Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 19 [Parte 1]- Zero


Zero

Eu não sabia identificar porque estava tremendo- se era o frio, a dor ou apenas medo.

Pisquei os olhos repetidamente, ignorando as pontadas de dor na minha cabeça e tentando me ajustar a escuridão. Minhas mãos estavam amarradas tão fortes que eu não conseguia sentir meus dedos, e parecia que a pancada que me deixou inconsciente não havia sido a última: não consegui olhar por causa do escuro, mas dor irradiava de diferentes partes do meu corpo.

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Tentei me mexer, mas imediatamente me arrependi.

Como se respondessem a meu movimento, as luzes se acenderam, em um flash repentino que me fez fechar os olhos e me encolher. Quando tomei coragem para olhar, não pude evitar de pensar que aquilo parecia tudo menos um cativeiro.

Era uma sala relativamente grande. Tudo era branco- todas as paredes, o teto e o chão. E estava incrivelmente limpa. Nas paredes, haviam câmeras, o que só poderia significar que alguém estava assistindo.

De alguma forma, o fato de eu não estar em um beco escuro com um cara apontando uma arma pronto para me matar só conseguia fazer eu sentir mais medo do que poderia estar por vir.

Respirei fundo, de olhos fechados, tentando me manter calmo, tentando ignorar a sensação de que estava prestes a começar a chorar- ou vomitar. Ou os dois. Se tivesse alguém realmente assistindo pelas câmeras, a última coisa que eu queria era a satisfação de o deixar me ver surtando.

Um milhão de perguntas rodavam na minha cabeça: o que iriam fazer comigo? Por que eu estava ali? Onde eu estava?

Mas, por mais que eu entrasse em pânico esperando para saber o que aconteceria, tudo parecia o mesmo. Eu não conseguia dizer quanto tempo estava se passando e se o tempo estava passando.

Eu estava suando, hiperventilando, e a única hipótese que consegui pensar foi que aquele era o plano. Me deixar ali, me observar morrer lentamente, ver o que me mata primeiro: a falta de insulina, a fome ou se eu apenas surtaria antes disso.

Assim que o pensamento passou pela minha cabeça, foi quando encostei meu rosto no chão frio e comecei a chorar. Eu ainda estava amarrado e, naquele ponto, todo meu corpo estava dormente. Eu não sentia mais nada.

Pisquei os olhos, começando a me sentir sonolento.

Quanto tempo havia se passado? Algumas horas? Um dia inteiro? Eu não saberia dizer.

Mas estava ficando com sono. Eu estava com medo de dormir- de o sono ser meu corpo desistindo, de fechar os olhos e de repente aquele ser o fim.

Fechei meus olhos e pensei em Eros. Conscientemente me forcei a pensar nele porque todos os outros pensamentos doíam demais. Era mais fácil de admitir para mim mesmo naquele momento que ele foi uma das únicas coisas boas que aconteceram na minha vida.

Me lembrei de seus cílios loiros, seus cabelos lisos, da primeira vez que ele me abraçou no meio da biblioteca e eu imediatamente comecei a chorar. Eu sempre desabava quando Eros me abraçava- era o único lugar que me sentia seguro o suficiente para me permitir chorar. Eu nunca chorei tanto e nunca sorri tanto quanto quando estava com Eros.

Estava tudo bem se eu pudesse morrer pensando nele.

Ouvi um barulho e olhei ao redor, sem saber se estava alucinando ou não.

Então percebi que eram vozes vindo do outro lado da porta. Por um segundo tive esperança que, de alguma forma, eu estava prestes a ser salvo.

Por outro lado, eu também poderia estar prestes a ser morto.

Duas pessoas entraram, as roupas completamente brancas, e máscaras de gás que não me permitiam que eu visse nada de seus rostos.

Que tipo de lugar era aquele?

Uma das mulheres se inclinou perto de mim e tirou um telefone do bolso. Então começou a tirar fotos de mim de diferentes ângulos. Fechei os olhos, como se pudesse fingir que nada daquilo estava acontecendo. Eu me sentia exposto, um bicho em um zoológico. Eu só queria que aquilo acabasse logo.

A outra mulher então se inclinou para perto e puxou a fita da minha boca violentamente. Puxei o ar como se estivesse me afogando, finalmente conseguindo respirar direito, e então imediatamente vomitei.

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As duas se olharam por um segundo e então uma delas virou para a câmera.

—Eu não acho que ele passa de mais algumas horas — falou.

A pessoa do outro lado estava ouvindo?

A outra mulher ainda me olhava e anotava coisas em uma prancheta.

Eu não conseguia ver nada além das mãos e cabelos das mulheres, uma delas com um coque vermelho vivo e a outra com o mesmo penteado, mas fios castanhos com uma mecha branca perto do pescoço.

—Se o plano não é matar ele por enquanto, — a ruiva continuou, ainda olhando para a câmera — então precisamos intervir.

