“Se você tivesse chegado antes, eu não teria notado. Se demorasse um pouco mais, eu não teria esperado. Você anda acertando muita coisa, mesmo sem perceber. Você tem me ganhado nos detalhes e aposto que nem desconfia. Mas já que você chegou no momento certo, vou te pedir que fique. Mesmo que o futuro seja de incertezas, mesmo que não haja nada duradouro prescrito pra gente. Esse é um pedido egoísta, porque na verdade eu sei que se nada der realmente certo, vou ficar sem chão. Mas, por outro lado, posso te fazer feliz também. É um risco. Eu pulo se você me der a mão!”

(Caio Fernando Abreu)

Era mais uma noite de Grand Finale do the GazettE depois de uma longa turnê pelo Japão que eu não colocaria entre as dez melhores e depois de um dia estressante que eu desejava loucamente que acabasse...

Eu não estava “no clima”, então, depois de vestir o figurino e me maquiar, fui me refugiar em um camarim desocupado e silencioso, invocando toda a força do Uruha pra que em hipótese alguma o Kouyou estragasse o show daquela noite...

- Kouyou? – a voz de Sereny chegou aos meus ouvidos e eu ergui o rosto para o espelho diante de mim para encarar seu reflexo, o movimento de levar o copo à boca parado no meio do caminho. – O que está fazendo aqui sozinho?

- Estou me acalmando – respondi, virando todo o conteúdo do copo e me servindo de uma nova dose de vinho.

– Ah... É como você chama agora? – ela perguntou, sarcástica. – Beber escondido parece muito vulgar?

– Não enche! – virei o copo na boca novamente, de uma vez só, sem desviar os olhos dela.

– Eu “encho” sim! – ela se aproximou e afastou a garrafa de mim.

– Vai ser assistente pessoal do the GazettE e me deixa em paz hoje, tá? – estendi o braço para a garrafa e Sereny se afastou dois passos pra trás, se colocando fora do meu alcance.

– Eu estou sendo assistente pessoal do the GazettE! – ela me respondeu categoricamente. – Isso também tem a ver com fazer você parar de beber quando está começando a exagerar...

– É... É... Muito lindo! Vai ser politicamente correta bem longe daqui por hoje! Yuu que gosta de você bancando a mamãe dele, não eu! Então, vai atrás dele e me devolve a garrafa agora! Enquanto eu ainda estou sendo educado com você, Sereny!

– Você fica desprezível bêbado! – ela sibilou e eu ri, sarcasticamente.

– Todos ficam, amor! Ou se esqueceu?

– Não é uma coisa que se esqueça...

– Ótimo! Agora... A garrafa – pedi, começando a perder a paciência.

Sereny me encarou com desprezo e jogou a garrafa no chão, partindo–a em mil pedaços e espalhando todo o seu conteúdo como uma grande mancha de sangue.

Eu me levantei da cadeira num salto e andei até ela, que ainda me encarava com ferocidade. Não a olhava diferente.

– Sabe que isso não vai me impedir, não sabe? Tem centenas de garrafas nesta sala e isso pra mim!

– Tem razão! Isso não pode te impedir! Mas eu cheguei a acreditar que o fato de que eu me preocupo pudesse!

– Não pode! Isso não é um dos seus livros! as coisas acontecem como você quer! O que você quer fazer diferença!

– Aqui não? – ela me desafiou.

– Nenhuma – respondi, pausadamente, com uma raiva tão carregada de maldade que eu só queria feri–la ou que ela me ferisse profundamente, mesmo que fosse me arrepender depois.

– Você está bêbado... – ela me deu as costas, mas segurei seu braço, impedindo–a de sair.

– Tem coisas muito piores do que estar bêbado... – ela se soltou de minha mão, sem me encarar.

– Espero que faça um bom show, Uruha–san!

– Como? Se você fez a gentileza de estragar a minha noite? – mas ela não me respondeu, apenas saiu e fechou a porta, contra a qual eu atirei o copo em minha mão com fúria.

