Nunca é fácil segurar o que você está sentindo.

- Ah, Natallie, me empresta suas anotações da Segunda Guerra?

- Tá.

Nunca é fácil não deixar transparecer a sua vontade de quebrar tudo.

- Vamô sair hoje, Natallie?

- Melhor não, vou ajudar o Frankie mais tarde.

- Hm... Tudo bem.

Não é que eu realmente estivesse surpresa.

Só que o fato de ter sido negligente com meus próprios erros me custava todo o autocontrole naquele momento.

Lutei contra instintos ferozes que me consumiam internamente, tentado conter possíveis lágrimas que me denunciassem. Eu não tinha por que chorar, na verdade.

Ainda bem que o tempo tratou de se apressar; não achei que suportasse muito mais que aquilo.

Mas... Não esperava que a repentina escolta da Way Company depois do colégio.

- E deixar você vulnerável a um ataque da Nestor? – comentou Mikey, quando todos íamos nos distanciando dos muros da escola.

Nem pensava mais em Jamia. Mas me senti agradecida.

- Frankie ficou pra trás, acalmando aquela doida – disse Bob, cruzando os braços – Tomara que ele tenha sorte.

- Mas eu não posso negar que foi um “Sr. Tapa”, hein, Natallie? – Ray riu, aprovador – Posso te perguntar o que foi que ela te disse?

- Não. – respondi, de todo o coração não querendo levar aquela conversa adiante – Só que fiquei surpresa por ela não ter me denunciado logo...

- Ah, mas ela deve estar montando uma estratégia maligna pra cima de você, Natallie – contrapôs Mikey, fazendo cara de sábio – É o que eu teria feito, oras.

- Que gay isso que você disse. – zombou Ray.

- Gay é quem disse que isso é gay – retrucou Mikey, irritado.

E começaram uma discussão.

- Você ‘tá bem, Natallie? – perguntou Gerard de repente, aproveitando-se das vozes altas do irmão e Ray.

Ao que será que ele se referia...?

- Tô bem, não precisa se preocupar. – respondi, sorrindo.

Duvidava que Way se deixasse enganar.

Um tropel de passos interrompeu a desconfortável avaliação de seus olhos verdes. Frankie chegara e quase se estatelara no chão ao parar perto de nós.

***

A tarde transcorreu normalmente e de modo mais agradável quando o médico do hospital ligou, me chamando para tirar o gesso. Pelo menos, uma boa notícia.

Não me enclausurei no quarto depois disso para não preocupar Elisabeth, então resolvi estudar na cozinha, pois era o melhor que eu poderia fazer, visto que Frankie não viria de verdade para minha casa.

“O produto final vai ser...”

A campainha tocou e me distraí um pouco do exercício. Acho que minha avó foi atender.

Voltei a me concentrar.

“Juntando o resultado positivo da primeira equação...”

- Hm... Quem dera resolver essas contas com tanta facilidade...

Levei um grande susto ao me deparar com Gerard Way ali, do meu lado.

Eu devia estar prestando muita atenção.

- O que você ‘tá fazendo aqui?

- Eu tive a impressão de que você não estava estudando com o Frankie coisa nenhuma – respondeu ele, puxando uma cadeira e se sentando – ‘Cê é uma CDF incurável.

Ignorei o comentário.

- Não tem missa hoje? – arrisquei sarcasticamente.

Gerard sorriu travessamente, ficando calado.

Retornei aos meus estudos, estranhando suas imprevisíveis reações.

- Quer sair comigo, Natallie?

A caneta saiu deslizando página acima, completamente descontrolada. Larguei-a, assustando-me.

- Algo me diz que você não esperava por isso.

Olhei-o, atônita. Ele permaneceu sorrindo, do jeito cínico que fora alvo do meu desgosto.

Elisabeth deu uma risada na sala, desviando minha atenção.

Dedos gelados encostaram-se em meu queixo.

- Natallie?

Deparei-me com o rosto de Gerard a centímetros do meu. Esquivei-me de seu toque, corando.

Ele sorriu com mais prazer, divertindo-se.

- E então? Quer sair comigo?

Seu tom era um pouco acima de um sussurro, explicitando que eu realmente não tinha escolha.

- Tá falando sério? – perguntei, tentando me acalmar e pensar em suas razões para me convidar.

- Claro que estou – respondeu ele, plácido – A não ser que você esteja com medo de alguma coisa.

Era evidente que eu tinha receios. Mas não me recordei muito deles.

A onda de irracionalidade era mais forte em meu intimo.

Gerard estava oferecendo a oportunidade de não guardar aquela dor só pra mim.

- Tudo bem, Way – concordei, levantando-me da cadeira – Vou com você.

Uma expressão de fingida surpresa perpassou seu rosto.

- Sério? –arriscou, inocentemente.

- Hm... – provoquei – Quem está com medo agora?

Talvez ele não estivesse esperando que eu aceitasse.

Fazer o quê?

Eu queria sua companhia mais que tudo no momento.

Subi para meu quarto, indo trocar de roupa, sabendo do frio de Beleville.

Quando abri a porta, ele já estava me esperando, encostado na parede oposta, fumando.

- Se minha avó te pega com isso aqui... – disse-lhe, repreendendo-o.

Ele soprou a fumaça pra longe, com cara de quem pouco se importa.

- Duvido que ela vá brigar.

