O som de galhos se partindo ressoava por entre os troncos retorcidos das árvores. Assim como o som de folhas, já secas e sem vida em decorrência da proximidade do inverno, emitiam ao serem esmagadas por botas de couro.

—Eu quero que reforce aquela parte. Está vendo?-Alaric apontou para a muralha intimidante de pedras que recobria todo o clã. Sebastian assinalou com a cabeça, com o olhar compenetrado. -Não quero ter dúvidas de que a pessoa que cometeu o último ataque veio de dentro do clã.

—Vou mandar que alguns homens que trabalham nos campos reparem isso.

—Bom. -Alaric permaneceu com o olhar perdido na muralha, por alguns instantes, antes de uma cor vermelha e flamejante invadir os seus pensamentos.

Ele praguejou internamente, girando sobre o calcanhares, mas logo se deteve ao perceber, que não importava quantas passadas deva, ou quantas vezes tentava fugir, Roslyn sempre dava um jeito de penetrar os seus pensamentos e cravar sua essência em sua memória de forma permanente.

—O que há com você? Está se comportando como um cavalo no cio. Irritado e inquieto. -Sebastian riu acompanhando com o olhar algumas aves que circulavam acima de sua cabeça em perfeita sincronia.

Como um perfeito caçador, retirou rapidamente o arco, encaixando a flecha pontiaguda entre os dedos calejados.

—Você já parou para pensar Sebastian, que é muito mais provável que a sua língua te leve à morte do que os campos de batalha?

Sebastian comprimiu as sobrancelhas, exalando uma risada, mirando no alto.

—Alaric, caro amigo, acredite se quiser…-Sebastian pausou, com a respiração contida e o dedos apertados em volta da flecha. -…mas está irremediavelmente enfeitiçado.

De repente, algo veloz cortou o ar e o som de uma grasna sofrida ecoou na floresta.

Sebastian encarou mudo a ave cair sem resistência até pousar a alguns passos de distância, com um punhal cravado em seu coração.

Alaric caminhou a passos lentos, comedidos, até a ave que grasnava ainda em angústia. Em um movimento rápido, o corpo imóvel descansou contra o manto de orvalho que começava a se formar sobre a floresta mórbida e decrépita.

—Eu só acredito em duas coisas, Sebastian. -Alaric retirou o punhal do corpo do animal sem cerimônia. Como se já estivesse tão acostumado a ver sangue e morte, que para ele já era algo comum e corriqueiro. -Na força desse punhal e na morte daqueles que se interpõem no meu caminho.

◆◆◆

Roslyn se ergueu ao ouvir o som de uma grasna cortando o ar gelado de inverno que penetrava na fortaleza.

A brisa afagou a sua face, agitando os fios ruivos que se encontravam soltos às suas costas.

—Não gosto desse tempo. -A voz de uma das criadas ressoou a suas costas. -É como se ele anunciasse o prenuncia de algo ruim.

—Pare de falar besteira, menina. É apenas a chegada do inverno. -Marion replicou agitada de algum lugar ao fundo do cômodo do salão.

—Sim. Mas, nunca tivemos um inverno assim. Tão silencioso.

—Silencioso?-A voz trocista de uma das outras mulheres do salão se intrometeu na conversa das duas. -Está passando muito tempo com Gael, Sarah.

—Ele é um velho muito sábio. -A mais nova comentou, parada com o tapete em mãos, os olhos arregalados assistindo os galhos secos tremerem diante do vento frio.

—O homem que afirma ter uma esposa como defunta não me parece ser muito sábio.

Todos conheciam a história do velho e pobre Gael. O homem que foi deixado no altar porque a mulher fugirá com outro e morrerá dias depois por conta da peste. Dias depois o túmulo foi enterrada na propriedade de Gael, uma vez que os pais renegaram a filha. E, até hoje, ele afirma com total convicção que a mulher vive ao seu lado.

—Bem, as histórias dele são muito interessantes.

—Para se ter pesadelos você quer dizer.

—Claro que não!-A voz ultrajada de Sarah repercutiu pelas pedras frias. -Ele acertou sobre a maldição jogada sobre o clã quando…

—Sarah!

O grito de Marion soou como um chicote. As duas mulheres se entreolharam assustadas, mas nenhuma delas se atreveu a olhar para Roslyn, que se mantinha ereta, voltada para a janela de vitrais.

—Saiam, imediatamente.

—Não é necessário. -Roslyn se pronunciou pela primeira vez naquela tarde sombria.