Uma voz metálica que parecia estar vindo de algum sistema de som da sala a respondeu:

—Saiam e me deixem falar com ele. Podem tirar as cordas.

A voz claramente estava sendo alterada por algum tipo de software, de forma que parecesse grossa e levemente distorcida.

As duas mulheres me desamarraram, me empurrando para um lado e para o outro enquanto o faziam como se eu fosse algum tipo de boneco incapaz de sentir dor. Não falei uma palavra.

Não pretendia falar com o outro cara também. Na verdade, nem sabia se tinha força física para falar.

—Aqui está o acordo: — ele disse — eu objetivamente acho que você é mais valioso vivo. Entretanto, eu realmente gosto da ideia de te deixar morrer. No final das contas, você precisa pagar pelas coisas que fez.

—E o que eu fiz? — respondi irritado, a voz rouca.

—Se meteu em assuntos que não eram de seu respeito. Infelizmente para você, agora eles são e eu preciso te matar por isso. Essas crianças prodígio realmente acham que são mais espertas que tudo e todos. Que, por causa disso, elas não correm riscos. Aposto que seu amigo Davi pensou a mesma coisa.

Eu ainda estava deitado no chão, e senti como se o teto começasse a girar assim que ele mencionou o nome de Davi.

Eu estava com tanta raiva que queria gritar. Mas, ao mesmo tempo, eu estava tão cansado. Tão, tão cansado. E com tanta dor. Uma parte de mim implorava que apenas me matassem de uma vez.

—Na verdade, — continuou — é uma pena. Seu histórico é brilhante. Eu poderia passar uns 20 minutos aqui só citando todas as medalhas e prêmios que você ganhou e acho que não seria tempo suficiente. Brilhante. Seu cérebro poderia fazer tantas coisas...

Eu não sabia se ele queria que eu agradecesse ou implorasse pela minha vida, mas, qualquer que fosse o rumo daquela conversa, eu não estava gostando.

—Então acho que você entende o porquê estou certo que você vale mais vivo do que morto. Isso não significa que eu não esteja disposto a te matar. Na verdade, toda essa sua genialidade só me faz querer mais ainda te matar. Não é trágico? A história do gênio brasileiro que poderia revolucionar a ciência, mas que infelizmente foi interrompida?

Eu não consegui mais prestar atenção, ou processar as palavras. Eu conhecia a sensação de que estava prestes a desmaiar, mas continuei lutando contra ela, não só por medo de morrer, mas por medo do que aconteceria se eu não morresse.

—Aqui estão suas opções: — o homem falou — você pode aceitar ficar aqui e trabalhar para a gente...

Não! — interrompi, imediatamente.

—Ou você pode escolher morrer. E não fique feliz achando que eu vou simplesmente deixar você morrer assim. Eu mereço um pouco de diversão, afinal.

Não — repeti, horrorizado.

Eu não me importava com o que exatamente aquilo significava, mas preferia morrer a trabalhar do lado da pessoa que matou Davi. Que matou tantas outras pessoas.

—Eu ganho das duas formas, não pense que eu não vou dissecar seu cérebro como um troféu pessoal depois que você morrer, igual fiz com seu amigo. O resto das partes eu vou colocar no correio e enviar como presente para seu colega de quarto Leonardo. É isso o que você quer que aconteça? Você realmente quer fazer isso com ele?

A imagem na minha cabeça me fez vomitar. Meu peito doía. Me encolhi, chorando em silêncio. A última coisa que ouvi antes de desmaiar foi:

—Acho que vou ter que te convencer de outra forma, então.

Eu não pensei que iria acordar novamente para descobrir do que ele estava falando. Mas percebi que estava errado ao abrir meus olhos em um ambiente completamente diferente. Não fosse pelo fato do meu tronco e um dos meus braços estarem amarrados em uma cadeira, eu poderia muito bem pensar que estava em uma das salas de enfermaria do Instituto. Havia um acesso no meu braço e dois eletrodos na minha cabeça e no meu peito. Do meu lado, uma máquina apitava mostrando meus batimentos cardíacos.

Eu não sabia exatamente o que haviam feito comigo, mas foi o suficiente para me manter vivo e, ao mesmo tempo, não aliviar nem um pouco da minha dor. Eu só queria que acabasse.

Havia uma mesa na minha frente e, do outro lado, a mesma mulher com a máscara e cabelo vermelho anotava coisas em uma prancheta. Ela veio até mim e apertou um botão, que imaginei que era ligado a algum sistema de comunicação, porque a voz metálica apareceu novamente.

—Finalmente — falou. — Pensei que a Bela Adormecida não acordaria nunca.

O que você quer? — gritei. Agora que não me sentia prestes a desmaiar, o ódio crescia em mim.

—Você sabe o que eu quero. Que você aceite minha proposta e trabalhe comigo.

