–-Resolvido. –Anunciou ele. –Alden, onde coloco isso? –Perguntou, erguendo a mochila.

–-Simmea, leve amochila para o quarto de hospedes. –Foi a resposta de Alden. Ela se sentou e todos fizeram o mesmo, e logo Simmea estava de volta.

Em nenhum momento da refeição fez-se silencio. O assunto foi de política, religião e filosofia e futebol, músicas e piadas, passando por ciências, futuro, tempo e planos. E pela primeira vez, Rose mencionou algo, quando Alden lhe perguntou se ela queria ter filhos.

–-Eu penso em ter filhos, claro. –E encarou o frango que partia, ao invés de John.

John a encarou. Ele nunca havia pensado nisso, então não tinha uma opinião formada. Tratou de formular uma.

–-E você os terá. –Garantiu Alden. –Você e John. –Ela sorriu de forma calorosa. –Na verdade, eu checaria isso... –E piscou para os dois.

Rose ficou pasma e olhou para John. Ele sorriu, riu e sorriu novamente. A opinião que havia formado era a favor de tudo aquilo.

–-Mas... Como? –Perguntou ela com um sussurro.

–-A Venezia? –Arriscou John, com um sorrisinho. Em Veneza?

–-Il loromalizioso! –Exclamou Enrico. Viu a expressão interrogativa de Rose e adicionou a tradução. –Seus travessos.

–-Por que, papai? –Perguntou Sellena. Rose riu.

–-Porque não estão comendo seus legumes, vejam só! –Disse Enrico, fazendo os adultos rirem.

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Depois do jantar Alden e Enrico foram lavar os pratos e John e Rose ficaram na sala de jantar comas gêmeas, que recitavam juntas o alfabeto em voz alta. John tentava bolar mentalmente um jeito de fugir de Jackie, por que estava certo que precisaria disso quando lhe desse a notícia. Ele não pode deixar de se imaginar recitando o alfabeto em voz alta com uma criança.

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Embora a casa tivesse televisão, ninguém nunca a ligava, segundo Alden. Ela, as gêmeas, Enrico, John e Rose se sentaram na sala de estar, jogando cartas e contando piadas. Enrico havia pego um violão e dedilhava qualquer música que fosse pedida. As gêmeas pediam suas favoritas várias vezes na mesma noite. John achava que era humanamente impossível decorar tantas melodias.

Quando o relógio bateu nove da noite, as gêmeas buscaram jogos de tabuleiro e Alden trouxe leite quente para elas e vinho para os demais. Enrico pôs o violão de lado e jogou também. As dez horas as meninas convenceram Alden a deixa-las acordadas até as onze. E quando chegou esse horário Alden não as deixou ficar acordada nem mais um minuto, e foi coloca-las para dormir. A meia noite foi a hora dos adultos.

John e Rose tomaram banho no banheiro do quarto de hospedes e colocaram os pijamas que John havia trazido junto com as roupas. John já havia acabado de se vestir quando alguém bateu na porta. Ele esperou Rose acabar de se aprontar e a abriu.

Era Alden.

–-Obrigada. –Disse ela, sorrindo. O casal só a deixou ir embora depois de um abraço e, quando ela o fez, os três tinham pequenas trilhas de lágrimas nos olhos.

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John teve um sonho que não era bem um sonho. Era uma lembrança. Ele estava sentado em um banco em uma praça e era noite. Estava completamente triste, sozinho e desesperado. Havia poucas horas que estava no mundo de Pete e não poderia estar mais perdido. Então uma cigana chegou sem ele ver, assustando-o ao falar com ele.

–---Não precisa ficar assim. –Dissera ela. –Rose só não sabe como agir. No fundo ela ama você tanto quanto O Doutor.

Eles conversaram.

–-Me chamo Alden.

–-Eu... Eu... –Balbuciara ele.

–-Não precisa me dizer como se chama, se ainda não sabe.

Depois ela, Alden, o convidara para ir até uma lanchonete. Lá o adormecera e, quando ele acordara novamente, estava na realidade, no quarto de hospedes com Rose ao seu lado. O dia começava a raiar. Ele cutucou Rose suavemente, esperando-a acordar.

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A casa inteira dormia e o silencio era total. Eram seis da manhã. Alden se levantou e se vestiu.

Ainda em seu próprio quarto, beijou Enrico. Foi até o quarto das gêmeas e as beijou também. Espiou John e Rose. Ele tinha uma expressão tensa, como se sonhasse com algo. Ela foi até a caminha de Shiff na cozinha. Tirou uma de suas muitas pulseiras e colocou-a no pescoço do pombo. Ele era o único que estava acordado e bicou carinhosamente sua mão.

Então Alden saiu pela porta, se encolhendo um pouco por causa do frio. A vila inteira dormia. Ela pensou novamente nas pessoas dentro da casa. “Eles vão fica bem”. E essa foi sua última adivinhação.

