A dor no dente atacou de novo, fez uma careta e levou a mão até a bochecha coberta pelos fios grossos da barba aparada com tesoura, mexendo o maxilar. Distraído com sua dor costumeira, pisou em um buraco na calçada, o pé afundou, como quando se esquece de que ainda tem um degrau na escada, os braços se esticaram em busca de apoio e Alek titubeou recuperando o equilíbrio em seguida.

— Droga. — Praguejou olhando para os lados, seu olhar atento e apressado como o de um rato assustado. Algumas pessoas olharam para ele, mas ninguém realmente se importava. Ninguém realmente se importa com nada.

Umedeceu os lábios e continuou andando, já sem sentir a dor no molar cariado esquerdo.

As calçadas estavam repletas das mais variadas pessoas. O Anel era assim, vinha gente de todo canto de Tëmallön, havia mulheres com os cabelos cobertos, rostos enrolados em lenços coloridos com desenhos bordados, e outras com roupas tão masculinas como as do próprio Alek. Havia homens com saias vermelhas e pretas, que desciam até abaixo dos joelhos e outros com calças largas e apenas tiras de couro como suspensórios, sem nenhuma camiseta ou jaqueta, exibindo seus corpos. Ainda havia crianças vestindo chapéus e velhos alimentando pombos com pães que esfarelavam com os dedos trêmulos. Era possível ouvir mais de um idioma, Alek desconhecia-os, fora criado desde pequeno no Anel e em Alnia-sar, em ambos os distritos todos falavam o idioma comum, uma língua nascida da necessidade, fundindo um pouco de cada povo em algo que fosse compreensível, mas não era bonito de se ouvir, soava reciclado e grosseiro.

Mesmo assim, Alek aprendera a reconhecer os idiomas mesmo sem saber falar eles. Adorava ouvir as pessoas que tinham vindo do Sul além do mar. Eram pessoas diferentes em tudo, e também eram minoria ali. Suas peles negras se destacavam entre os outros e eram abertos a quase tudo que lhe propunham ávidos por conhecimento e experiências novas, diferente de outras tribos do oeste que sequer falavam o idioma comum e eram reclusas, por vezes em seu trabalho ele tinha que lidar com essas tribos.

Então uma carruagem passou ao seu lado com cavalos relinchando enquanto o chicote estralava em suas ancas. Acompanhou com desgosto a cena, e tentou ignorar continuando seu caminho para casa. Não poderia fazer muita coisa, o carroceiro estava com pressa, e os cavalos precisavam ser ágeis. Não à toa estão parando de usar cavalos.

Desde o vapor, cada vez menos se usava tração animal. Alek agradecia por aquilo, mas no fim era para os homens quem sobrava o trabalho. Especialmente para ele mesmo.

Sua mão era calejada, os dedos tinham marcas de machucados que nunca chegavam a cicatrizar até que outros se abrissem em cima destes, e as unhas eram trincadas. Os braços também possuíam sua cota de cicatrizes. Cortar lenha não era fácil, mas as fábricas precisavam cada dia mais de matéria. Havia tentado por quase duzentos dias trabalhar em uma forja e depois em uma mina, mas o calor era insuportável e as queimaduras quando aconteciam tendiam a ser fatais ou tornar impossível de se trabalhar. Alek não podia se dar aquele luxo, não podia se tornar um pedinte nas ruas, precisava ajudar sua mãe e as duas irmãs. Principalmente Tessara.

— No chão! — Então a porta de uma casa se abriu com uma pancada.

Um idoso recuou no ímpeto da porta se escancarando, desequilibrou-se e caiu no chão logo mais na frente de Alek.

Pela porta escancarada uma mulher rastejava choramingando e um guarda do Pilar vinha ate ela, puxando consigo um garoto de não mais que dez anos, pela camiseta. Jogou-o aos pés da mulher que agarrou a criança como se fosse seu filho.

