P.O.V Steve

Eu assistia as notícias da televisão da cozinha, enquanto tomava café da manhã e lia o jornal, claro que não prestando muita atenção na televisão, eram as mesmas notícias inúteis de sempre, como filho-de-não-sei-quem nasceu, ou famoso de não-sei-de-onde bateu o carro embriago, as mesmas porcarias de sempre. Mas o jornal me mostrava a cessão de empregos disponíveis na região. E passei os olhos lendo todos, até que um me interessou bastante, porém era bem longe, e bem no norte, fronteira com o Canadá. Será que ela aceitaria se mudar para lá comigo? Não custa tentar...

Lavei a pouca louça que sujei e peguei a minha pasta de couro e saí de casa me preparando para uma entrevista de emprego. Ajeitei a gravata no espelho do elevador, ou melhor, a tentativa de uma gravata. Mesmo dando nós de gravata a muitos anos, nunca consegui fazer um perfeito, não como a Emily fazia para mim. Lembro a confusão de tecido que foi o meu nó no dia do meu casamento, ri com aquela lembrança.

O elevador parou, saí do prédio dando bom dia ao porteiro e segui andando até o museu de História Natural, que ficava bem perto de onde moro, em um minuto eu já estaria chegando de tão perto que era. Ajeitei o cabelo assim que estava na porta do museu. Abri e já pude ver os esqueletos enormes de dinossauros cuidadosamente montados por todo o salão. Diversas turmas de crianças observavam os esqueletos fascinadas, e suas professoras explicavam para elas.

Expliquei ao rapaz responsável por cobrar os ingressos que eu estava para a entrevista de emprego, apresentei o meu nome e identidade e pude entrar sem pagar o ingresso. Atravessei o salão rapidamente, não que eu estivesse atrasado, mas gostaria de chegar mais cedo. A entrevista era as nove, e ainda era oito e quarenta. Entrei no corredor aonde o rapaz me explicou na entrada e dei de cara com pelo menos vinte cadeiras encostadas nas paredes, dez de cada lado. Suspirei, eu era o primeiro.

O tempo passou devagar enquanto eu esperava sentado em uma das cadeiras, e bem aos poucos, os outros candidatos chegavam, todos bem jovens, grande parte eram homens, as mulheres não paravam de conversar entre si, enquanto os homens ficavam mais calados. Quando faltava cinco minutos para começar, mais cinco candidatos chegaram, e tiveram que esperar em pé junto com os outros sete em pé, faltavam cadeiras, e eu contava trinta e dois entrevistados.

Seria uma competição, eu sentia isso, eu até podia aspirar o nervosismo dos outros, alguns até suavam manchando seus ternos. Eu estava calmo, porém, com um pouco de nervosismo por dentro, mas bem controlado. Diria mais ansioso do que nervoso. O meu segredo era lembrar de quanto eu levava Hannah e Brianna para cá, e lhes mostravam os dinossauros, as estatuas de índios, os animais empalhados. E eu nunca me esquecia de como foi para elas verem um leopardo empalhado, morreram de medo das enormes presas, aquilo me fazia rir até hoje.

Organizei os papeis novamente dentro da pasta. Estava tudo ali. Alguns documentos que escrevi para livros didáticos, as minhas pesquisas e o meu currículo. Tudo aquilo somava pelo menos vinte folhas, que eu guardava dentro de uma pasta de plástico para manter organizado direito, e depois entregaria para o entrevistador.

Logo o tal do entrevistador chegou, e senti todos ficarem mais agitados, alguns até se levantaram achando que iriam ser entrevistados primeiro, segurei o riso o máximo que pude. Ele estava na casa dos quarenta, no máximo, cabelo começando a ficar branco, altura mediana, magro e andava firmemente, do mesmo tipo do reitor da faculdade onde eu dava aula. Já vi que seria difícil para mim, mas tentei manter os pensamentos positivos.

O homem entrou numa sala e só voltou minutos depois com uma pasta em mãos. E começou a chamar pelos nomes, em ordem alfabética. Respirei bem fundo, eu seria um dos últimos, que maravilha! Pelo menos eu teria mais tempo para me preparar, ficar ainda mais calmo e relembrar o que eu iria dizer, e as respostas para as perguntas que sempre tem em entrevistas como essa. Não era a primeira que eu fazia para trabalhar em um museu, na verdade era terceira, e em nenhuma delas eu havia conseguido.

A cada candidato que saia da sala, era uma reação diferente. Alguns eu pude ver o sorriso contido, do tipo que havia conseguido e estava orgulhoso de si mesmo, aqueles eram os que eu ficava mais receoso; depois vinham aqueles raivosos e tristes, de que não haviam conseguido, ou por muito pouco, e estava com raiva de si mesmo; e por fim vinham os que estavam normais, muito mais calmos do que quando haviam entrado na sala, são aqueles que achavam que haviam se saído bem, ou, mais ou menos.

