Eu penso em você só três vezes ao dia.

A primeira é quando acordo

A segunda é enquanto respiro

A terceira é um segundo antes de dormir.


Quatro anos. 1460 dias. 35040 horas. O infinito se passou depois que ela se foi. E eu continuei no mesmo lugar. Não consigo sair desta casa, não posso desligar esse projetor e deixá-la ir. Porque mesmo com todo esse tempo, ainda dói. Dói pra caralho.

Se eu não a visse em todos os lugares, seria ainda mais difícil. Eu não suportaria ir para a faculdade se não a visse pelos corredores, sorrindo, me mandando segui-la. Jamais voltaria ao clube se ela não estivesse debaixo d’água toda vez que eu mergulhasse. Nunca mais fecharia os olhos se não tivesse certeza de que ela estaria intacta em minha memória, em meus sonhos.

Alo está batendo na porta de novo. Ele, Mini e o bebê sempre vem me ver quando é sábado. Eles sabem que é o dia que mais me entristece. Era o dia preferido dela. E hoje, sendo seu aniversário, consegue ser um sábado ainda pior.

“Está destrancada” esclareço antes que Alo quebre a vidraça. Ele entra e consigo forçar um sorriso, o mesmo que venho mostrando todo esse tempo, o que significa que jamais irei sorrir direito outra vez. Ele põe a criança em cima da mesa cheia de livros de psicologia onde eu estava tentando estudar, e ela começa a rasgar algumas folhas do caderno. Dou-lhe uma caneta azul para mantê-la ocupada. Mini sorri e me abraça. Ela sempre me abraça sem dizer uma única palavra, porque sabe que não há nada que pode ser dito para melhorar as coisas.

“Qual é cara, levanta daí! Já estão todos lá fora. A Franky arranjou um sítio em New Heattlep com quilos de cocaína e nenhum posto policial por perto. Podemos deixar a lucy com os pais da Mini e voltar na segunda. Sua primeira aula na segunda começa as dez, nem adianta negar, já liguei para o departamento confirmando. Não há como dizer não.”

Olhei para ele ainda com o sorriso falso petrificado no rosto. Ele estava certo, não tinha como recusar. Eu já havia conseguido faltar nas últimas cinco reuniões com a turma, cada uma por um motivo diferente. Não que eles não fossem legais, eles só me lembravam ainda mais dela. Mais do que a casa, mais do que as próprias fotos. Quando estávamos todos juntos sempre tinha a sensação de que ela apareceria a qualquer momento. Mas isso nunca aconteceu. Olhei em volta, e a sala parecia um ninho, com roupas espalhadas pelo chão e xícaras de café por todos os lados. Os cigarros pelo menos eu já tinha me dado ao trabalho de amontoar em um canto do tapete do Sr. Blood. Ele tinha sido compreensivo demais ao permitir que eu ficasse com a casa dela, o mínimo que eu podia fazer era não enchê-la de cinzas.

“Rich, por favor, apenas tome um banho e entre no carro, sim? Eu arrumo essa bagunça pra você” Sugeriu Mini ao me perceber observando o cômodo. Subi os degraus sem pressa, entrei no chuveiro ainda de roupa e esperei a água lavar minha alma. Infelizmente águas de banho não fazem milagres, e saí do banheiro apenas um pouco melhor do que havia entrado. Coloquei uma das poucas roupas que ainda estavam limpas e não me olhei no espelho. Abri a caixa de música para escutar a melodia mais uma vez antes de fechar a porta e descer as escadas. Do lado de fora estavam Franky, Nick e Liv nos esperando na van branca. Depois de anos todos continuamos com os mesmos rostos descorados e cheios de olheiras. Percebo que não sou o único com o sorriso forçado. Nada é igual sem ela aqui.

Entro na van e pegamos a estrada antes de começar a escurecer. Paramos em frente ao túmulo simbólico dela e fazemos um minuto de silêncio antes de seguir viagem. Ninguém menciona o nome dela. Até hoje não sei se o fato daquele caixão estar vazio me faz sentir mais esperançoso ou mais angustiado.

Conheço boa parte da estrada. Todos vão conversando, rindo ou fumando enquanto deixo queimar um cigarro entre os dedos e observo a paisagem. O caminho nos leva á igreja onde quase nos casamos, e tenho que desviar os olhos para impedir a formação de lágrimas. Devia ter me casado naquele dia. Se eu ao menos soubesse que seria aquela a única oportunidade...

