Capítulo 1

Minha vida era simples e feliz. Tinha tudo o que eu queria, papai e eu éramos grandes companheiros. Desde que mamãe morreu, quando eu nasci, ele era tudo para mim. Mas uma tragédia no caminho, fez com que minha vida feliz se tornasse um inferno. Nunca desejei tanto na vida morrer.

Dia após dia eu implorava que minha vida fosse tomada, que ela fosse findada, não aguentava mais ser submetida a tantas surras e punições.

Bryce sabia muito bem me torturar e esse meu martírio tinha que acabar, eu estava convalescendo de tanta dor. E eu esperei pelo melhor momento para sumir. Esta noite eu poderia agir que ninguém iria notar minha falta. Graças a alguma boa alma.

Subi a escada rapidamente sem fazer barulho, abri a porta delicadamente, olhei para os dois lados e não havia uma viva alma, fechei a mesma devagar e corri para o lado esquerdo, que me levaria à cozinha.

A casa estava silenciosa, todos com certeza estariam dormindo, mesmo Bryce que costuma fazer algumas atividades noturnas, estaria dormindo. Seria o momento ideal para uma fuga!

Olho para um canto da cozinha e vejo que o cantil de água de um dos capangas de Bryce o havia esquecido ali. Coloco um pouco de água e noto que a mesa estava coberta, com certeza as empregadas fizeram algumas guloseimas para o café da manhã. Pego alguns pedaços de pão e os coloco dentro dos bolsos de meu vestido. Isso teria que me manter sem fome durante toda a minha viagem, que eu nem tinha noção para onde iria e quanto tempo eu iria andar.

Observo a cozinha em cada pormenor. Papai me dizia que mamãe havia escolhido cada detalhe, cada móvel.

Ouço barulho vindo da escada que dava para os quartos, não queria que ninguém me impedisse de fugir. Vou em direção à porta lateral que dava para o jardim, ao pôr os pés fora da casa, saio correndo em direção as pradarias ao longe. Viro-me para a minha casa, não tinha certeza de quanto tempo eu ficaria longe desse lugar que um dia chamei de lar.

Hoje seria o primeiro dia do resto da minha vida, penso enquanto admirava cada detalhe de sua arquitetura.

"— O senhor não pode me deixar, me leve junto papai. - suplicava a garota ao homem com as malas prontas para mais uma viagem de negócios.

— Não posso minha filha. Sabes muito bem que estou indo a trabalho. - ele se abaixa ficando do tamanho de sua menina. —Quando eu voltar da Áustria prometo que iremos viajar pelo mundo! - ele dá um beijo na testa de sua pequena amada, e sai de sua casa, acompanhado de dois de seus empregados.

— Não papai, não me deixe! Por favor, leve me junto... não me deixe... - implorava a menina vendo seu pai já na carruagem indo embora."

Tive momentos muito bons nessa casa, mas apenas quando papai estava aqui. Quando ele viajou para a Áustria e nunca mais voltou, minha vida mudou. Minha vida nunca mais foi minha, digamos assim.

Tornei-me um objeto, só não fui trocada por alguma mercadoria porque Bryce me queria debaixo de seu teto. Minha vida foi tomada de mim, eu não decidia mais nada sobre ela. Bryce era que mandava em mim, e com isso fui cada vez menos tendo contato com as pessoas, com o mundo exterior.

A única coisa que eu conhecia era o caminho do porão até os meus afazeres. Eu fui trancafiada, fui tirada da sociedade de uma forma violenta e sem explicações. Nunca soube o porquê de Bryce fazer algo tão sórdido comigo. Sangue do meu sangue e o que eu apenas ganhei com isso, foi seu ódio, como ele me odiava!

Bryce desejava a minha morte, mas não morte física, ele me queria aqui, nesse mundo apenas para servi-lo! E disposta ou não, ele sempre me procurava, mesmo que suas amantes estivessem em casa, era na minha cama que ele passava suas noites. E eu sempre tinha que estar preparada para recebê-lo. Tenho nojo de mim, e choro sozinha quando me pego pensando em Bryce. Me sinto uma aberração, um monstro!

A sociedade não se lembra mais de mim e eu não me lembro mais de como é um grande centro. Lembro-me muito bem de cada parede do sótão! Em uma ou duas ocasiões pude me ver no espelho, e vi a aberração que me tornei. Sou um trapo humano, meus cabelos, minhas vestimentas. Sou qualquer coisa, menos um ser humano. Sinto-me suja em cada parte de meu corpo.

O que me tornei hoje devo apenas a Bryce Campbell! Por culpa dele, minha vida se tornou um inferno.

Gostaria de poder agradecer a alma caridosa que fez o favor de deixar a porta do porão destrancada. Só assim eu pude fugir! Só assim eu poderei ter uma segunda chance!

