Alfa

Capítulo Único


As vozes de todos os convidados daquele maldito jantar ecoavam em minha mente. Fechei os olhos e viajei até a mais distante lembrança. Aqueles dias esquecidos, logo, passavam como um filme.

Estônia, março de 1995.

Os primeiros raios de luz invadiam a escura e úmida cela. Era meu primeiro dia em um instituto psiquiátrico cujo nome nunca soube. Meu pai – e único familiar - chegou a dizer que esta internação seria breve e apenas preventiva, devido ao meu último surto psicótico, mas eu sabia que ficaria ali por muito tempo. Era só mais uma das formas que ele criou para diminuir os custos da “família”.

Ouvi um barulho de ferro sendo arrastado. Era o pesado portão que garantia que eu não pudesse fugir. Um homem alto, vestido com um jaleco impecavelmente branco entrou e se abaixou a meu lado.

— Está acordada? — Segurou em meus cabelos fazendo-me levantar a cabeça e depois soltou sem que eu tivesse como impedir uma pancada contra o chão. Aquilo me daria uma bela dor de cabeça mais tarde.

— Quem é você? — Fui obrigada a me sentar quando senti o sangue escorrer pelo meu rosto. Olhei em volta e vi uma rachadura no chão que deveria ser a responsável pelo pequeno corte em minha testa.

— Serei o médico responsável por você aqui, Leena. Pode me chamar de Dr. Pavlov. — Respondeu, sorrindo. — Para o seu próprio bem, espero que não seja muito... Sensível à dor.

O que? Do que ele está falando? O que estes imbecis pensam que vão fazer?

— O que vocês querem comigo? — Tentei parecer indiferente.

— Muito simples, minha cara. — Sentou-se no chão, ainda próximo de mim, como um pai faz quando quer contar uma história ao filho nos filmes. — O hospício é apenas uma fachada. Na verdade, damos uma quantia em dinheiro mensalmente para a família durante o período em que os “pacientes” — fez aspas no ar — ficam aqui.

— Para quê?

— Experiências médicas em cobaias vivas.

Não consegui responder. Estava chocada. Não seria humana se não ficasse horrorizada ao saber que seria submetida a tais condições.

— Meu pai sabe disso? — Não que eu tivesse uma boa relação com ele, ao contrário, mas nunca pensei que meu único parente vivo pudesse me mandar para um lugar como este.

— Se ele leu o contrato, sabe. — Será que ele assinaria alguma coisa relacionada a dinheiro sem ter certeza que sairia ganhando? Será que me deixaria sofrer?

Dr. Pavlov se retirou e eu então tive tempo de processar as informações que acabara de receber. Provavelmente as experiências não demorariam a começar.

Levantei-me e fui em direção à pequena janela pela qual a única fonte de claridade podia entrar. Fiquei em pé sobre a cama e pude ver o que havia lá fora. Ainda deveria ser de manhã, já que o sol não havia chegado ao ápice. O manicômio era uma grande e construção de pedra — talvez uma antiga prisão, devido às celas e grades, — localizada em uma floresta, longe da civilização e de olhos curiosos que pudessem acabar com qualquer plano ilegal.

Caminhei até o outro lado e, por entre as barras de metal, vi uma cela vazia frente a minha e um corredor que se estendia por muitos metros.

O dia todo se passou assim. Vi funcionários levando algumas pessoas para fora do cárcere e as trazendo, arrastadas e, possivelmente, anestesiadas. Todas elas com roupas que já foram tão brancas quanto as minhas, porém, agora, estavam molhadas pelo sangue quente que escorria sobre aquele que já havia secado. Ninguém, sequer, tocou em minha cela.

À noite, quando eu achei que o silêncio poderia ser ainda maior, passei horas acordada, ouvindo gemidos e gritos de socorro daqueles que passaram o dia sedados e acordavam com ratos mordiscando sua pele ferida.

Na segunda manhã de minha estadia foram me buscar. Atravessamos várias alas de prisioneiros até chegarmos a uma sala branca e bem iluminada. Fui amarrada a uma maca e vi Dr. Pavlov fazer um pequeno corte em meu abdômen. Eu comecei a gritar — era desesperador sentir aquele bisturi rasgando minha pele — e, só assim, me deram uma anestesia.

Acordei algumas horas depois, já na minha cela. Era tarde. Senti uma forte dor e automaticamente levei minha mão até a incisão. Só assim notei a presença do meu médico responsável.

— O que fizeram comigo? — Questionei receosa.

— Apenas retiramos algumas amostras. — Respondeu friamente.

Calei-me. Aquela conversa não levaria a nada e, mais perguntas, só serviriam para me perturbar.

No terceiro dia a história se repetiu: fizeram minha remoção da enxovia, fui levada para a mesma sala e, aquilo que eu chamava de “seção de tortura para fins médicos” começou.

— Hoje você não terá anestesia, Leena. — Disse calmamente o Dr. Pavlov.

— Por quê? — Pronunciei com as poucas forças que tinha devido aos vários tapas e chutes que havia levado de manhã, quando o diretor Tamm me visitou.

— Porque... — Pavlov sorriu. — a anestesia tira toda a graça!

Logo que terminou a frase, ele me virou de costas, amarrou-me na cama e inseriu um bisturi em minha nuca. Em seguida arrastou-o para baixo, fazendo uma fenda. Eu gritava o máximo que podia, mesmo sabendo que não faria diferença.

O vi pegar uma placa quadrada de metal com cerca de cinco centímetros de lado e, vagarosamente, colocar no corte. Senti o calor de meu próprio sangue e o som da minha voz foi se esvaindo. A dor piorou muito antes de começar a melhorar. E, por culpa dela, desmaiei.

— Será que ela está viva?

— Se não estivesse já teria sido jogada no depósito.