Fazer o tempo passar mais rápido foi difícil, e por isso, eu me concentrava em ficar jogando tetris no celular, era um bom passatempo e era fácil, e por isso eu não ficava com raiva quando perdia. Os outros candidatos faziam o mesmo, outros ficavam conversando por mensagens no telefone, outros jogando, e poucos lendo livros.

Eu fui um dos últimos, pelo o meu nome começar com a letra S, quando ele me chamou de dentro da sala, percebi que ele já estava de saco cheio de tanto entrevistar, e por isso nem se incomodou em se levantar e vir me receber ou chamar. Definitivamente aquele era um mal sinal. Me levantei com pressa guardando o celular dentro do bolso.

A sala nada mais era do que um cubículo simples, paredes brancas, uma lâmpada em cima, uma mesa e cadeiras de metal, aquilo me lembrou uma sala de interrogatórios da polícia. Não era um bom lugar para uma pessoa se manter calma. O cumprimentei com um aperto de mão dizendo o meu nome, e ele se apresentou como David Stone sem quase olhar para mim.

Espera, eu lembro desse sobrenome. Oh não... Não pode ser.... Definitivamente aquele era a pior pessoa para fazer a minha entrevista de emprego, algo que eu precisava e muito. Marie Stone, era por isso que eu estava nervoso ao extremo assim que ele disse o nome dele, ele era pai da aluna com quem me envolvi na faculdade! Um total desastre e falta de sorte para mim! Ele poderia muito bem me mandar para longe, telefonar para todos os museus de Nova Iorque avisando para nunca me contratarem, uma coisa que seria um total desastre para a minha vida!

Tentei manter os pensamentos positivos enquanto me sentava na cadeira a pedido dele. Poderia ser outro Stone, mas pela expressão dele enquanto olhava aquela prancheta de plástico, não era outro, era o pai dela mesmo. Respirei fundo sentindo as minhas mãos molharem de suor, todo o meu esforço de me manter calmo foi por água abaixo, e ainda não havia nem sequer um ventilador aqui!

Algo me veio à mente, algo que poderia servir para eu ter uma pequena chance de conseguir esse emprego. Ele poderia ser profissional, do tipo que não mistura trabalho com assuntos pessoais. Porém, mesmo assim, poderia transformar a minha vida num verdadeiro inferno aqui dentro. Isso claro se eu passasse, e eu preciso e quero muito!

Respirei fundo, coloquei a minha pasta no meu colo. David colocou a prancheta sobre a mesa iniciando a entrevista. Todo o tempo respondi a suas perguntas calmo, porém por dentro tão nervoso quanto aqueles candidatos esperando mais cedo. Eu apresentava os meus trabalhos e realizações profissionais, e as minhas pesquisas também, mas pareceu não interessa-lo muito. Também fui testado quanto ao meu conhecimento sobre a história americana, e bem... Era exatamente o que eu tinha de melhor.

Suas perguntas eram coisas simples, mas também haviam desafiadoras, mas no final, acho que me saí bem. Porém, antes que ele me liberasse, tentei arranjar uma maneira de consertar as coisas. Talvez o convidando para um café, ou conversando aqui mesmo, mas eu precisava consertar isso, afinal, eu também sou pai, eu não passei e não espero passar por isso, mas eu sei o quanto deve ser ruim.

O convidei para um café, porém ele recusou, mas já sabia o porquê do convite, e disse para eu esperar até o meio dia, quando ele terminaria de entrevistar a todos, e só faltavam umas três pessoas lá fora, e quase meia hora para o meio dia. Concordei, o cumprimentei agradecendo pela entrevista e saí da sala. Os três candidatos olharam imediatamente para mim, apenas ajeitei o terno e saí daquele corredor que estava me sufocando.

Assim que saí do museu, o ar fresco me atingiu por completo, e pude respirar melhor, e com a consciência mais limpa, pois eu tinha grandes chances de conseguir finalmente um emprego, e poder consertar talvez o meu maior erro de toda a minha vida. Claro que não traria a Emily de volta para mim, mas poderia me deixar dormir melhor a noite.

Passei numa cafeteria e comprei um café rapidamente, e esperei do lado de fora do museu até meio dia, e quando faltava cinco minutos, ele passou pela porta cumprimentando o rapaz e passou direto por mim. Joguei o café pela metade no lixo e o acompanhei, mas ele andava tão rápido e parecia não querer conversar de jeito nenhum. Eu compreendia isso.

—Senhor Stone! – eu o chamei andando até ele, mas não parou. Andei lado a lado com ele, e eu apenas o escutava bufar.