Após me perder por uns segundos observando os detalhes da minha casa, corro pelas pradarias até um ponto mais alto de onde eu poderia ver melhor o lugar onde nasci e cresci, e assim ter a vantagem de não ser vista por ninguém.

Minhas pernas ainda estão fortes, graças aos esforços de subir e descer os degraus do porão, ao abaixar e levantar da colheita na plantação. Mas ainda assim, meu corpo não é mais o mesmo, mesmo tendo forças para correr, sei que não poderei ficar muito tempo andando, terei que parar e encontrar um esconderijo, um lugar para me proteger de Bryce.

Ao chegar ao ponto mais alto do relvado, observo toda a grandeza dessa terra, onde tive os melhores anos de vida com papai ao meu lado. HeavensField era o lugar mais lindo e perfeito de toda Inglaterra! Minha casa já tão distante, não dava mais para ver os detalhes de sua grandiosidade, mas ainda assim se percebia bem o tamanho de sua estrutura. Era a única tão grande e luxuosa em quilômetros.

Sinto lágrimas escorrerem em minha face, as limpo e me lembro das histórias que papai me contava sobre nossa família e a construção de nossa casa. Divertíamos nos jardins, nos gramados e em toda a sua extensão. Éramos felizes. Eu era feliz!

Desço do outro lado da pradaria e caminhava agora calmamente, sem rumo. Não sabia para onde iria, só tinha a certeza de que queria estar o mais longe possível de minha casa. Uma casa que agora mais parecia um lugar abandonado.

O ar sombrio e tenebroso era algo constante e Bryce fazia de tudo para manter a casa assim, desleixada e descuidada. Nunca consegui entender bem o porquê de ele fazer da casa um verdadeiro antro de lixo e desorganização. As lágrimas teimavam em querer cair, mas eu as enxugo e, continuo seguindo meu caminho, seja lá onde eu iria parar.

Andava sem trilho, sem um plano. Percorro os caminhos extensos de Leyns na esperança de encontrar um abrigo, o sol estava saindo e eu tinha muito ainda o que andar.

Passado algum tempo, não sei exatamente quanto, o clima havia mudado, Leyns era um condado típico da Inglaterra, o tempo nunca era ensolarado; a maior parte do tempo estava nublado e a outra metade chovia, e hoje não seria diferente.

O trajeto para onde quer que eu esteja indo era tão silencioso, que às vezes me assustava. Não tinha uma viva alma no caminho que eu percorria, minhas companhias eram os pássaros, os sapos que eventualmente eu conseguia ouvir seu coaxar, e minha própria respiração.

Paro por um momento tentando recuperar o ar e observo as nuvens se aproximando. O vento aumenta e eu fecho meus olhos, sinto como se a brisa tocasse meu rosto e me fizesse gentilmente um carinho.

Escuto um barulho diferente, como se alguém houvesse me chamado, olho para os lados e não vejo ninguém. Temendo que Bryce ou um dos seus capangas estivesse me seguindo, cruzo os meus braços para me manter aquecida e caminho com um pouco mais de pressa.

Depois de caminhar por horas sem encontrar nada, nem um casebre, uma casa ou mesmo uma igreja, diminuo o ritmo e percebo que nada me seguia. Paro por um segundo e arrumo a minha vestimenta tentando me manter quente.

Estava começando a sentir mais frio que o normal, precisava me manter quente. Não seria um bom momento adoecer agora. Volto a caminhar e vejo ao longe uma estradinha, vou em direção a ela, quem sabe me levaria para algum abrigo.

Sinto o vento ficando mais forte, cubro minha cabeça com o capuz da minha roupa e continuo firme. A estradinha começava a ficar cada vez mais próxima, minha esperança era de encontrar um lugar para me proteger. Ao chegar à estradinha, sinto a chuva fina molhar meu corpo, as pradarias já estavam úmidas o suficiente para molhar as botas em meus pés.

Mesmo sabendo que passaria por momentos difíceis, que eu teria que enfrentar muita coisa daqui para frente, ainda assim, eu prefiro ter que enfrentar o que for do que estar dentro daquela casa, presa no porão. Se Bryce fizer o que faz quase todas as noites, a essa altura, já deve estar me procurando e, se eu não encontrar algum lugar seguro, estarei morta no momento em que ele me ver.

A chuva que caia, estava mais intensa, sentia os pingos que batiam em meu corpo cada vez mais forte. Tudo o que eu queria era poder me esconder da chuva e por consequência de Bryce. Mudo minha rota, saio da estradinha, vou caminhando em direção a um pequeno morro, onde vejo a sombra de alguma coisa. Corro até lá.