Respirei fundo. Não pretendia aceitar, mas eu poderia pelo menos tentar retirar alguma informação.

Formulei a pergunta para, propositalmente, parecer que estava interessado:

—E como eu seria útil?

Ouvi uma risada irônica, que, com o efeito distorcido, fez eu instintivamente me encolher.

—Isso é um sim?

Nunca — soltei, não conseguindo manter a expressão neutra. Eros era ótimo em mentir. Eu, nem tanto.

—É um pouco cedo para falar em nunca, você não acha?

Me mexi, tentando inutilmente puxar meu braço que estava amarrado na cadeira.

—Eu prefiro morrer!

—Como se eu fosse deixar você morrer tão fácil assim. Entenda, você vai ceder uma hora ou outra.

—E o que te faz achar isso?

Manter o orgulho talvez não fosse minha melhor opção, porque imediatamente me arrependi da pergunta ao sentir uma corrente elétrica passar pelo meu corpo.

—Isso aqui — respondeu.

Uma outra pessoa entrou na sala, carregando uma pilha de papéis, que foram jogados na mesa a minha frente. Minha visão ainda estava voltando ao normal depois do choque, mas, quando consegui focar, reparei que eram questões de física. Soltei uma risada - uma risada genuína-, porque, antes de pensar que aquilo seria usado contra mim, tudo que meu cérebro conseguiu ver foi a ironia e a familiaridade de ter contas na minha frente. Ou talvez eu estivesse apenas enlouquecendo.

A mulher ruiva andou até a minha frente e começou a falar, num tom calmo e monótono como se me desse instruções para uma prova:

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—Você pode escolher qual quer fazer. Não é opcional. É para te manter acordado. Os choques vão aumentar de intensidade se você parar ou dormir. — Apontou para o botão vermelho — Você pode apertar esse botão aqui caso resolva aceitar a proposta. Apertar ele por outros motivos também vai ocasionar aumento da intensidade das correntes elétricas. Boa sorte.

Na minha mente, eu gritava: Boa sorte? Como você pode simplesmente falar isso como se fosse a coisa mais natural do mundo?

Mas eu só fiquei parado, atordoado.

Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, o segundo choque veio. E aí outro. E outro. É difícil descrever a sensação, como se eu estivesse sendo rasgado ao meio, como se todos os meus músculos estivessem se contraindo ao mesmo tempo de forma tão forte que parecia que eu estava morrendo.

Quando me recusei a pegar os papéis na minha frente, a mulher apertou um botão que aumentava a intensidade. Então eu desmaiei. E acordei, e desmaiei de novo, por tantas vezes que não conseguiria contar.

Então peguei os papéis e comecei a fazer contas. Eu só queria que aquilo parasse. Eu não sabia como estava sobrevivendo, mas todos os meus pensamentos voltavam para o quanto eu realmente queria morrer. O quão aliviante seria morrer. Eu só queria que parasse, mas não parou. E eu sabia o que faria parar, mas como eu poderia aceitar ajudar a pessoa que fez minha vida um inferno, que matou tanta gente inocente?

Não. Foquei nos números. Eu sabia que não conseguiriam me manter vivo por muito tempo, por mais que tentassem. Meu desfibrilador reagia aos choques e respondia com outros choques para tentar normalizar o ritmo do meu coração. Aquilo não iria durar para sempre, eu sabia que fisicamente não aguentaria.

Então, no meio do meu desespero, li uma questão que falava sobre a constante de temperatura das estrelas, e lembrei da vez que Eros me levou ao planetário. Como ele empurrou minha cadeira de rodas pelo museu enquanto me ouvia falar de estrelas, como ele me olhou nos segundos antes de quase nos beijarmos. Eu só... eu queria vê-lo novamente. Eu precisava vê-lo de novo. Eu não podia morrer.

Tinha que haver outra solução que não fosse deixar que me matassem ou ficar aqui para sempre fazendo sabe se lá o quê. Tinha que haver uma saída.

Comecei a rabiscar as folhas com números aleatórios, equações conhecidas, fórmulas. Coisas que eu conhecia bem o suficiente para que não precisasse pensar nelas. As pessoas que observavam não pareceram reparar.

Então, com o pingo de sanidade que eu tinha -com o pouco que minha mente me deixou pensar enquanto recebia choques constantes, e desmaiava, e tentava não gritar de dor-, montei um plano.

Num movimento desesperado, apertei o botão.

—Eu aceito — falei, ofegante, soando mais patético do que imaginei. As palavras pareciam amargas. — Eu vou trabalhar para vocês. Mas eu tenho uma condição.

Era um plano arriscado. E com mais chances de dar errado do que de funcionar, eu sabia. Eu sabia de tudo isso.

Mas, se havia alguma chance, por menor que fosse, de sair dali vivo...

Eu precisava tentar.