Pov Quinn

A campainha toca insistentemente, enquanto termino de me arrumar. Faz alguns segundos que ela está tocando.

"NOAH!" - grito, aplicando o pó e tentando me enxergar no minúsculo espelho deste banheiro. Noah está agarrado nesse videogame velho a horas. Eu não reclamo muito com ele, porque esse é literalmente o último "luxo" que ele tem tem: tênis, celular, jaqueta de marca, ele vendeu tudo o que tinha de valor para reverter pro nosso apartamento e pros cuidados com a Beth, que vem me chutando sem parar nos últimos dias. Ela deve estar tão nervosa quanto eu, minha pequena: é nossa primeira vez num plantão noturno. Não é algo que um estagiário deveria fazer ou mesmo ser envolvido, mas todos gostam muito de mim na emissora, e a plantonista escalada pra esta semana adoeceu. Quando me pediram, eu topei na hora, é uma excelente chance pra mostrar meu trabalho, e eu preciso muito ser efetivada se quiser dar uma boa vida à minha bebê.

Saio apressada do banheiro, calçando meus sapatos, e vejo Noah abrindo a porta.

Jesse. Com os olhos extremamente vermelhos.

"Você não deveria estar no SAT?" - Noah pergunta, quando o vê.

"Você também não deveria?" - Jesse responde, com a voz baixa.

"Eu tenho mulher e filha." - Noah responde, deixando Jesse entrar.

"Idem." - é o que ele diz, se jogando no sofá onde Noah estava sentado.

"Jesse, o que houve?" - me abaixo para ficar à sua altura. Jesse pega um travesseiro e o afunda na cara.

"Eu fico em pé." - Noah diz, e eu o encaro furiosamente. Jesse claramente não está nada bem.

"Fala comigo Jay, o que houve?"

"Jay?" - Puck me olha imediatamente, porque usei o apelido que usávamos quando éramos namorados. "Jay" e "Quill", nos chamávamos assim de vez em quando. Eu só rolo meus olhos pra ele, isso não é hora pra ciúmes infundados.

"Sugiro não dizer isso na frente da Rach, Quill." - Jesse diz, ainda com o travesseiro na cara.

Eu espero alguns segundos, segurando sua mão, até que ele finalmente tira o travesseiro do rosto. Eu acaricio sua testa.

"Pode me contar o que houve?" - digo, e ele se senta no sofá.

Jesse me conta o que fez, como se sentiu durante a prova, sua angústia em se imaginar longe do bebê. Eu ouço atentamente, Noah, Jesse e eu apertados no minúsculo sofá. Sei que estou em cima da hora pro trabalho, mas Jesse esteve lá por mim no momento em que eu mais precisei, e não vou deixá-lo agora.

"Estraguei tudo, neh?" - ele diz, erguendo a cabeça.

Posso imaginar como se sente. Jesse é um aluno genial e tem um futuro acadêmico brilhante pela frente. Porém, numa cidade pequena como Lima, ele não terá muitas chances pra se desenvolver. Academicamente, sei o quanto é importante pra ele conseguir essa bolsa. Mas como tenho uma vida crescendo dentro de mim agora, entendo perfeitamente como as nossas prioridades mudam: de repente, é como se o mundo inteiro girasse ao redor desse serzinho que nem sequer vimos ainda, mas que já amamos tanto.

"Você é brilhante, Jesse. Sei que vai conseguir organizar tudo isso." - digo, e ele da um sorriso sem humor.

O celular vibra, me lembrando do horário. Não quero deixar Jesse sozinho, então vou pedir um Uber pro trabalho. Peço a Noah que o deixe ficar o quanto quiser, sei que ele precisa pensar um pouco, colocar as coisas no lugar antes de voltar pra casa e contar a todos que ama que praticamente desistiu da bolsa pela qual tanto batalhou.

Dou um beijo na testa dos meus dois meninos, e saio com Beth chutando descontroladamente dentro de mim.

POV Jesse

Sou um imbecil. Um imbecil completo, sentimental e sonhador. Do que é que eu vou viver, como vou alimentar o meu filho sem um bom emprego? Como vou ter um bom emprego sem uma boa educação? Como pagar as mensalidades da UCLA quando eu tinha uma bolsa praticamente nas minhas mãos e a joguei fora num surto emocional? Isso se eu sequer for aceito na UCLA depois de tirar zero no SAT.

Zero, eu nunca zerei uma prova na vida, eu nunca sequer tirei uma nota baixa na vida!

Foda-se a essa merda, eu tenho um filho crescendo na barriga da mulher que eu amo. Mulher e filho me esperando em casa, e cá estou eu sentado no sofá da minha ex e preocupado com ridículas notas e bolsas de estudos.

Mas sem essa ridícula bolsa de estudos, como vou alimentar meu filho?

Sou um imbecil. Um completo imbecil.