Ia rezando para que fosse um abrigo! Mas de repente tropeço em uma pedra que não tinha visto e caio dentro de uma poça imensa de água com terra. Sinto uma pontada em meu tornozelo. —Não Emma!! Você não pode se machucar agora! - digo tentando me levantar da lama.

Sento do lado de fora da poça de lama, levanto um pouco meu vestido e observo que meu tornozelo estava normal, apesar da dor que sentia. Com certa dificuldade de andar, volto ao meu caminho, lentamente. A chuva continuava caindo, e cada vez mais intensa. O jeito era continuar, não poderia parar agora. Vou caminhando devagar, meu tornozelo doía muito. Sentia como se estivesse pisando em facas. Para piorar minha mente me traia e trazia as lembranças do inferno que vivi.

"— Venha cá sua bruxa! Onde você acha que vai dormir essa noite?

— No meu quarto, como sempre!

— Seu quarto? - ele ri sendo sarcástico. —Seu quarto? Agora que seu pai se foi, você passa a dormir no porão! Junto com todos os insetos dessa casa!

— Não! A casa é minha, eu vou dormir onde eu quiser! Você não tem direito a nada! Nada! - ela gritava.

— Cale a boca sua infeliz! Essa casa agora me pertence! - ele esbofeteia a moça.

Após apanhar, ela volta o rosto para ele. —Eu vou para meu quarto. - diz a garota saindo da sala indo em direção as escadas. Mas antes que chegasse lá, ele segura seu braço direito com força.

— Não vai não! Já disse que essa casa é minha! E você vai dormir onde eu mandar!!

— Não vou Bryce! Você não manda em mim! - ela tenta se soltar.

Ele a puxa com força para perto de seu corpo —É aqui que você irá passar o resto de seus dias!! - ele a leva até a porta do porão. Emma tentava se soltar, mas de nada adiantava.

— Você não pode fazer isso comigo Bryce. - gritou antes de ser empurrada escada abaixo.

— É aqui que você irá passar seus dias e dê se por feliz por eu não ter te mandado para um lugar pior! - ele fecha a porta do porão a deixando gritando por socorro lá dentro.

—Abram essa porta, deixem me sair!! - ela esmurrava a porta. —Alguém, por favor..."

A sombra que eu ainda não conseguia identificar estava começando a ficar mais próxima, eu torcia para que fosse um abrigo ou qualquer coisa que me protegesse do frio e da chuva da noite. Na manhã seguinte eu pensaria o que fazer, mas eu tinha que achar um abrigo e rápido. Não estava mais enxergando direito, a chuva estava espessa demais. Meu tornozelo doía mais ainda. O frio começava a me consumir.

Sentia minhas costas doendo, parecia que ardia. Ao caminhar sentia como se estivesse pisando em cacos de vidro. A dor começa a ficar insuportável!

Tentava chegar até a sombra, mas agora ela parecia estar tão longe. Já não sabia mais onde estava, me sentia perdida.

Tudo o que trouxe para comer e beber se foi a horas, e ela só apertava, a sede não passava, a única água que eu conseguia tomar era a da chuva, que eu tomava vez ou outra. Minhas mãos começavam a ficar duras de frio, começava a ficar preocupada com minha saúde, provavelmente não resistiria por muito tempo se não encontrasse um abrigo logo.

Percebo que a sombra parecia estar bem perto, corro no desespero de ser um casebre, meu tornozelo piorava a cada batida de meu pé no chão. Para piorar, não percebo a ladeira que me separava daquela imagem borrada e acabei rolando.

Já em baixo percebo que meu tornozelo agora estava ferido, doía muito mais do que antes. Tento me levantar, mas não consigo, a chuva intensa caía sobre mim, e a lama se formava por baixo de meu corpo pequeno. Eu precisava levantar e tentar seguir, mas não conseguia me mover.

Tiro o cabelo que teimava em cair sobre meus olhos com a intensidade da água da chuva e vejo que a única forma era me arrastar até aquela imagem manchada. Com muita vontade, mas pouca força, vou levando meu corpo machucado até aquela que eu pensei ser um casebre e ao me aproximar vejo que era uma árvore estrondosa, muito grande.

Grande o suficiente para me abrigar entre suas raízes e eu poder descansar meu corpo cansado e dolorido. Levanto o meu vestido para ver meu tornozelo e constato a pior visão que poderia ter. Ele estava quebrado. Vermelho, meio roxo, não estava com sua coloração normal. Era algo assustador de se ver.

Encosto-me as raízes da grande árvore e sinto meu corpo pesado pedindo para apagar, olho para o horizonte, minhas mãos caem ao lado do corpo, eu pendo para o lado direito, tento-me recostar, mas, sem forças deixo meu corpo cair, fecho os olhos e apenas sinto a chuva caindo sobre mim.

Mihi ipsi scripsi.

(Escrevi para mim mesmo – Nietzsche)

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.