Além de Tudo

Ciclo Mortífero


Mais um dia respirando, suspirando e oxidando. Assim se pensa quem observa a degradação do corpo ao longo de sua vida. Ou das vidas alheias, já que isso a tudo se aplica até os menores seres, possuidores de ácido desoxirribonucleico.

Para mim, uma aula chata que a nada me acrescentaria de Biologia estava quase terminando; para minha colega da carteira ao lado, Lina, o Universo se manifestava incrivelmente nos avanços científicos nos diversos campos e seus olhos brilhavam de ansiedade pois ainda teríamos mais quatro horários de disciplinas.

Sinceramente, já tentara entender sua maneira de pensar mas não conseguira. Gostaria de me deliciar com aritmética e funções. Gostaria de achar que perceber qualquer lógica no mundo fosse um fio condutor a algo bem maior, sem ter que me importar aos problemas que não tocam nem se aproximam desse tipo de pensar científico. Muitos dizem que matemática é algo difícil, na realidade não é assim. É mais simples que literatura e mais certo que plantar uma semente esperando sua germinação.

O problema da matemática obrigatoriamente ensinada dissemina a ideia que se tem respostas para qualquer problema, não há necessidade de buscar. Atuamos nas outras áreas tentando imitá-la, afirmando dogmaticamente que há sempre uma razão, estamos seguros e não há dúvidas quanto a isso. “Ora, tão óbvio que chega a ser ridículo”, assim pensam.

Sinto que há sentido lógico no Universo. O acaso é muito cético e o ceticismo equivale a uma crença fundamentalista. Li uma vez num artigo de um completo idiota que tudo nascia do caos. No meio da confusão, imagine só, veio a ter uma ordem e se concretizar uma série de regras físicas universais. O estúpido possuía PhD em Física. Desde então perdi meu interesse em me afundar nessas ciências. Parece às vezes que as pessoas querem considerar a lógica apenas nos papéis.

Sei que parece que eu me contradisse, no entanto não terminei meu raciocínio. Há como ver lógica num ensinamento religioso e tratar com dogmatismo uma matéria científica. Tudo isso me deixou perplexa. Por que, mesmo eu tendo facilidade com lógica e aprender rápido, não conseguia me livrar dessas dúvidas incessantes e dessa raiva de não saber algo importante para mim mesma? Busquei procurar Lina durante uma tarde livre na biblioteca. Uma forma infalível de achá-la.

— Olá Lina, tudo bem?— Meio sem jeito, me aproximei silenciosamente à mesa que ela estava debruçada, concentrada nos livros.

— Ah, Andressa!— Ela exclamou um pouco alto e a bibliotecária chamou-lhe a atenção, fazendo-a baixar o tom — Andressa, o que faz aqui?

— Hahaha… Lina, você é engraçada.— Como ela podia ser tão inteligente e tão atrapalhada?— Queria lhe fazer umas perguntas bastante confusas… Mas acho que por isso estou aqui né. Só conheço você nessa escola que poderia respondê-las satisfatoriamente.

— Não infle meu ego, as pessoas no geral já fazem isso, não seja mais uma delas. — Ela soltou um suspiro de desgosto e eu fiquei sem como reagir. Ser elogiada pode não ser lá muito legal mas não era também motivo de tristeza. Resolvi esperar que falasse mais, já que eu não sabia como reagir.— Bom, se me trouxe dúvidas e não pedidos para que eu ensine a matéria desde o início do trimestre, para a prova de recuperação, fico mais aliviada.

— Não são dúvidas sobre matérias, Lina. Inclusive estou melhorando meu desempenho nelas.— Sorri sem motivos, sua presença acalmava.

— Fico feliz que esteja se esforçando. No começo do ano você parecia a garota mais desanimada do mundo. Encenava uma personagem fúnebre e bela, retratando a passagem efêmera da vida. Já falei que se daria muito bem no grupo de teatro?— Lina sorriu, seus dentes eram perfeitos e brancos. Sua pele clara, seus cabelos negros e cacheados, um nariz um pouco alto característico de sua descendência árabe e portadora de grandes olhos cor de mel de cílios alongados. Percebeu que desviara do assunto e mudou seu tom de voz entusiasmado para um mais sério.— Sei que falei demais, vamos, pode começar a perguntar.— Ela deixou de lado os livros e virou seu corpo de modo que estivesse de frente ao meu.

