Ao acordar-me, vi que não era só Zoro, mas como também Usopp e Luffy estavam no quarto do zelador. Os dois mais novos sorriram ao ouvirem o farfalhar do meu cobertor e me encontraram descobrindo as pernas para que eu ficasse sentado. Ainda me sentia sonolento e por isso coçava o olho coberto pela franja.

— Sanji, já se sente melhor? — Perguntou Usopp. Ele estava sentado no chão por não haver onde sentar. Estranhei seu tom, porque me pareceu que ele queria me ver bem por seu interesse.

— O que tá havendo? — Perguntei ao ver Luffy e Zoro me fitando seriamente.

— Usopp parece que encontrou uma maneira de sairmos daqui. — Luffy pulou de seu assento, ajeitou seu chapéu de palha na cabeça e se aproximou de mim.

— Ham? Sério?

— Sim, eu só preciso explicar para você. — Disse Usopp se levantando do chão e também se aproximando da cama. — E depois que eu explicar, vamos colocar em prática!

— Bem, por mim tudo bem. — Respondi. — Já me sinto bem e mesmo se estivesse mal, eu avançaria porque o que mais quero é sair disso.

Usopp me explicou que talvez nós quatro éramos ligados, isso explicaria porque fora logo nós que fomos presos no breu. Eu rebati que não os conhecia, não tinha como haver algum tipo de laço, e ele disse que pensou nisso, mas não descartou sua suposição. Pelo contrário, ele pensou melhor e concluiu que na verdade passávamos por algo em comum.

Ele disse que desligaria a luz do quarto e com uma lanterna em mãos deveríamos falar sobre nós mesmos. Por mais invasivo que estaria sendo, ele pediu para que não guardássemos principalmente uma mágoa muito forte. Um frio envolveu minha barriga, eu teria que falar de minha família e os três veriam como sou esquisito.

— Eu amo carne, mas aqui na escola tem. — Luffy não tinha a posse da lanterna, mas tagarelava sem dó. — Só que como batatas fritas são cancerígenas e não devem entrar numa dieta de um estudante... Cara, como eu queria comer um combo no McDonald's, eu pediria um combo só pra comer aquelas batatinhas crocantes...

Usopp iluminava Luffy e pudemos vê-lo babando. Rimos.

— Eu sinto falta de correr.

Zoro nos surpreendeu por compartilhar uma informação sua. Desde que o breu tomou a escola, ele sempre ficava distante.

— Também sinto falta do cheiro de incenso no dojô.

— Você pratica uma arte marcial? — Perguntei.

— Meu pai é dono desse dojô, eu estudo kendô.

— Isso explica porque você é forte. — Usopp falou o que todos pensavam. Zoro ficou sem graça. — Eu sinto falta de importunar uma menina...

— Como assim? — Luffy perguntou num tom diferente que ele usava. Parecia meio alterado.

— Ela tá doente, conto mentiras pra ela.

— Ela tá doente e você conta mentiras pra ela? — Disse achando um absurdo. — Eu nunca ia esperar isso de você!

Usopp riu. — São histórias na verdade, ela fica feliz então acho que faz bem.

— Hum... — Murmurei. — Você está flertando com ela, Usopp? É isso? Usopp galanteador, por essa não esperava também.

Eu e Zoro demos risadinhas, mas Luffy ficou quieto. Aliás, ele ficou finalmente quieto depois que Usopp começou a falar.

— Não. Eu sou gay.

— O quê?! — Dissemos em uníssono, dessa vez até Luffy abriu a boca.

— Quase ninguém sabe, mas como é para compartilharmos informações, já estou pondo em prática.

— Aposto que Zoro já matou alguém!! — Luffy voltou a ser pilhado.

Zoro grunhiu. — Por que acha isso?

— Já se olhou no espelho?

Comecei a rir com essa resposta de Luffy. — Luffy, você tá de parabéns! — Levantei o polegar e ele me respondeu com um também. Zoro continuava a grunhir.

— Sanji, você não disse nada sobre você. — Usopp me pegou com essa pergunta e, sem pensar duas vezes, arremessou a lanterna para mim. — Você começa com o relato.

