_ Foi a Michele, não foi?

Itacy parou de braços cruzados logo à frente da porta.

_ Não vejo problema nenhum. Aposto que o Max tem o seu número. - sem se interromper, Enzo continuou – E você agora pode me ligar sempre que tiver vontade. Isso não te deixa animada?

_ Como nunca antes.

Itacy deixou a mochila num canto, perto da porta e dirigiu-se ao espelho, de costas para o pianista. Apoiou-se na barra com uma mão, e testou alguns movimentos com os pés.

Não se incomodou quando a música parou de tocar. Tinha toda a melodia em sua mente.

_ O que te torna um vampiro? - ouviu-o perguntar.

Itacy experimentou a 4ª posição dos braços, com um braço estendido acima da cabeça, enquanto o outro estava curvado à frente do corpo.

_ Quando seu organismo é acometido por três investidas é que ele se torna maculado. A primeira vez pode ser acidental. A segunda, uma fatalidade. Mas na terceira... Bem, você já deveria ter se protegido. E como castigo, você é condenado a viver... - Interrompeu-se para rir morbidamente - A "viver" eternamente nas trevas. E na mais funesta caça... Nunca se esqueça disso, já que essa cicatriz em sua nuca trata-se da obra de um par de presas.

+

Enzo levantou-se e aproximou-se de Itacy, assistindo seu ensaio mais de perto.

Havia sido mordido uma única vez por um vampiro. Por sua mãe.

Tirou um chiclete do bolso e o mascou em silêncio por alguns instantes.

Itacy parou com o ensaio e apenas o encarou.

_ Vou ordenar uma última vez: Esqueça todo esse papo de vampiros.

Enzo estourou uma bola do seu chiclete e sentou-se aos pés de Itacy.

_ Eu também tenho uma ordem pra você: relaxa!

Viu que a garota suspirou profundamente antes de também sentar-se ao seu lado.

_ Você não entende... Eu... Estava tentando apagar sua memória. Mas não dá certo com você.

_ Ahn...

Enzo dobrou uma perna e apoiou um braço sobre ela. Observou as linhas negras do contorno do piano enquanto tentava digerir toda aquela história.

Itacy só estava tentando hipnotizá-lo. Nada demais.

Ser vampiro tinha grandes vantagens... Força, velocidade, regeneração, hipnose... Isso tudo era o suficiente para compensar a maldição?

_ Então quer dizer que eu ainda tenho duas vidas? - brincou.

_ Sabe, não é tão engraçado quanto parece...

_ Eu sei. Caso não se lembre, minha mãe era uma vampira e foi embora por causa disso.

Esse detalhe o fez lembrar-se de outro. Perguntou:

_ Seus pais também são? Eles que fizeram isso?

Ainda encarando o chão, Itacy balançou a cabeça negativamente.

_ Eles morreram. Somos só eu e meu irmão.

_ Há quanto tempo?

_ Há dois anos.

_ E há quanto tempo vocês são...?

_ Há dois anos.

Enzo calou-se por um instante. Na mesma ocasião em que os pais de Itacy morreram, ela e o irmão haviam sido transformados em vampiros.

_ Quem fez isso com vocês?

Itacy voltou seu olhar para o colega sentado ao lado.

_ Não posso falar sobre ele. Eu não podia nem mesmo falar sobre mim, Lorenzo.

_ Qual é Tacy... A essa altura?

Itacy apoiou o rosto entre as mãos.

_ Se ele souber o que eu te contei... Nem sei o que seria capaz de fazer...

_ Mas ele não os salvou? Duvido muito que seja tão rígido assim...

_ Ele salvou meu irmão. Meu irmão é a criação dele.

_ E você?

_ Foi o meu irmão.

Enzo bufou, forçando-se a acreditar que estava mesmo ali, tendo aquela conversa. Esfregou os olhos com as mãos e as deslizou para o alto da cabeça, bagunçando os fios negros de seu cabelo.

_ Como vocês vivem? - Enzo deixou de encará-la, apreensivo com a resposta, apesar dela ter lhe dito na noite anterior que não matava pessoas.

_ Eu... Não quero falar sobre isso.

_ É humano? O sangue que vocês-

_ Sim.