As duas mulheres envergaram os ombros como se a vergonha pesasse sobre elas.

Todos sabiam que Roslyn era considerada a maldição do clã quando nasceu com os incríveis olhos azuis desfocados e os fios ruivos indomáveis. E, apesar de toda doçura da menina, parte do clã acreditava que tudo o que estava acontecendo: a falta de comida, de roupas quentes para o inverno, e a invasão ao clã, era culpa da maldição recaída sobre eles no dia em que a mãe de Roslyn deu a luz aquele pequeno bebê.

E não haveria nada que pudesse mudar a mentalidade daqueles que acreditavam fielmente que tudo o que estava acontecendo era culpa somente dela.

E, Roslyn não os culpava.

As pessoas buscavam motivos ilógicos para justificar algo que não tinha explicação, pelo mero fato de que precisavam se agarrar a algo concreto que pudesse justificar tanto sofrimento e crueldade. Por mais doloroso que fosse, ela aceitava e entedia isso.

—Minha senhora, eu sinto muito. Não quis ser desrespeitosa. -A mais nova, Sarah, falou com o queixo tremente de vergonha.

—Não foi. -Apesar da negativa, todas percebiam as feições frias e distantes no rosto corado. -Marion.

—Sim, minha senhora.

—Leve-me para fora. Quero respirar um pouco de ar fresco.

—Sinto muito, senhora. Mas, o senhor não permiti que deixe a fortaleza.

A voz do soldado a lembrou que Alaric havia deixado praticamente uma enfrentaria para acompanhá-la por todo lado. Não podia dar um passo sem trombar em um deles.

—Bem, ele não está aqui para me impedir de sair, está? Marion, por favor.

A velha senhora rapidamente se encaminhou ao seu encontro, tomando a mão suave entre as suas.

—Vamos.

Porém, no mesmo momento, o vento gelado pareceu se intensificar, um rangido de madeira preencheu os seus ouvidos. A mãe de Marion se tornou momentaneamente gelada.

—Marion o que há?

—S-senhora eu acho melhor irmos depois. -A criada sussurrou.

—Marion, eu não suporto mais ficar trancada nessa fortaleza.

Um passo para frente e algo grande e robusto a impediu de continuar.

—É realmente intrigante esse seu instinto de sempre descumprir as minhas ordens.

Roslyn retrocedeu rapidamente com os olhos arregalados de susto, porém rapidamente se recuperou ao lembrar das ordens ridículas que Alaric lhe havia imposto a poucos dias.

—Intrigante é o fato de você continuar me tratando como uma prisioneira, bradando ordens sem sentido como um velho rabugento.

O som de algo engasgado ressoou pelo salão, quase como se fosse uma risada estrangulada.

—E não trataria, se eu não soubesse que há alguém querendo a sua cabeça, assim como a minha. -Alaric falou com os dentes cerrados; a expressão começando a se fechar.

Roslyn abriu a boca para discutir, mas sentiu a mão de Marion a suas costas, lembrando que não estavam a sós.

—Eu não vou discutir com você, agora. -Ela sussurrou com as mãos cerradas ao lado do corpo e o queixo erguido.

Uma perfeita guerreira prestes a entrar em combate.

—Como quiser, senhora. -A voz trocista de Alaric a faz trincar os dentes. -Vocês dois ajudem Sebastian a descarregar os cavalos. As duas terminem logo esse serviço, preciso do salão livre para alimentar os meus homens. Marion quero que ajude na cozinha…

A velha mulher fora a única a hesitar a cumprir as funções, enquanto todos os outros praticamente correram desesperados por se livrar da presença daquele que muitos acreditavam ser uma das crias de lúcifer na Terra.

Roslyn permaneceu quieta com os ombros erguidos e a expressão indiferente, mesmo que seu coração martelasse desesperado contra seu peito.

—…quanto a você...-Alaric cruzou o braços e passeou o olhar pela face que rapidamente se tornará pálida, deixando ainda mais proeminente as sardas, que pareciam recobrir a face feminina como se fossem constelações pintadas no céu.

Ele se aproximou um passo sem resistir a observar aquelas manchinhas mais de perto, investigando até que ponto elas desapareciam pelo corpete austero do vestido.

Roslyn aguentou o quanto pode aquela proximidade inquietante, no entanto não resistiu à dar um passo para trás, tornando a liberar a respiração que prenderá.

—…você vem comigo.

A mão de Alaric tomou o seu cotovelo e a incitou a ir para frente.