Alek estarreceu-se, suas pernas congelaram ao ver a cena desenrolar na sua frente. Primeiro, olhou para a mulher que tinha uma mancha vermelha na têmpora, como se tivesse acabado de apanhar. Depois olhou para os lados, as pessoas, fossem as de saia ou de calça, as de vestidos e cabelos ao ar, ou as de lenços envoltos na cabeça, as negras ou as brancas, as bem vestidas ou as mais simples, todas sem exceção desviavam os olhares e continuavam a andar, como se nada estivesse ocorrendo.

— Aqui senhor. — Ofereceu o braço, passando-o por debaixo do braço do idoso caído, e colocou-o de pé.

O homem, por sua vez, olhou-o com desconfiança, anuiu como se em um agradecimento covarde, e saiu andando para o lado de onde tinha vindo, evitando assim passar pelo guarda e a família rendida.

Quando olhou novamente para a mulher, esta estava chorando com as mãos em suplica.

— Fui eu, não ele, deixe-o, não faça mal ao meu filho, imploro, não faça! — Alek percebeu sua expressão, os olhos e as curvas que seus lábios faziam quando falava entre as lágrimas, a garganta engolindo a saliva com dificuldade entre os soluços, as mãos suplicando em desafio a tremedeira que o medo instilava.

O guarda do Pilar se agachou olhando a mulher, outro guarda saia pela porta, na mão deste um saco cheio de... São drogas. Alek reconheceu. A vida não era fácil para ninguém em Tëmallön, alguns fugiam para outros mundos, os próprios mundos, e outros vendiam a fuga. Alek havia aprendido, naquele mundo sempre havia alguém para vender, bastava saber aonde procurar.

— Leva o garoto. — O que estava agachado disse. — O Rei dos Reis vai precisar dele.

— Não, não o leve, não façam isso, deixe-o...

O guarda puxou a criança com uma mão, jogando o menino para trás, que caiu de cara no chão usando as mãos como defesa, ralou-se soltando um grito estridente de dor. E mulher tentou se jogar para frente para acudir sua prole, mas com a outra mão o guarda agarrou-a pelo pescoço e se levantou, levantando ela também.

— Para virar um traficante feito a mãe? — Ele questionou. Alek então notou que não era mais o único a assistir a cena.

Do outro lado da rua, nas janelas dos segundos andares das casas, viu mais duas pessoas com atônitos olhares e entre outros os passantes lançavam olhares discretos, como se quisessem mas não tivesse coragem sequer de olhar. Ninguém fazia nada. Seus dedos se moviam e ele pensava se deveria fazer algo. Vá para casa, continue andando. Pensou enquanto um dos guardas conduzia o garoto pela rua e sua mãe ficava para trás, aos prantos implorando por algo que não aconteceria e o menino olhava para trás e gritava para que ela não o deixasse.

A cena teria sido suportável até aquele ponto, mas fora ai, quando o guarda com a criança virara na primeira esquina, que o outro, segurando a mulher pelo pescoço, olhou para ela e foi quando as suplicas acabaram. Um movimento rápido com a mão livre, o suspiro.

— Argh... — Ela grunhiu quando a faca entrou em suas costelas, pouco abaixo do seio, e saiu vermelha.

O guarda soltou o pescoço da mulher que caiu de joelhos, o sangue escorrendo pela sua camiseta de algodão, pingando no chão, ela cambaleou se levantando e tentou ir ao caminho que o filho fora, mas o guarda chutou sua perna e ela tornou a cair, indefesa feito um animal acuado, se encolheu olhando para o homem, Alek porém só via um monstro.

— Por favor, é só uma criança. — Ela pediu com as lágrimas já secas no rosto. — Não tem filhos?

Alek então se lembrou da dor, seus punhos estavam fechados e os dentes cerrados, sua alma inundou com a lembrança tão vívida.

Fazia dez ciclos, mas era como se fizesse dez dias. Todos aqueles ao redor, continuando seus caminhos como se aquilo não lhes dissesse respeito, mas dizia. Toda vida dizia respeito aos vivos, seu pai havia lhe ensinado aquilo antes de ser apenas mais um na sarjeta.

Ninguém faria nada, então ele fez.