_ Como? Vocês escolhem as vítimas aleatoriamente?

Percebeu que Itacy se retesou ao som da palavra “vítimas”. Ela encarou-o resoluta.

_ Nós não fazemos vítimas, Lorenzo. Não podemos deixar de ser monstros, mas não precisamos nos comportar com tais.

_ Eu não quis dizer isso. Não acho que sejam monstros. Vocês são... Uma outra raça. Assim como existem os brancos, os negros, os amarelos... E os vampiros.

_ Boa tentativa. Mas não é bem assim. Ter outra cor de pele não é um castigo.

Enzo sentiu a angústia na voz de Itacy, e teve a certeza de seu arrependimento.

_ Tacy, você pode ter todo conhecimento do mundo, é linda, tem graça, se regenera em segundos, supera a velocidade do som e pode controlar mentes alheias... Não pode ser tão ruim assim...

_ E não posso sair à luz do sol, não como, não durmo, estou fadada à eternidade, não podendo nutrir laços afetivos com nenhum humano... Realmente, não parece tão ruim, não é?

Ainda em dúvida, Enzo arriscou:

_ Me parece balanceado.

_ Fora o fato de desejar o sangue de quem se aproxima. É realmente uma delícia ter de se controlar para não rasgar a jugular mais próxima.

Enzo sentiu um calafrio, e uma necessidade irresistível de proteger seu pescoço. Mas não o fez. Tinha de confiar em Itacy, e lhe demonstrar essa confiança.

Ela não estava olhando para ele. Observava atentamente os desenhos invisíveis que fazia no assoalho com a ponta do indicador.

_ Vocês bebem sangue doado?

_ O quê? Não! Não obrigamos ninguém-

_ Não estou falando de força. Se alguém quiser lhe doar sangue-

_ Não. Nós ainda não precisamos disso.

_ Então...

Itacy coçou a testa, mas continuou sem encará-lo.

_ É repugnante Lorenzo. Não quero falar.

_ Como pode ser repugnante se você não machuca ninguém? São animais?

_ Claro que não. Eles não servem. É como água...

Enzo voltou a silenciar. Itacy não queria falar, mas a curiosidade o consumia...

+

Itacy tinha certeza que se Enzo ainda não a abominava, passaria a fazê-lo quando soubesse como saciava sua sede.

Sede essa que voltava a dar sinais de vida...

_ Nicolai providencia nossas refeições. Ele vem de tempos em tempos para que não morramos de fome, ou cometamos alguma loucura.

_ Por que você não aceita que lhe doem sangue?

_ É um desperdício. Sangue fresco tem utilidade muito nobre... Salva vidas... Os bancos de sangue sofrem com sua escassez... É muito injusto competir com eles para sustentar uma maldição. É leviano.

_ Também salva a sua vida.

_ Lorenzo, eu não tenho vida! Será que ainda não deu pra entender? O único sistema que funciona no meu organismo, é o circulatório. Quando tem sangue. De resto, está tudo morto. Morto.

Apesar de sentir raiva, Itacy manteve o tom de voz na mesma intensidade. Baixo e calmo.

Sentiu uma ligeira vertigem, e recostou a cabeça no espelho. Fechou os olhos, tentando controlar sua sede.

_ O que você tem?

Itacy não se atreveria a responder.

Abriu os olhos e colocou-se de pé.

_ Estou cansada. E está tarde.

+

Quando Itacy começou a se afastar, Enzo também se levantou e foi em seu encalço.

_ Você não vai mesmo me contar?

A garota pendurou a mochila num dos ombros e ignorou sua pergunta.

_ Amanhã não teremos ensaio. Então, não se atrase na sexta.

_ Se não é animal, nem sangue fresco, nem sangue envasado... O que é?

_ Até logo, Lorenzo.

Antes que ele pudesse insistir na pergunta, já estava sozinho no estúdio.

+ + +

_ Ahhh... Não vai ter ensaio hoje? - Michele parecia realmente decepcionada quando ouviu a notícia.

_ Não. Eu ainda não consegui terminar. - mentiu Itacy.

A tontura que sentia acabaria em uma bela queda, e se sofresse algum ferimento, teria cinco mentes para apagar...