"Foda, hein." - Puck me diz, de repente. Eu tinha esquecido que ele estava sentado do meu lado, mas esse apartamento só tem um sofá.

"É." - eu digo.

"De repente você entra na faculdade comunitária, neh? Vai ser bom, ver o moleque crescer."

"Rachel acha que é menina."

"Bacana. Tomara que elas sejam amigas, minha filha e a tua." - Puck diz, meio sem jeito.

"Tomara." - repito, ainda encarando a parede.

O silêncio se instaura entre nós por longos minutos.

"Então, cervejinha?" - É o que Puck me pergunta, quebrando o silêncio.

POV Quinn

"Como é que eu ia saber que ele não sabia beber?" - Noah tenta se defender, enquanto Jesse continua estirado no nosso sofá ainda com seus sapatos e a mesma roupa de ontem. São 6 da manhã, o carro da emissora veio me deixar em casa depois do plantão, e a primeira coisa que encontro é Jesse completamente desmaiado no meu sofá enquanto Noah come tranquilamente o seu cereal.

"Ele nunca bebeu nada, Noah!" - digo, tentando acordar Jesse. Se naturalmente ele já tem um sono muito pesado, imagina bêbado! - "Quanto ele bebeu?"

"Umas 2 ou 3 garrafas, sei lá. Capotou logo em seguida. Como ele não acordou, deixei dormindo aí no sofá. Eu não ia chutar o cara pra fora no meio da noite, né?"

Continuo tentando acordá-lo, sem sucesso.

É quando Noah aparece com um copo de água na mão. E o vira bem na cara de Jesse.

POV Jesse

"CACETE!" - acordo num pulo, sentindo a água gelada no meu rosto. Minha cabeça gira, e não sei dizer se é pelo susto repentino ou pela ressaca. Eu nem bebi tanto assim, mas estava me sentindo tão vazio, que a bebida pareceu uma boa ideia pra preencher alguma coisa dentro de mim. Agora me sinto péssimo, ridículo, idiota e péssimo!

"Uéh, já voltou, Quinn?" - tento localizá-la enquanto minha visão gira.

"São 6 da manhã, Jesse. Você dormiu aqui."

"O QUE?" - me movo tão rápido que caio do sofá.

"Rachel!" - é tudo o que eu consigo dizer, enquanto ligo meu celular apressadamente. Ele estava desligado desde a prova de ontem. Rachel deve estar terrivelmente preocupada comigo, Deus do céu, como eu fui fazer isso! O nervosismo sobe pela minha garganta enquanto o telefone demora pra ligar.

Não dá outra: infinitas chamadas perdidas de Rachel desde ontem e ao longo da madrugada. Puta que pariu, o que foi que…

Noto que, além das chamadas de Rachel, também há ligações de Shelby e da minha mãe, todas em sequência. Há até mesmo chamadas do meu pai, que não fala comigo a semanas.

Enquanto o celular vai ligando, mensagens de texto começam a chegar. A mais recente é de Shelby.

Eu saio correndo assim que a leio.

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Passo pela recepção como um louco, subindo pelas escadas de emergência. Não tenho tempo pra esperar o elevador. 8 andar, é onde Rachel está.

Enquanto eu lamentava sobre a minha vida como um idiota, minha mulher e meu filho foram trazidos pro hospital. O meu maior medo se concretizou em segundos: eles precisaram de mim, e eu não estava lá.

"Mãe" - Grito assim que a vejo. Ela está sentada em frente ao quarto de Rachel, com meu pai ao seu lado.

"Jesse…" - minha mãe me abraça, sua voz é doce e baixa, quase um sussurro.

"Mãe, como é que ela está? Tenho que vê-la…" - me solto do abraço da minha mãe e me dirijo até a porta do quarto, onde consigo ler o nome "Berry" na plaquinha da porta.

"Jesse, se acalme." - meu pai me segura pelos ombros, me impedindo de entrar.

"Pai, eu preciso vê-la, preciso vê-la agora!" - digo, tentando me desvencilhar dele, que segue bloqueando o meu caminho.

"Jesse…" - meu pai diz, e segura meu rosto para olhar em seus olhos - "Ela perdeu o bebê, Jesse. Sinto muito."

Eu não o escuto. Por alguns segundos, só ouço o silêncio enquanto vejo as lágrimas rolando pelo rosto da minha mãe. Não escuto o que meu pai disse, nem os passos da minha mãe em minha direção, vindo me abraçar. Não ouço nada, nem um simples ruído.

E então, o mundo explode ao meu redor.

É como se uma cratera tivesse se aberto debaixo da terra e me engolido lentamente. É como se um caminhão tivesse me atingido logo em seguida. É tão forte e tão pungente, como um soco no estômago e uma facada no coração.

Rachel perdeu nosso bebê. Eu não sou mais pai. Não sou mais ninguém.