— Bom… — Sentei na cadeira mais próxima, admirada com sua atitude despreocupada e falas sinceras sem dar para trás — Quem sabe um dia antes de formar eu entre nesse grupo. — Sorri — Quem sabe a vida não é só uma encenação efêmera de dramas sem importância. Seja como for… Me pergunto o porquê da sua fascinação com a ciência e se eu poderia de alguma forma enxergar e me motivar tanto quanto.

— Quer uma resposta sincera ou uma resposta bonita? — disse Lina sem demoras.

— Ambas não coincidem?

— Apenas escolha.

— Sincera, provavelmente.

— Pois saiba que você nunca irá se motivar tanto quanto eu nem enxergar o que me fascina na ciência por mais que eu mostre. Eu poderia lhe mostrar tudo que me pediu Andressa e você reagiria como? Antes que responda eu já profetizo: entendiará, ficará sonolenta e com mais sensações confusas sobre a ciência.— Como isso seria possível? Eu nem citei sobre essas sensações. — Porém, sem tantas informações, posso lhe ensinar um caminho.

— Mas do que está falando, Lina? Sensações, caminho, você tem usado substâncias entorpecentes?

— Sei que amedronta, Andressa, mas é um caminho que você busca. E longe de mim utilizar drogas, nem brinca com isso.— Ela riu.

— Tá, o que quer dizer com isso?— Minha expressão era séria e ela notou.

— Quero dizer que a maneira bonita de lhe responder seria falar aquilo que você esperava: uma fórmula mágica para seguir em frente, ser feliz e motivada. Perfeita, em outras palavras. Porém, quando digo uma resposta sincera e aponto um caminho, você automaticamente se afasta, porque é inesperado. Está me entendendo?

— Sim, e… Qual caminho seria esse?

— O caminho é seu e eu não sei. Fui clara?

— É uma pegadinha? Perdemos tempo à toa?— Comecei a ficar visivelmente irritada. Senti meu rosto queimando.

— Acha que tudo tem resposta? Acha que não tem que fazer algo mais que esperar seu príncipe chegar e salvá-la do próprio castelo em que se aprisionou?

— Príncipe, castelo, prisão? Pare com tantas metáforas Lina, parece estar me escondendo algo.

— Eu? Sou um livro aberto. Pena que nem todos são alfabetizados.

— Vai continuar com seu joguinho e ironizando minhas perguntas? Vai à merda. Cansei. — Saí a passos largos e ligeiros da biblioteca sem sequer olhar a expressão de Lina.

“Que infernos eu pensei ao tomar essa atitude? Por que minha paciência se esgotou tão facilmente? Por que meus argumentos para bloquear tais afirmações irritantes não puderam ser expressados?”— Pensei — De repente sinto alguém me impedindo de andar, Lina tinha seguido meus passos e me agarrado pela cintura.

— O que… está… fazendo… Lina?— Virei minha cabeça para trás num gesto confuso.

— Não estou abusando de você. É que você é alta e a única forma que encontrei de te parar foi agarrando por trás.— Realmente, Lina tinha por volta de um metro e sessenta e cinco enquanto eu possuía mais de um metro e oitenta. Mischa, no entanto, era um pouco mais alta que eu.

— Desculpe pela ironia. Mas eu vim até aqui, fazer essa palhaçada toda, porque não falei algo banal. Não queria que saísse pensando que fiz uma pegadinha e zombei da sua cara. Só quero que pense Andressa… Realmente acredita que saber a fórmula vai te ensinar a aplicá-la?

— Por que não seria possível? Tudo é possível e também relativo a cada situação.— Cabeça dura que era, eu ainda duvidava ceticamente de suas afirmações. O que evidenciava minha contradição ao criticar o ceticismo, sendo que eu própria o praticava.

— Não, Andressa. Não confunda as coisas. O caminho que lhe indico não precisa de nenhuma bagagem de conhecimento. Mas é preciso coragem para buscar saber por si mesma, buscar se libertar por si mesma, buscar sorrir e se encantar por qualquer coisa por vontade própria e não por algo ou alguém.

— Sim, tudo bem, o.k., Lina, dona da razão. Obrigada por nada. Quem sabe isso me faça entender que eu estava errada por ter superestimado a inteligência de um certo alguém. Agora que você deu uma de guru na minha vida em vez de responder a simples perguntas que eu lhe fiz, espero que esteja certa das suas profecias, só que eu não acredito em nenhuma delas e sei que no final eu só perdi tempo. Adeus.— Virei as costas e fui em direção à saída do colégio sem sequer olhar para trás.

Mais tarde eu saberia que esse alguém de inteligência superestimada era eu, não Lina. Agi de maneira que mais ignorante seria impossível.