Além de Tudo

Transformação - Sangue e vertigens


Tudo é branco.

Olho para o teto de gesso, branco… Novo. Sinto cheiro de hospital, diversos odores de antissépticos, ouço o gotejamento do soro: tanto silêncio que havia no quarto, grande vazio. Melodramática que sou, choro. Sinto culpa, medo, solidão… Sinto tanto e tantas coisas, mas a maior delas se chamava falta. Uma falta que não entendo, de onde surgiu nem pelo que me atormenta.

Penso no meu pai, Christopher, cansado e decepcionado de me observar entrar em encrencas. Ele sempre esteve ao meu lado, sempre quis me ouvir, mas eu era inapta a aceitar qualquer ajuda. Fui orgulhosa, ingrata, burra, e, principalmente, mentirosa. Com meu pai, comigo, com o mundo. Não tenho mais para onde correr. Nada me resta, nada me pertence. Essa vida foi arruinada. Ouço um ranger de porta e não olho, imaginando que seja a enfermeira para trocar o soro ou aplicar algum remédio doloroso que me faça pagar pelo karma.

— Andressa, como você vai minha linda? – para minha surpresa, minha avó Catarina se fazia presente. Atrás dela, com olhos marejados, papai. Não sei por que ela falou tão tranquilamente, como se eu não tivesse mudado nada… Como se eu não fosse uma estúpida.
— Oma, geht gud und du? – sei que ela gosta quando falo alemão com ela, afinal foi a minha primeira professora não oficial.
— Estou ótima, minha neta querida! Trouxe para você algumas flores para enfeitar seu quarto, soube que vai ficar por aqui por mais três a quatro dias, o mínimo de aconchego que posso trazer. Também trouxe alguns doces que fiz, se você sentir que está bem de estômago coma! – Ela olha para mim de maneira que se segura para não me abraçar, olhos azuis acinzentados que transbordam ternura. Abre um sorriso um pouco trêmulo e volta a falar. – Andressa, minha bonequinha de porcelana ruiva… Você é tão linda. Tão amada. Tão privilegiada… Você pode ser o que quiser, tem o apoio de sua família materna e paterna, tem talento, cultura, inteligência… Mas lhe falta maturidade. Não vou ser severa contigo, mas gostaria que soubesse que seu ato nada mais foi que uma demonstração de negligência. Falta em você a atitude de amar, principalmente a si própria. Só peço que reflita, porque me preocupo com seu bem-estar… no entanto, há coisas que não posso sofrer nem fazer por você. Cuide-se, Andressa. Sei que tem muitas coisas a me contar, mas preciso ir embora mais cedo. Amanhã e até os próximos dias de internação cuidarei de visitá-la o quanto for preciso. – Vovó me abraça e vai embora. Papai a acompanha, sem me olhar.

Certamente, eu tenho muitas coisas para explicar, mas nada sai de minha garganta. Eu só consigo me transbordar em lamento e lágrimas. Viro meu pescoço e observo a cômoda que estão as flores da vovó, os doces e um pequeno espelho… Meus olhos estão vermelhos, inchados… minha pele está tão pálida que se confunde com o branco esterilizado do hospital. Muito magra, sem vida. Pelo menos, o que parece. Pela milésima vez eu penso “não sei o que fazer”. Pela milésima vez ponho as mãos no rosto, limpando as lágrimas, tentando conter meu ódio por mim mesma. Não sei o que fazer. Só quero que isso acabe.

A porta abre novamente, é o Kevin. Vestindo uma jaqueta de couro, roupas da lacoste esporte fino por baixo e um estúpido tênis de basquete da NBA… Vejo o rosto simétrico, bonito, com cabelos cor de mel, olhos castanhos me encarando. Ele sorri, se aproxima e diz:

— Andressa… Senti sua falta. – Ele se senta em um dos bancos próximos à cama. – Não vejo a hora de você ficar melhor para podermos voltar ao que éramos. – A indiferença nas suas palavras é gritante. O que ele via em mim era, infelizmente, o que eu também via nele: alguém para usar e passar o tempo. Diálogos entre nós eram apenas uma maneira de manutenção de nossa troca de interesses. Depois de tudo que passei, parece que acordei de um pesadelo e minha consciência saudável voltou. Olho para ele com nojo, me sinto péssima. Tudo que sei é que o quanto mais rápido eu acabar com esse relacionamento melhor.
— Kevin… Fico feliz que tenha vindo me visitar. Mas eu tenho pensado no que aconteceu. Faz dois dias que estou aqui. Você sumiu por mais de duas semanas, desde que falei sobre a gravidez e desde que concordamos em utilizar os remédios abortivos. Sério, parabéns pela atitude, faz cagada e volta como se tudo estivesse bem.
— Olha, eu sei. Mas podemos resolver isso, é só uma questão de compreensão, entende? Eu estive com medo e fugi. Nada mais normal. Agora voltei porque sei que estou errado e peço perdão por isso… – realmente, ele não me engana. Seus olhos mentem, assim como todo resto – Sabe que amo você.
— Não, Kevin. Você não me ama, assim como eu não amo você, assim como você não fugiu porque tem medo mas porque é um filho da puta de um escroto. Porque sabia que iria dar ruim para o seu lado se sua família soubesse da história, mas pode ficar tranquilo que quem se ferrou aqui fui eu! – Mesmo não podendo, levanto meu abdômen para poder apontar dedo na cara dele e encará-lo de maneira mais ofensiva. – Você é um idiota. Eu fui super retardada de ter namorado um ridículo como você e continuado nesse relacionamento de merda, mas você é bem pior. Não quero vê-lo na minha frente nunca mais. Melhor para mim e para você.
— Andressa… – ele me olha embasbacado por um longo momento e retorna com seu discurso deturpado – Você está delirando. Não vai conseguir viver sem mim. Isso é só uma fase.
— Não volte mais nem busque saber da minha vida. Que fique claro… Acabou. Não quero mais você. Fim. Agora sai do meu quarto, antes que eu grite os enfermeiros.
— Você tá louca mesmo. Quer saber? Vou embora, não aguento mais ouvir seu discurso vitimista. Vai se danar. – Ele se levanta e vai em direção a porta. Por um momento para. – Mas não posso deixar você sair ilesa dessa. Hoje mesmo suas fotos vão estar no facebook, instagram, twitter… A fama de vadia vai quintuplicar. – O sadismo e mau-caratismo em seu olhar me fere ainda mais, mas não deixarei qualquer ameaça me impedir de fazer o que considero certo. Cerro meus punhos com força.
— Faça como quiser. Prepare-se para processos judiciais, porque você já é maior de idade e não ache que não rastrearão o autor de um crime desses! – Ele parece perder a coragem em me fazer mal e passa a transmitir medo em sua expressão, decidindo por ir embora de uma vez. – Covarde de merda.

Repouso. Sinto um pouco de cólica por causa do estresse. Olho o teto mais uma vez, ele brilha. Um raio solar do meio-dia invade meu quarto e me faz pensar em ter esperanças mais uma vez. Uma mensagem no celular chega e avisa:

“Andressa, soube do que aconteceu. Chegarei essa noite. Eu sei, você fez merda. Tanto faz, não importa. Sua avó me disse e me chamou para te visitar, não tive como recusar e… mesmo depois de tanto tempo, me preocupo com você, mesmo que não pareça.

Mischa Volkova Spyer “