—--

Em minha vida, eu nunca fiz muitas coisas que me exigiram coragem ou força. Andar pela primeira vez de bicicleta, contar ao meu pai que quebrei o vaso de porcelana que foi da minha avó, dizer a Rachel que a amava. Nenhuma dessas se compara à força que preciso fazer para empurrar a porta do quarto de Rachel agora.

Eu a vejo. Rachel está ali, usando a camisola azul do hospital e encarando o próprio colo. Seus braços estão em volta da cintura, caídos, sem força. Como se ela estivesse tentando proteger o vazio.

Tudo ao seu redor está escuro e sem vida. Tudo é cinza, pesado e sombrio. Me movo em direção à sua cama, mas estou preso na Matrix, e o universo inteiro se move em câmera lenta.

Não sou rápido o bastante, não tenho super poderes cinematográficos. A bala me acerta, certeira, dolorosa, precisa. Bem no coração.

Rachel ergue a cabeça, e me olha.

Nós inundamos o quarto com nossas lágrimas. Rápidas, curtas e doloridas, um grito estrangulado na garganta e um soco no estômago. É enjôo, tristeza, uma solidão conjunta e implacável. Sem perceber como, quando, me movi até sua cama e ali estamos nós, cabeça com cabeça, lágrima com lágrima.

Nós dois. Só nós dois.

—---

Abro meus olhos rapidamente, acordando do vazio para retornar ao pesadelo. Shelby saiu para comer algo, e eu fiquei aqui com Rachel, que não fala, não come e não olha pra cima. De tempos em tempos, ela se agarra ao próprio ventre e chora tão alto que é como se um pedaço de vidro estivesse sendo enfiado em minha garganta. Eu tento consolá-la, mas ela não quer ser tocada, não quer falar e não quer ouvir ninguém. Eu respeito seu espaço e permaneço aqui, ao seu lado, em silêncio.

Rachel acordou sangrando no meio da noite. Shelby a trouxe imediatamente pro hospital, mas o bebê já estava morto. Eles tiveram que retirá-lo rapidamente, antes que houvesse alguma complicação pra Rachel. Era uma gravidez de risco, os médicos disseram. Provavelmente o feto não era viável. Ele era pequeno, a gravidez era inicial. Foi uma curetagem simples e indolor.

Eu ouço as palavras em looping na minha mente, como se as escutasse de novo e de novo e estivesse recebendo a notícia pela primeira vez.

O feto estava morto. Teve que ser retirado.

Meu filho.

Rachel acordou sangrando porque o nosso filho estava morrendo. E eu não estava lá.

Eu não estava lá com eles.

"Você pode sair?" - escuto a voz de Rachel, como um sussurro. Ela não chega a erguer o rosto e me olhar.

Me levanto, e vou até sua cama.

"Claro, meu amor. Eu volto depois."

"Não." - Rachel diz.

Um abismo debaixo de um precipício, um corte na ferida aberta e uma queda em terreno rochoso.

Nosso filho morreu. E eu não estava lá com ela.

"Rach…" - meu cérebro tenta formular as palavras, enquanto meus olhos se enchem de lágrimas. Rachel chora baixinho, profundo e estridente. E eu não posso toca-la, eu não posso toma-la em meus braços e roubar toda a dor dela pra mim, eu não posso fazer passar - "Rach, por favor, não faz isso… me perdoa…" - sou egoísta e engasgo com minhas palavras e o choro preso na garganta e a saliva que escapa junto com ela. Estou babando, suando, chorando, perdendo toda a água que tenho no corpo, e estou sufocando porque o meu ar se foi e eu não sei como estou vivo agora. Ou porque.

"Eu… não… consigo. Te ver… por favor. Vai embora. Por favor…" - Rachel chora e se aperta em si mesma. Ela quer que eu saia, ela quer que eu saia desta sala e eu sei o que isto significa porque ainda a conheço mais do que a mim mesmo.

"Me perdoa, por favor…, me perdoa!" - eu imploro e caio de joelhos. Ela não ergue os olhos. Ela não olha pra mim.

"Eu não consigo… te ver… e não lembrar… dela… eu nem sei se era menina… eu nunca vou saber. Por favor. Deixa… passar. Eu preciso… deixar ela… ir."

Eu balanço a cabeça em afirmação, ainda que ela não consiga ver. Eu me ponho de pé com toda a força que me restou. Pego meu celular que estava na cadeira, e saio, sem olhar pra trás.

Passo por meus pais, sentados do lado de fora, e ando, sem rumo, pra fora do hospital e pra fora do meu próprio corpo. Caminho por minutos, horas, dias, anos e eras, milênios e bilênios até que a terra se desfaça debaixo dos meus pés e eu deixe de existir.

Rachel me quer fora daquela sala.

Fora de sua vida.

Fora de mim mesmo.