Acordei na quarta tarde com dois funcionários me dando leves chutes. Coloquei a mão na nuca e senti o metal sob a cútis costurada. Ao se darem conta de que eu havia despertado, os homens foram para fora.

Arrastei-me até as grades e chamei um dos loiros, que ainda não tinha saído do recinto. Ele foi até mim e chacoalhou o portão de ferro de modo a me afastar.

— O que quer?

— Estou com fome. — Supliquei. Acho que não cheguei a comer sequer uma vez durante a minha internação. Só me mantive viva devido ao que havia atrás de um muro baixo em minha cela: um vaso sanitário e uma pia imunda, da qual eu conseguia água.

— Vou lhe trazer pão, espere. — Ele respondeu, se afastando.

Não demorou muito para que voltasse. Comi lentamente, saboreando cada migalha, já que poderia ser a última. Durante este tempo fiquei pensando naquilo que vinha sofrendo, e decidi que iria fugir. E faria o que fosse preciso para realizar meu objetivo.

Quando finalmente tive forças para fazê-lo, caminhei por toda a cela, em busca de qualquer coisa que pudesse me ajudar. Olhei o corredor e chequei se havia alguém. Fui até a janela e fiz o mesmo. Em seguida, abaixei-me e passei as mãos no chão, a procura daquele pedaço do piso que, poucos dias atrás, me feriu. Com pouco esforço o encontrei e guardei-o no pequenino bolso da camisola branca que vestia.

Fiquei ansiosa durante toda a manhã do quinto dia. Assim que saísse do cárcere, daria início ao plano.

Poucos minutos depois, o próprio Pavlov chegou e me arrastou pelos mesmos corredores. Cautelosa, esperei ter certeza de que estava longe de todos e levei a mão até a minha “arma”. Ele se virou quando eu parei de andar e, num movimento rápido, passei um dos cantos cortantes do piso em sua garganta. Ele caiu no chão. Dei mais alguns golpes para ter certeza, mas sabia que meu primeiro assassinato estava concluído.

Corri o mais rápido que pude e matei todos os poucos que ousaram entrar em meu caminho. Cada homicídio me deixava mais fria, fazendo-me ansiar por mais uma jugular rompida.

Cheguei até o pátio, onde pude escapar por um buraco na cerca dos fundos. Aparentemente, eles confiavam tanto na loucura de seus pacientes — e nos seus funcionários — que nem se deram ao trabalho de consertá-la.

Não parei um segundo se quer até avistar a cidade. Já não podia me dar ao luxo do cansaço. Fui até um ponto de ônibus turísticos e entrei no compartimento de bagagens de um deles, sem nem procurar saber para onde ia.

A viagem demorou menos do que eu esperava. Vi a porta se movendo e me escondi, esperando o primeiro descuido do motorista para que pudesse sair. Esgueirei-me por entre as malas que ainda restavam e fui, o mais rápido que pude para o centro do município.

Em um beco escuro, peguei o pedaço de piso ensanguentado e cortei minha nuca. A placa de metal praticamente saiu sozinha enquanto eu refletia sobre grande erro que havia cometido.

Ao constatar a rápida perda de sangue, fui para a rua a procura de uma drogaria. Antes de encontrar, uma mulher me chamou:

— Menina! O que aconteceu? Deixe-me ajudar. — Pareceu preocupada.

Aproveitando a minha aparência infantil, fiz cara de inocente.

— Pode me levar a uma farmácia?

— Vamos, vamos. Entre no carro. — Falou enquanto destrancava o automóvel.

Eu acho que perdi bastante sangue, já que somente me lembro de fechar os olhos, antes de a moça dar partida, e abri-los num quarto branco e iluminado de hospital.

— Não! Eu tenho que ir embora! — Berrei.

— Calma! Fique tranquila! Está tudo bem. — Respirou fundo. — Você tem o telefone dos seus pais para que venham buscá-la?

— Não. Eu não tenho pais. — Ela ficou surpresa.

Estava pronta para o interrogatório começar quando ouço três batidas na porta. A senhora se levantou e abriu.

Dois homens de branco entraram. Um deles foi até a minha bolsa de soro e injetou um líquido amarelado.

— Logo que seu pai foi informado sobre sua fuga, nos contatou para que pudesse ser levada a outra clínica, senhorita Klammer.

Senti meus olhos se abrirem até quase serem jogados para fora das órbitas. Me descobriram!

Sabia que não demoraria, porém, jamais imaginei que fosse em tão pouco tempo. Tentei levantar, desejei desaparecer com todas as forças, entretanto cada movimento só me deixava mais sonolenta, até que tudo se transformou em uma tela preta.

Despertei vestida com uma camisa de força levemente amarelada pelo tempo. Notei o movimento e vi que estava em um veículo. Logo ele parou. Um dos enfermeiros foi até a porta e me ajudou a sair.

Passei por um longo caminho, cercado de grandes jardins. No final dele, uma construção antiga, destas que se parecem com castelos. Velozmente, dei-me conta de que era arriscado demais tentar fugir com os braços presos e ainda atordoada. O único jeito era cooperar.

Cada centímetro avançado apenas confirmava que estava enlouquecendo. Ouvi vozes em minha cabeça. “Fuja! Mate-os! Mate todos eles!”. Subi alguns degraus que levavam a porta da frente. Acima dela, letras de metal envelhecidas indicavam: Instituto Saarne.

Engoli seco. A passagem foi aberta e, na escuridão daquela sala, contemplei a minha pouca sanidade desaparecer.

Um toque me fez emergir daquele mar de recordações. Virei-me suavemente à direita e me deparei com o olhar alegre da inútil que me adotara dois dias atrás. “Vamos lá! É hora de voltar à farsa, Esther.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.