—Para onde vamos?-Ela permaneceu com os pés fixos no chão.

—Já que insiste em ignorar as minhas ordens, eu mesmo irei vigiá-la. Ao menos, assim eu terei certeza de que não irá descumprir outra ordem. Não. -Alaric passou a frente rapidamente quando notou o rosto afogueado da ruiva.

Ela resmungou algo incoerente e ofensivo, mas, por fim, caminhou ao lado do marido; relutante. O braço tão retesado que facilmente poderia ser comparado a uma pedra.

As escadarias pareciam intermináveis a medida que Alaric a fazia subir lances, e mais lances de degraus. O ar parecia menos sonoro a medida que os corredores se bifurcavam e se tornavam cada vez mais estreitos.

Roslyn sentiu o frio não somente como um tecido que recobria a sua pele, mas também como um líquido que circulava em seu íntimo. Ela queria poder falar algo, contestá-lo de qualquer forma, mas, por algum motivo, sempre permitia que ele a guiasse.

No entanto, naquele silêncio opressor, somente com a respiração cadente de Alaric para lhe preencher os sentidos e a mão em seu cotovelo para lhe guiar, não conseguia manter a calma e a serenidade.

Era como sentimentos desconhecidos para ela.

Em um momento do caminho, o corredor se tornou estreito.

Ela sentiu a mão de Alaric escorregar pelo seu braço causando um arrepio de medo em sua coluna.

De repente, se imaginou só naquele lugar sem saber pra onde seguir, sem ninguém para guiá-la. Se imaginou apalpando as paredes escorregadias por conta da umidade. Gritando por ajuda mesmo que ninguém fosse escutar.

No íntimo, sabia que eram pensamentos caóticos de uma mente no limite da exaustão, mas não conseguia pensar racionalmente enclausurada nos próprios medos.

Sem conseguir controlar a apreensão que a consumia, virou-se com as mãos espalmadas para frente e o rosto contorcido de angústia ao não escutar mais a respiração de Alaric. No entanto, rapidamente seus dedos encontraram uma superfície áspera de tecido puído e uma face dilacerada por sulcos profundos.

E, então, seu coração saltou de uma forma dolorosa contra seu peito, mas não por conta do medo que a consumia de Alaric a deixar naquele lugar onde nem mesmo a brisa fria do exterior alcançava. Oh, não. Não era o medo que fazia sua pele arrepiar e o seu ventre congelar como as flores do lado de fora da fortaleza.

Era algo muito mais profundo. E que ela temia desvendar.

Com o polegar ela seguiu a linha de uma cicatriz que trilhava um caminho até os lábios finos e frios.

A respiração agitada de Alaric raspou os nós de seus dedos, tornando a tarefa de não se aproximar, mais difícil.

Antes que pudesse continuar com o escrutínio do restante das cicatrizes do mercenário, uma mão firme e calejada sobre o pulso fino de Roslyn a fez parar.

Ela recuou um passo com a expressão de uma criança que inicia o prato principal sem a permissão dos pais.

A mão em seu pulso afrouxou de leve o aperto, mas não a soltou completamente.

—Não comece algo que não pode terminar, Roslyn.

Ela sentiu a face enrubescer e os joelhos fraquejarem sobre o seu peso com a insinuação velada.

Sentiu no momento em que Alaric se aproximou.

As respirações se misturaram e os corpos ensaiaram um tipo de movimento sincronizado. Como se fossem pedras que sempre voltavam a se encontrar, não importava a distância, e muito menos o tempo em que passavam separadas.

Mesmo no escuro, Alaric encontrou o caminho em direção a pele aquecida e rosada. Como se já tivesse mapeado cada curva e linha do corpo de Roslyn e não precisasse mais de luz para saber em que lugar precisava tocar para encontrar a pequena ondulação no queixo feminino.

Ele inclinou a cabeça, sem pensar no quanto Roslyn estava ocupando praticamente todos os seus pensamentos, sem pensar que ela estava se apossando de tudo que existia de vivo dentro dele. Mas, ele não queria pensar em coisas racionais, enquanto Roslyn estivesse em seus braços e a sua pele suave tocasse a dele.

Por mais contraditório que fosse admitir, ele não passava de uma presa nas garras afiadas daquela menina cega de beijos doces.

—É aqui o lugar que queria me levar?

O sussurro abafado o fez parar.

Ele se afastou encolhendo os ombros e dando um passo para trás. Mas, ele sabia que a distância de nada adiantava.

