Além de Tudo

Passado: Bloqueio Mental II


Como tudo que é bom dura pouco, papai e vovó chegaram de modo inesperado quinze minutos depois. Ainda bem que conseguimos escutar as vozes deles dizendo "Por favor pessoal, abram o portão! Esquecemos as chaves!". Foi até um pouco cômica, para não dizer hilária, a situação, já que eles nunca foram pessoas de esquecer detalhes tão cruciais. No entanto, eu ainda preferiria a estranha e maravilhosa sensação de ficar com Mischa.

Papai é uma pessoa reservada, mas não se engane pelas aparências. Ele é uma pessoa sarcástica e crítica demais, o que às vezes irrita. Mas eu amo ele, o qual sempre me motivou nos momentos mais difíceis e nunca deixou de me ensinar as virtudes mais importantes que ele cativara ao longo de suas experiências. É um homem alto, magro, tem cabelos castanhos e grandes olhos azuis. Sua pele avermelha com facilidade(eu brinco dizendo que ele está com vergonha e ele implica comigo), é bonito, elegante e muito inteligente. Uma coisa peculiar é a nossa diferença de idade; ele é somente vinte anos mais velho que eu. Vou contar um pouco da história do meu nascimento e infância.

Christopher Hoffman era apenas um garoto quando conhecera Viviane Hayes, minha mãe. Conheceram-se no colegial; ele tinha dezesseis e ela, que acabara de ingressar no ensino médio, apenas quatorze anos. Ocorreu que de alguma forma, papai conseguiu conquistar a mais bela e atraente garota do científico. Ela era, segundo o que dizia papai, um anjo sem asas, por causa de sua sabedoria e bondade. Fisicamente ela era ruiva, com algumas sardas e olhos verde-azulados brilhantes, muito bela e de pele alva tanto quanto a do meu pai.

Namoraram por anos até um dia minha mãe se descobrir grávida. Quando a família Hayes soube, causou o maior escândalo; afinal, ela tinha apenas dezessete anos. Papai resolveu ignorar todas as excessivas conversas fiadas e criou um termo que beneficiasse ambas as partes: a família Hayes e o jovem casal inconsequente. Com muita relutância aceitaram, mas adicionando que meus pais deveriam se casar. Assim o fizeram, mas não poderiam ficar na mesma casa até que papai conseguisse se manter financeiramente(fosse eu, já teria ficado de saco cheio e fugiria com ela!).

Papai se formou como administrador de empresas e, com muito esforço, arrumou um belo emprego em um luxuoso hotel de Florianópolis. Eu tinha quatro anos quando, finalmente, mamãe e papai começaram a viver juntos. O anos passaram como um grande sonho: acontecesse o que acontecesse nossa família era a mais feliz e otimista do mundo. Mas não duraria por muito tempo.

Quando eu tinha onze anos e era véspera da Páscoa, meus pais planejaram viajar de carro para a Argentina. Toda a segurança disponibilizada não foi suficiente para conter o imprevisível. Um caminhão, o qual havia acabado de desviar de um cavalo no meio da estrada, entrou na contra-mão justamente quando estávamos vindo. Este tombou e nosso carro capotou. Todos ficamos gravemente feridos, mas mamãe não resistiu por causa traumatismo craniano. Pareceu que, depois de sua morte, o mundo perfeito de uma família feliz também morrera.

Meu pai chegou cansado. Logo após chegar, me beijou no rosto e se dirigiu ao seu quarto. Vovó Catarina parecia calma e tranquila como sempre e, com um iluminado sorriso, disse que iria tomar um bom banho de hidromassagem. Mischa parecia pensativa demais. Não estava suficientemente alegre para ao menos sorrir? Naquela hora, eu me enchi de raiva e falei rispidamente para que viesse ao meu quarto após o jantar. Ela parecia nem ter ligado, apenas murmurou um "Tá" indiferente. Aquela frieza cortou meu coração, fingi não me importar, apenas me afastei com um insuportável medo misturado com dúvidas. Tomei um banho gelado para refrescar meus pensamentos.

O jantar teve frutos do mar, um dos meus pratos preferidos, entretanto eu não queria comer. Pudera! Meu estômago estava tão confuso quanto meus sentimentos por aquela menina, se eu comesse alguma coisa vomitaria. Fiquei brincando com a salada, cortando os mariscos em mil partes, esperando que todos terminassem. Mischa comia como um passarinho, mas não deixou de comer e comentar que estava "Delicioso!" sem o menor pingo de emoção. Logo pensei que era melhor que ela não tivesse comentado.

Sem ter verdadeira consciência do que isso poderia me trazer, passei a dar créditos à minha irritação e inconformismo. Quando todos foram dormir e logo após escovar meus dentes, esperei que ela viesse. Passado uma hora e meia, esperando e remoendo os acontecimentos do dia, rompi com os bons modos e invadi o quarto dela. A princípio imaginei que estivesse dormindo, mas quando aproximei de sua cama ela quase me matou de susto ao falar.

− Me esquece, garota. − Sua voz era tão firme e decidida. Levantou-se mecanicamente e acendeu a luz. − O que foi, não vai dizer nada?

− Você falou comigo? − Eu fiquei desnorteada. Que infernos ela tinha na cabeça?

− De fato, dammit. Não sou de pensar alto como você. − Ela sentou-se do lado da cama perto de mim. Sentei também. Um silêncio estarrecedor tomou conta do quarto.

− Eu não sei o porquê de você mudar tão rapidamente... − uma dor surgira sufocante, meus olhos começaram a lacrimejar de tensão.

− Pode parecer difícil, mas será melhor para nós duas. − Evitou olhar para mim.

− Nós duas? Claro que não, só se for para você, sua egoísta! − Gritei sem conseguir raciocinar em minhas condições naturais.

− Você não me conhece, Andressa! Parece que nunca vai entender. Nunca passaremos de amigas, nunca! Eu quero me desculpar por todas as vezes que alimentou alguma boa expectativa de mim, não sou nada disso.