O sítio de Franky é realmente fantástico. Um daqueles castelos do século XVIII com todo tipo de mordomia, parecia até que estávamos na França. Ela teria adorado as rendas das cortinas, e os vitrais coloridos nas janelas. Francesca ainda não me olha nos olhos, mas já não a culpo por mais nada. Sequer me lembro de algum dia tê-la culpado, para ser sincero. Todos aqui presentes ainda se importam comigo, com ela, com o que aconteceu. Visito Matty na cadeia uma vez por mês, e ele me pede perdão sempre quando chego e quando vou embora. Não há o que perdoar, não agora.

Vou para a torre mais alta e me sento no parapeito de pedra, observando o grupo brincando de guerra de ovos, leite e farinha lá embaixo. Foi em uma brincadeira como essa que ela disse pela primeira vez que me amava, posso repetir toda a cena em minha mente. Ma as lembranças felizes sempre vêm acompanhadas da memória do Sr. Blood me informando que ela jamais iria voltar para nós, para mim. Depois de cruzar a porta da frente e dizer “A casa agora é sua, era o que ela iria querer”, ele sumiu sem nunca mais sequer telefonar. Também não visita a homenagem a ela, pois sempre que vou vê-la o jarro de flores contêm apenas o último buquê que eu mesmo coloquei lá. Deve ter continuado na Suíça, onde ela respirou pela última vez.

Ouço alguém se aproximando do quarto e abrindo a porta, mas não olho para trás. Dou um trago no cigarro e me preparo para usar novamente meu sorriso forçado. Ao me virar encontro todo o pessoal de pé, com olhos curiosos. Mini me estende uma caixa branca de bolinhas com um laço vermelho em cima.

“O que é isso” Pergunto sem muito entusiasmo

“É para você, Rich. Já se passaram quatro anos cara, já é hora de fazer isso” Nick tentou me encorajar.

Ah, não, será que eles tinham colocado fotos dela na caixa? Vídeos de balé? Fariam-me queimar tudo ou jogar pela janela? Nada disso iria adiantar, pois ela ainda apareceria de noite, nos meus sonhos, de qualquer maneira. Prendi o cigarro com os lábios e abri a caixa com as mãos agora livres, e lá dentro tinham dois papéis. Um era uma passagem de avião, o outro era um endereço. Eles não podiam estar falando sério. Talvez fosse melhor que eles tivessem feito uma fogueira com as coisas dela. Entendi de imediato do que se tratava.

“Não posso, ainda é cedo. A intenção foi boa galera, mas não há a menor chance de acontecer”

“Rich, você precisa crescer” Liv tentou. Senti o sangue subindo pelas minhas bochechas.

“Mas eu estou crescendo! Eu já cresci demais. E sabe o que mais cresce comigo? A falta dela! Vocês podem conseguir superar essa dor, e esquecer isso por um tempo, mas não há um minuto sequer em que eu me esqueço, porque eu não posso deixá-la ir.”

“Cara, tenho certeza que o pai dela sente o mesmo. Talvez se você falasse com ele...”

“Escuta Alo, não dá para falar com ele. Simplesmente não dá. Você acha que eu já não tentei telefonar? Você pensa que eu não tentei manter um contato com a única pessoa que deve estar sentindo tanto a falta dela quanto eu? Mas ele não atende. Ele não aparece. Até ele mudou de alguma forma. Eu não posso aparecer lá na Suíça sozinho, procurando por um hospital que possa me dar pistas de onde a família dela está!” Gritei enquanto corria e socava uma parede. Fui derretendo até agachar no chão, chorando como uma criança pequena. Alo se agachou ao meu lado e limpou meus olhos com a manga do moletom marrom que usava. Levantou meu rosto para que eu pudesse enxergar todos com mais clareza

“E é por isso que você não vai sozinho” Ele disse, enquanto remexia nos bolsos. Mini, Liv, Nick e Franky fizeram o mesmo, e cada um ergueu no ar uma passagem igual a que estava dentro da caixa.

“Estamos nessa juntos, cara. Pela Grace” Ele disse.

“Pela Grace” Concordei. E ao ouvir o nome dela, pela primeira vez em quatro anos, 1460 dias e 35040 horas, eu sorri de verdade.