Eu peguei a lanterna morna por conta de ter ficado o tempo todo ligada e envolvida pelas mãos de Usopp. Pensei em como começar e resolvi ser direto. — Eu não sou amado pelo meu pai, porque não consegui ser incrível.

— Você me é bastante incrível na cozinha.

Zoro falou com sua voz rouca inesperadamente. Eu pisquei meus olhos e em vez de continuar a iluminar meu rosto, mirei nele. — Como sabe que sou eu quem cozinho?

Eu costumava deixar a comida dele no forno. Ele não me via fazendo, talvez os meninos haviam dito.

— Uma vez estava andando na escola enquanto todos dormiam, mas encontrei Luffy e conversamos.

— É verdade! Eu disse que era você — Luffy se referia a mim. — que preparava o rango.

Meus olhos estavam marejados, o tom da voz de Zoro interrompendo meu relato mostrava que ele sentiu a minha dificuldade em dizer isso.

— Obrigado, marimo.

Ele me deu um sorriso de lado.

— Tem mais alguma coisa, Sanji? — Usopp perguntou.

— Sim... Tipo, eu tenho 3 irmãos e nunca precisei de amigos... Mas faz anos que não os vejo desde a separação dos meus pais e desde então fiquei sozinho. Veja só, parece mentira, mas eu não tenho nenhum amigo.

Meus olhos voltaram a marejar, a lanterna tremia em minhas mãos. Com certeza estavam achando que eu era esquisito.

— Ótimo, acho que sou o próximo. — Disse Usopp e eu dei a lanterna a ele, logo o seu longo nariz foi iluminado com mais nitidez. — Meu pai deixou minha mãe e eu.

Eu ouvi isso e não pude deixar de me lembrar do divórcio dos meus pais. De como foi difícil para os dois e para os filhos. Meus irmãos amavam minha mãe tanto quanto eu. Várias vezes acalentava Yonji durante as noites, ele chorava porque estava numa escolha de Sofia, não sabia se escolhia papai ou mamãe para viver ao lado. Acredito que eu fui o que menos sofreu, eu já sabia com quem ficar, não haviam dúvidas.

— Mas não tenho raiva dele... Aliás, nem minha mãe. Meu pai é um cara inteligente e ele viajou pra muito longe só pra pôr em prática uma teoria dele. Mas ele não voltou mais, acho que já morreu.

— Mas pra você dizer isso, você tem que sentir algo, certo? — Disse.

— É porque, por mais que eu tenha visto minha mãe passando por dificuldades, eu penso também em largar ela.

— Usopp, você é mau... — Censurou Luffy, apertando seus olhos escuros.

— Pois é! É isso que estou dizendo! É algo errado, sou um crápula! E então suprimo esse sentimento dentro de mim.

— Talvez não seja "largar a mãe", talvez você só queira sair numa jornada. — Disse Zoro, seus braços continuavam cruzados.

Usopp ponderou o que ouviu. — O que você disse faz sentido.

— Nós temos mania de pensar o pior num ponto de vista. — Continuou Zoro. — Ter visto sua mãe sofrer fez com que esse desejo virasse algo ruim.

Usopp ficou quieto, refletindo.

— Passa pra mim!! — Pediu Luffy.

Usopp acordou com o seu pedido. — Ah, antes de passar ainda tenho mais alguma coisa a dizer. — Usopp passou a me encarar, embora eu estivesse pouco iluminado. — Eu não tenho amigos.

Claro! Usopp sofria bullying até começarem a lhe respeitar por ser inteligente.

— As pessoas ao meu redor só querem saber de letras. — Ele disse.

— Como assim? — Eu e Luffy falamos em uníssono.

— Se é a letra a), b), c), d), e)...

Começamos a rir com a resposta e os gestos engraçados que Usopp fazia. Ele passou a lanterna para Luffy.

— Eu perdi meu irmão mais velho num acidente e também não tenho amigos. Não sei o motivo, me acho normal. Sou até bem simpático.

Luffy terminou de falar e passou para Zoro. Ficamos pasmos por ele ter sorrido o relato inteiro.

— Ah, me lembrei! Eu também virei- quer dizer, eu também sou gay.

Voltou a oferecer a lanterna para Zoro.