- Ah, é... Você é o gêmeo bonzinho pra ela. – ironizei, lembrando da primeira vez que ele apareceu aqui.

- Que maluquice é essa de “Gêmeo Bonzinho”? – perguntou, depois de outra tragada.

- Te conto outra hora – a memória me dava vontade de rir, mas também me enchia de tristeza. Eu estava bem com o Bert naquela época.

Ou será que não?

Há quanto tempo ele estaria ficando com Jessica?

- Você ainda tá aí?

Despertei do súbito devaneio. Eu não podia deixar aquilo me infectar do jeito errado.

Era uma lição.

Ou talvez não, se Bert estivesse me enganando desde o inicio.

Não.

Não.

Ele era melhor que isso.

- Curiosa pra saber aonde vamos? – o tom dele tinha certa malícia que não gostei. Devia ser brincadeira.

- Me surpreenda, Way. – disse, sorrindo cinicamente como ele.

Passar por Elisabeth foi simples. Ela não parecia negar nada a Gerard.

- Não vá dormir muito tarde – recomendei, beijando-a no rosto – E não esqueça o remédio.

Ela fez cara de desgosto, já que não estava acostumada a ser a criança da casa.

- Thau, Liz – disse Gerard, escondendo o cigarro.

- Cuide bem da minha neta, Gerard!

Cara, que dèja vu... Fiquei com medo como naquela noite em que ele me levou pro aniversário de Frankie.

Um inesperado carro preto estava parado na frente de casa.

- Suponho que esse lugar seja um pouco longe, não? – perguntei, quando Gerard tirou um molho de chaves do bolso e destrancou o carro.

- É por aí. – sua resposta foi vaga, mas explicitava que não era algo que eu devia perguntar.

Não gostei de novo.

Verdade que já me acostumara com o jeito de Gerard Way, até me julgava apaixonada por ele, mas...

Sentei ao seu lado, sentindo uma insegurança ridícula.

Gerard também era melhor do que isso.

- Aqui vamos nós. – disse ele, dando a partida.

Era a primeira vez que saímos não-obrigatoriamente.

Ele dirigia bem, o que me passou segurança, mas seu silêncio parecia estranho.

“Pare de pensar besteiras”, pensei, olhando para as casas que deixávamos pra trás.

Passamos por Rutgers, e começamos a conversar do nada sobre a faculdade que iríamos cursar dali a alguns meses.

- Vou tentar a Universidade de NY, quero muito fazer Artes – anunciou ele, com convicção. Que surpresa. – E você?

- Não sei – respondi sinceramente – Ainda não pensei com vontade no que quero fazer.

Gerard deu uma risada irônica

- Justo você? – ele fez uma curva para a St. Louis – A Srta. Sabe-tudo?

- Eu não sei de tudo. – e me lamentava por isso.

Uma nova preocupação me atingiu.

Por que Saint Louis?

- O que tem de tão interessante aqui? – perguntei, indicando a placa riscada e gasta.

- Você verá. – ele continuou dirigindo por mais 500 metros antes de parar no acostamento.

Fiquei uma oitava mais nervosa. Olhei para a esquerda e a direita, lembrando dos dois punks da outra vez que estivera ali. A floresta que cercava a estrada de ambos os lados me afligia mais ainda.

- Aonde vamos? – decidi perguntar de um jeito novo, tentando expressar uma aparente calmaria, mesmo com a voz estalando de medo.

Gerard tirou as mãos do volante e me olhou, parecendo preocupado.

- Erm... Desculpe se esse lugar não te traz as melhores recordações... – ele passou os dedos pelos cabelos, refletindo – Mas tem um lugar que quero muito te mostrar, Natallie.

“Menos mau”.

- Tinha que ser na St. Louis? – dei um sorriso cínico – Espero que não tenha nada a ver com aqueles caras esquisitos.

- Não terá – respondeu Gerard, surpreso – Eles já foram presos faz tempo.

- Que pena. – disparei, aliviada.

- Se importa de andar um pouco na floresta, Natallie?

Era uma idéia estranha a se considerar.

- Mas e se alguém roubar seu carro? – a hesitação não me pareceu o sentimento certo no momento.

Gerard fechou os olhos e suspirou.

- Eu não vou fazer nenhuma loucura, sei onde estou indo.

Não era a resposta que eu esperava ouvir e me senti mal por insultá-lo com meias palavras. Afinal, por mais que eu não tivesse lhe contado meus problemas, ele percebera e estava tentando me ajudar a esquecer...

- Tudo bem.

Ele ficou grato com minha concordância.

Já ouvi gente dizer que é muito saudável sair por aí e fazer trilha ou qualquer outra esporte que implique muito cansaço e adrenalina.

Acho que nada se compara com andar numa floresta cheia de neve com um ex-desafeto seu à noite.

É bizarro demais.

Pisei duas vezes de mau jeito enquanto nos embrenhávamos cada vez mais fundo por entre centenárias árvores. Gerard me segurava pela mão, rindo.

- Não tem graça, Way... – resmunguei, quando ele tornou a me socorrer.

- Tem razão. Não é engraçado, é hilário.

Num determinado ponto, as árvores impediam a neve de chegar ao solo e fiquei agradecida por isso. Gerard me guiava habilidosamente até que paramos na frente de um tipo de cerca viva.

- E agora, Way? – perguntei, achando que estávamos perdidos.

Com um sorriso, ele me puxou para dentro da cerca viva.