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Enrico acordou e olhou em volta, sonolento. Por muito tempo não mexeu nada senão o braço esquerdo na direção em que Alden costumava ficar. Suspirou pesadamente.

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–-Simmea, acorde.

Sellena havia despertado e agora sacudia a irmã.

–-Huum... –Fez Simmea, e seus olhos se encheram de lágrimas assim que os abriu.

–-Está tudo bem. –Disse Sellena. Ela era alguns minutos mais velha que Simmea, e isso fazia com que ela quisesse proteger a irmã menor de tudo.

–-Tudo está bem, bom e previsto. –Disseras as duas juntas. Aquele era uma espécie de mantra ensinado a elas por sua mãe. –Está tudo bem, bom e previsto.

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Quando Rose finalmente despertou, deu de cara com John, que sorria.

–-Bom dia, minha flor. –Disse ele. –Minha rosa.

–-Isso foi muito brega. –Disse Rose, se espreguiçando de maneira preguiçosamente preguiçosa. –Mas bom dia.

Os dois se aprontaram e foram tomar café. John sentia um aperto desagradável no estômago. A cada minuto que passava, sentia que Alden se afastava... A que horas ela iria? Como iria? Ele percebeu que continuava sem saber tudo sobre ela.

Quando chegaram na cozinha encontraram apenas Enrico e as meninas. John se sentiu pior.

–-Onde está Alden? –Perguntou. Rose agarrou o braço do humano com força e arquejou.

–-Achei que ela tivesse lhes contado o que aconteceria. –Disse Enrico, em inglês. Parecia completamente perdido e o copo já transbordava o leite.

–-Contou... –Arquejou John. –Mas... Já?

–-Sí. –Murmurou Enrico, de volta a seu italiano. Todos, menos John, mergulharam em um diálogo de sinto muito, obrigada e vou sentir falta dela, mas John não ouviu. Ele havia jurado a si mesmo que não entregaria Alden a morte sozinha.

Ele a encontraria. Procuraria na casa, no bairro, na cidade, no mundo todo, mas a encontraria. John Smith tomou um súbito impulso e desatou a correr, tudo para ser jogado ao chão e imobilizado por Enrico ao chegar na porta da sala. Rose e as gêmeas gritavam coisas indistintas. John se contorceu.

–-Me larga... Enrico, vai deixa-la morrer sozinha? –Arquejou.

Enrico não diminuiu o aperto. Estava machucando John um pouco. Seu peitoral doía na parte que era imprensado no chão.

–-Existem coisas que você não entende. –Novamente o inglês com sotaque, mas desta vez gritado. –Se nós, as pessoas que mais a amamos a deixamos ir, tem um motivo!

–-Não! Me solte, ME SOLTE!

–-Se eu não vou atrás dela—Começou Enrico, virando John de barriga para cima com um tranco desagradável e tornando a segurar seus braços. –você também não tem o direito! –E uma lágrima caiu de cada olho de Enrico e John precisou de um enorme esforço para não fazer o mesmo. –Era o que ela queria! –Enrico agarrou a frente do casaco de John e o levantou um pouquinho do chão. –Está ouvindo?

John de repente se sentiu pior do que se sentira durante todo o dia de ontem. Agora que parara para pensar, Enrico e as meninas não tinham feito um jantar normal, um noite de jogos normal e tinham ido dormir normalmente? De repente se tornou tão obvio que Alden, a Alden que se preocupava tanto com os outros tinha bolado isso que o rosto de John queimou de vergonha.

–-Desculpe. –Disse John, por seu ato de tentar correr. –Sinto muito. –Disse ele, por Alden.

Enrico soltou o casaco de John, mas continuou encarando-o, aparentemente esquecido que John estava imobilizado no chão. Simmea e Sellena vieram e seguraram cada uma uma das mãos do pai. Enrico se levantou, abobado. Rose ajudou John a se pôr de pé também.

–-Me desculpe. –Foi a vez de Enrico dizer. E estendeu a mão a John. Ele a apertou. Depois ele estendeu a mão a Rose, e ela apertou, mas depois, com lágrimas nos olhos, acabou puxando Enrico e o abraçando. Ele retribuiu o abraço alguns segundos depois e envolveu as meninas nele, e elas envolveram John.

John Smith soube, sem saber como sabia, que nunca mais veria Enrico ou as meninas novamente. Não os conhecia direito, então não haveriam visitas por nenhuma das partes. Também soube que por um bom tempo, senão pelo resto da sua vida, iria sempre lançar olhares furtivos para os lados, esperando dar de cara com Alden. Sempre que visse pombos lembraria. Sempre que visse ciganas lembraria. Sempre que visse crianças gêmeas lembraria. Sempre que tivesse problemas lembraria. Porque ela, Alden, era simplesmente especial demais para ser esquecida.

In memorian.