—Você tem cinco minutos, ou até chegarmos ao meu carro daqui a três quarteirões – avisou e concordei com a cabeça lembrando do que eu planejava dizer quando estava esperando por ele, mas parece agora totalmente fora de cogitação dizer, eu precisava dizer as coisas certas, precisava ficar calmo e poder pensar direito.

—Primeiramente eu gostaria de pedir desculpas pelo o que aconteceu, eu sei que a vida da sua filha na faculdade não foi nada fácil depois que eu saí – falei olhando para ele, e ao mesmo tempo tomando cuidado com as pessoas que passavam por mim, e eram inúmeras, porém pareciam não tentar desviar de mim.

—Fácil é apelido – ele respondeu irônico e suspirei nervoso, a minha expressão dava para ver isso, eu estava ficando nervoso. Aquele homem era intimidador, e me deixava sem escolha, e claro, sem o que dizer, pois tudo o que saia da minha boca naquela hora parecia besteira.

—Eu também sou pai, posso não ter passado por isso, mas eu sei que não é fácil – digo e ele para de andar de repente, e paro também, a alguns passos dele, o observo e o vejo suspirar e olhar para o chão, e puxa o meu braço para a sombra de uma árvore onde não atrapalharíamos o fluxo de pessoas.

— “Fácil?” — pergunta irritado e engulo em seco com aquela reação, era a última coisa que eu queria – Fez uma filha da putagem dessas e ainda se diz pai?! – pergunta ainda mais irritado, e tento explicar, mas ele não permite – Você é um puto de um desgraçado sortudo por eu não misturar trabalho com assuntos pessoais – diz mas aquilo não me deixa mais tranquilo, e eu quase podia sentir a sua ira me esfolando vivo.

—Senhor Stone... – tento explicar novamente, mas ele ergue a palma da mão na frente do meu rosto me interrompendo novamente.

—Não me interrompa – avisa entredentes e afirmo com a cabeça concordando – Mas pode ter certeza, se você for aceito naquele museu onde trabalho por vinte anos, eu transformarei a sua vida num inferno, estamos entendidos? – ameaça e afirmo com a cabeça novamente.

—Senhor, por favor, tente entender... – ele me interrompe.

—O quê? Entender o quê? Que você comeu a minha filha e depois ela ficou com má fama na faculdade onde ela estuda? – pergunta irônico e passo a mão pelo rosto – É isso que você quer que eu entenda?

—Não, claro que não, senhor. Eu apenas quero dizer que as pessoas cometem erros, e eu paguei muito caro por ele – expliquei vendo que ele estava me deixando sem escolhas e ele quase ri sarcástico.

—Como você pagou? Com o emprego? Isso é pagar caro? – pergunta irônico e risonho, mas ainda bem enraivecido, dava para perceber, e me deixando ainda mais nervoso, eu podia sentir o suor das minhas mãos escorrendo pelo couro da alça da minha maleta.

—Com o meu casamento com a mulher que eu mais amo – respondo firme e ele não ri, fica apenas calado – Ela foi embora, e viu tudo, e sem ela, eu não sou nada. E ainda a minha filha mais nova não quer nem saber de mim, rejeita qualquer tipo de aproximação minha. Isso, senhor, isso é pagar caro para mim – observo a sua reação, ele não riu, porém também não entendeu, apenas me observou também.

—E você era casado? – pergunta descrente e afirmo com a cabeça – E como você se sente por ter feito uma coisa dessas? Eu sou casado com a mesma mulher por quase vinte anos, nunca fiz uma coisa dessas, e nunca farei, e sabe o porquê? – pergunta retoricamente – Porque eu a amo. Então não me diga para entender o seu lado, pois você está errado e está tentando justificar algo injustificável – responde firme e depois dando um pequeno sorriso sarcástico – E sua mulher fez o certo indo embora para longe de você, tenho pena dela – diz frio sem tirar aquele maldito sorriso da cara.

David apenas me cumprimenta com a cabeça enquanto retira um óculos de sol do bolso do paletó e vai embora, e fico parado vendo ele ir. Suspiro notando que escolhi as palavras erradas. Mas o que eu podia dizer que facilitaria as coisas? Que o faria me perdoar? Simplesmente nada. Era a raiva de um pai pelo canalha que sujou o nome da filha dele, como ele poderia me perdoar. Se fosse com uma das minhas filhas, eu não agiria diferente.

Suspirei e andei na direção oposta indo para casa. Eu planejava visitar o museu depois da entrevista, mas agora perdi totalmente à vontade, seria apenas para me lembrar de tempos que não vão voltar, lembranças que vão ser guardadas na minha mente para sempre, e de uma época em que eu era verdadeiramente um pai. Agora sou apenas o homem que as colocou no mundo. De que eu sirvo agora? Hannah não precisa mais de mim, e Brianna não quer mais saber da minha existência. Para que eu sirvo então?