Zoro pegou a lanterna fazendo um meneado com a cabeça como forma de agradecimento. — Bem... — Alisou a nuca com a mão. — Essa deve ser a primeira vez que falo sobre o que sinto com alguém... Talvez porque não sinto nada. A única pessoa que passo as horas é o meu pai, porque não converso com mais ninguém. Vocês devem estar me achando esquisito... Mas é isso, não consigo ter interesse pelas pessoas. Ninguém morreu ou se distanciou, simplesmente não há nada surpreendente por trás de mim.

E pensar que eu achei que seria o único esquisito. Mas agora que os relatos acabaram, concluí que todos nós somos esquisitos.

— O problema talvez não é você. — Disse. — O problema são as pessoas, talvez você ainda não conheceu as certas.

Zoro me deu um sorriso dócil, eu realmente não conhecia aquele brutamonte e um desejo profundo de querer conhecê-lo tomou meu âmago.

— Usopp, acabou, descobrimos que somos quatro losers. — Comuniquei ao Usopp o que poderia ser algo em comum em nós quatro.

— Sim, você está certo, Sanji. Antes de terminar... Vocês se sentem bem tendo nenhum amigo?

Nós nos entreolhamos e respondemos no mesmo tempo: — Não.

— Vocês desejaram muito por uma amizade?

— Sim.

— Então, por isso que estão aqui.

Nós três piscamos os olhos. — Estamos aqui para sermos amigos um do outro?

— Aparentemente sim.

— Usopp, que teoria mais furada! — Eu me queixei.

— Eu gostei muito, Usopp. — Disse Luffy empolgado.

Usopp soltou um suspiro e deixou o peso do corpo nos seus braços com as palmas das mãos no chão. — Tudo que imaginamos pode ser real, é o que diz Willy Karen. Há pelo mundo histórias sobre almas gêmeas como o fio vermelho ou encontrar seu amante em todas as reencarnações. É só um palpite. O breu deve ser aquilo que nos bloqueia para sermos felizes.

Bufei com essa conclusão. — Ótimo, como é que a gente ainda está aqui, então?

— Devo estar mesmo errado. — Usopp se levantou. — Agora que estamos em 4, que tal darmos uma tour na escola?

A escola estava um breu por ser noite. — o noite do breu. Usopp usava a lanterna para iluminar o caminho. Eu estava frustrado e não parava de pensar que a comida estava acabando.

— Relaxa. — Disse Zoro ao meu lado, ele estava com o sorriso dócil nos lábios. De repente quis ser seu amigo.

Passamos em um monte de cômodos, mas paramos no clube de teatro, haviam máscaras e Luffy usou uma de gorila que fez Usopp, o todo sério, gritar de susto. Nesse momento pensamos que era possível que aquele narigudo fosse um ótimo contador de histórias. Aliás, a conclusão da sua teoria me pareceu um monte de baboseira mal contada, de repente Usopp não fosse tão bom em mentir.

Saímos correndo pelo corredor vestidos com fantasias, fazíamos o nosso pequeno carnaval que ganhou um upgrade quando passamos no clube de música e roubamos alguns instrumentos. Zoro pegou dois pratos e saiu batendo corredor afora, Usopp pegou um instrumento de sopro, Luffy um violino que ele usava mais pra bater em Usopp, eu peguei um violão e era o único que sabia tocar alguma coisa.

Estávamos fazendo uma bagunça na escola. Quando o breu surgiu, ficamos focados sobre como desvendar esse mistério. Mas agora parecia que estávamos numa ciranda de mãos dadas como aquela obra do Matisse.

Registramos em vídeos a nossa "revolução" com as câmeras que pegamos no clube de audiovisual. Zoro se lembrou que no quarto do zelador haviam latas de tintas e descemos tudo só para buscá-las. Começamos a pichar a escola com palavras de baixo calão, dizendo que a odiávamos e que preferíamos dar o cu.

Terminamos no terraço em pé diante de uma fogueira. As fantasias, os instrumentos, a dor... O fogo crepitava tudo e subia uma fumaça para o breu.

No outro dia, um homem velho com um macacão e galochas nos pés, um logo da escola no bolso do peito, nos acordaria perguntando por que estávamos no quarto do zelador.