Eloy também sentia fome, então era provável que Nicolai voltasse ainda naquela semana.

_ Você parece meio cansada... - observou Marian.

Como era possível? Tinha se esmerado tanto para cobrir as olheiras com corretivo facial e pó compacto!

_ É essa droga de coreografia que anda me tirando o sono.

_ Por que você não tira algumas semanas de descanso? - sugeriu Míriam.

_ E quem cuidaria do balé? - perguntou Francine.

_ Oras, será possível que ninguém poderia substitui-la? Trata-se da saúde dela... - rebateu Míriam.

_ Jesus, como você é exagerada... - comentou Francine balançando a cabeça de um lado a outro.

_ Fran, com uma amiga como você, quem precisa de inimigas, não é mesmo? - Míriam continuou a retorquir.

_ E com uma como você, quem precisa de amigos hipocondríacos paranoicos, né?

_ Pra mim, uma não viveria sem a outra... - cochichou Marian ao ouvido de Itacy.

Itacy concordou com um aceno de cabeça, sem lhe dar atenção.

_ E Tacy, não ligue, você está linda como sempre.

Outro consentimento sem o mínimo de atenção.

Marian acariciou seu cabelo vermelho que estava preso em um rabo de cavalo alto, e iniciou uma trança que só terminou junto com o sinal de fim de intervalo.

Depois de uma monótona aula de biologia e outra interminável de português, Itacy suspirou aliviada por poder correr para casa e estirar-se na cama.

E assim permaneceria até que Nicolai aparecesse. Seu humor começava a deixar de ser seguro o suficiente para frequentar a escola.

_ Até amanhã Tacy. Tenho que correr, pois meu pai não pode me buscar, e vou aproveitar a companhia da Míriam para voltar para casa... - enquanto dizia isso, Francine fez uma careta de chateação – A mãe dela também não vai poder vir pegá-la... Quer ir com a gente?

_ Não dá, Fran. Melhor irem logo se vão a pé.

_ Ok, beijinhos!

Francine correu porta afora enquanto Itacy terminava de jogar seu material dentro da mochila.

Deu uma olhada para a sala de Enzo, mas já estava completamente escura.

Quando atravessou o arco de pedra da saída, esperou mais alguns segundos para que Míriam e Francine se afastassem o suficiente para não notarem sua presença. Não estava nem um pouco afim de companhia.

Esperou-as viraram a primeira rua para seguir adiante.

Tirou o celular do bolso para conferir as horas e sentiu um pequeno calafrio.

Olhou ao redor.

Nada.

Cruzou os braços e apertou o passo. Sua intuição lhe dizia que a amolação da companhia de suas amigas era o melhor que podia ter naquele momento.

Continuou olhando para os lados enquanto avançava.

Alguma coisa estava errada. Sentia uma presença diferente no ar. E para seu desespero, não era Nicolai.

_ AAAAAAAAHHHHHHH!!!

O grito de pavor encheu a noite.

_ F-Fran... - Itacy reconheceu a voz da amiga.

Estacou onde estava. Sua respiração estava ofegante, e seus joelhos trêmulos.

_ Nãããoooo!!!

Dessa vez era Míriam.

Itacy cobriu a boca com as mãos. Precisava ajudar suas amigas.

Disparou na direção da rua que as vira dobrar.

Não conseguiu impedir um grito de lhe escapar ao encontrar com suas duas amigas desacordadas, cada uma de um lado da rua.

Sobre uma delas, um vulto envolto em uma capa preta.

O desespero foi maior que seu medo. Correu na direção dele e o empurrou para longe de sua amiga.

_ Míriam!!!

Sua amiga sangrava abundantemente na região do pescoço.

_ Não... Míriam!!!

_ Me... Me ajude... - ela balbuciou semi-consciente.

Itacy virou-se tentando reconhecer o criminoso, mas não foi possível. O vulto já havia desaparecido.

Sentiu todo seu corpo estremecer, então voltou-se para a amiga ferida no chão.

_ Míriam! Fale comigo, M-

Sangue.

Itacy aspirou profundamente aquele aroma férrico.

Como era apetitoso...

Tinha em mente uma forma de estancar aquele sangramento.

Continua