—Não. Ainda há mais uma escada.

A outra escada era estreita e feita de madeira. Eles estavam em um tipo de alçapão que levava a uma torre escondida dos olhares dos outros do clã.

Ela era alta e ainda possuía arranhões de guerras travadas anteriormente.

Alaric foi o primeiro a subir, ajudando Roslyn com os degraus logo depois.

O vento açoitava ferozmente o cabelo ruivo e o vestido de um azul desbotado. No entanto, apesar do óbvio desalinho da menina, ele não conseguia mirar o olhar em outro lugar que não fosse a face de Roslyn.

Começou a acreditar que havia algo de místico na ruiva de feições inocentes, uma vez que a cada dia se sentia enfeitiçado pela voz, pelo toque e pela cor vermelha que sempre o perseguia.

Ele deu passos para longe. Voltando o olhar para o horizonte. Ao menos assim não continuaria a ser tentado a olhar as curvas do corpo feminino que se delineavam pelo vento forte.

—Aonde estamos?

A indagação o pegou desprevenido. Era irônico o fato de que Roslyn sempre dava um jeito de o colocar em situações que não sabia como se portar. Nem mesmo os seus maiores inimigos conseguiam.

—Em uma torre.

—E por que estamos em uma torre?

—Por que, ao menos por um instante, você não pode parar de fazer perguntas?!-A resposta seca e grosseira foi tão impulsiva que ele só percebeu depois, ao olhar para o rosto magoado e surpreso de Roslyn, que novamente havia a machucado com suas palavras rudes. -Só pare de fazer tantas perguntas.

Ele emendou tentando consertar o dano. Era um sentimento estranho se preocupar com outra pessoa e seus sentimentos, mas ele não conseguia evitar quando se tratava da ruiva que tinha como esposa.

Roslyn não respondeu, mas somente pela forma como o maxilar e o corpo se tornará rijo, ele já sabia que ela havia erguido barreiras, como a muralha de pedras que protegia o clã, envolta do seu coração.

Ele caminhou até ela e, em poucos passos, estava ao seu lado. Quis segurar a mão que repousava ao lado do corpo, mas sabia que se tentasse, Roslyn ficaria ainda mais esquiva.

—Dê mais alguns passos para frente.

Ela hesitou como se quisesse teimar contra seus comandos, mas, por fim, deu passos inseguros para frente. Alaric apoio a mão nas costas retesadas, incitando-a a andar mais um pouco.

—Está bom aqui.

Ela deu um passo a mais, livrando-se de seu toque.

Ele fechou a mão em punho e deixou a mão cair ao lado corpo.

—Eu descobri essa torre quando estava procurando por bifurcações ou esconderijos na fortaleza. Ela serve para tempos de conflito entre clãs, para os arqueiros.

Ela assentiu imperceptivelmente.

O silêncio pesou sobre eles. Alaric não sabia definir o motivo pelo qual a trouxe para aquela torre escondida do conhecimento de todos do clã.

Talvez, ele quisesse algum lugar onde ninguém pudesse achá-los.

No entanto, nem mesmo ele saberia definir o motivo daquela atitude impulsiva.

—Conte-me o que ver.

Alaric puxou uma respiração profunda ao ouvir a voz controlada de Roslyn.

Ele dirigiu o olhar para baixo, observando os fios flamejantes tocarem o rosto pintado de constelações. Observou o queixo orgulhoso projetado para frente e a marca delicada do maxilar.

Nem mesmo os melhores trovadores seriam capazes de retratar Roslyn com palavras que não lhe faziam jus.

—Eu vejo fios dourados da cor do pôr-do-sol brilharem como chamas. Eu vejo lábios rubros macios que facilmente se dobram em um sorriso doce. Vejo olhos incrivelmente azuis que são capazes de iluminar a noite mais escura. -Naquele momento, todo o ar que existia dentro de corpo de Roslyn foi expelido pela abertura mínima dos seus lábios abertos. Naquele momento, ouvindo a voz grave de Alaric tão perto de si, ela não saberia dizer se o seu coração continuava batendo dentro de seu peito. O único que conseguia sentir era o braço de Alaric envolta de sua cintura a atraindo contra si. -Eu vejo uma mulher incrivelmente forte.

E quando os lábios frios se encontraram em um roce suave e efêmero, nem mesmo a neblina fria que caía do céu, foi capaz de atrapalhar o abraço de almas entrelaçadas pelo destino.