Saí do camarim apenas para ir para o palco. Sereny não me encarava e essa seria a primeira vez, desde que começamos a namorar, que eu entraria no palco sem um beijo dela, sem um olhar, sem tê–la do meu lado, na coxia, com seus olhos fixos em mim como se estivesse hipnotizada... E isso não ajudou em nada pra melhorar meu humor...

Meus companheiros de banda não me fizeram nenhuma pergunta quando me viram... Eles me conheciam bem de mau humor e Sereny devia ter lhes falado sobre meu estado...

Só me concentrava pra não errar no meio das músicas... Era minha única preocupação naquele momento e nela eu foquei tudo que tinha em minha mente... A música sempre conseguia me fazer recuperar os sentidos e me acalmar... Infelizmente, nem sempre me ajudava a tempo...

Ruki fez mais um de seus discursos que fazia todos na plateia, no palco e no backstage chorar (e ele estava ficando melhor nisso a cada ano...) e nós saímos do palco. Meus companheiros de banda foram recebidos com beijos e abraços por Sereny e eu senti que a fúria tinha dado lugar a um dos sentimentos que eu menos gostava de sentir: remorso!

Fomos os dois juntos para o estacionamento, como se estivéssemos indo para carros diferentes, como estranhos, em completo silêncio e ela entrou decidida no lado do motorista e ligou o motor para guiar para casa.

– Ny... Aquilo tudo que eu falei antes do show... – comecei, sem saber exatamente o que estava fazendo, mas sabendo que de alguma forma teria de começar. – Gomenasai...

– É... Também peço desculpas por ter estragado sua noite – ela respondeu, irônica.

– Você não estragou nada... Eu estava sendo idiota... Gomen...

Ela não disse mais nada até chegarmos em casa. Eu só queria consertar tudo, mas a cada segundo que passava tornava essa tarefa mais e mais complicada... Eu não tinha dito coisas das quais me orgulhava...

– Ny... – segurei–a pelos ombros, sentindo–a resistir ao desejo de me afastar.

– Kouyou, foi um dia longo e cansativo e eu só quero que ele acabe de uma vez, tudo bem? – ela caminhou para o quarto, arrastando os pés e eu a segui.

– Depois de nos trocarmos, deitamos na cama e ela me deu as costas. Eu realmente preferia que ela fosse o tipo de mulher que me colocaria pra dormir no sofá do que ter de dividir a cama com todo o peso da culpa. Parecia que tinha crescido uma muralha entre nós dois.

– Você sempre diz que não devemos dormir brigados... – argumentei.

– Não estamos brigados... Você estava de mau humor e bêbado... E eu entendo perfeitamente que na hora não queria realmente dizer aquelas coisas...

– Mas ainda assim, não quer olhar pra mim... – ela suspirou e se virou de frente, tentando sorrir minimamente. – Eu juro que preferia vê–la gritando e atirando coisas em mim do que fazendo esse esforço enorme pra me olhar e sorrir...

– Doeria menos gritar, com certeza... Mas... Eu não consigo ser assim...

– E isso só torna o que eu fiz pior...

– Todos nós temos dias ruins, Kouyou...

– Não arranje desculpas para o que eu fiz... – implorei.

– Não estou arranjando desculpas! Só que eu não vou ser hipócrita e condená–lo por uma coisa que você fez e esquecer de todo o resto!

Puxei–a para os meus braços, apertando–a contra meu peito e beijando–lhe o topo da cabeça.

– Também não força a amizade, Kou... – ela riu, me afastando. Eu também ri, mas não gostava de não tê–la em meus braços. – Olha, eu sabia que você era assim e você em momento algum me enganou dizendo que tudo seria um conto de fadas! Eu fiz a minha escolha!

– Mas...

– Não tem “mas”... É basicamente isso!

– Não é o melhor jeito de definir seu namoro quando você diz “não é nenhum conto de fadas”... – ela riu.

– Bom... Não sei se isso está realmente certo... Eu me senti em “A Bela e a Fera” hoje – eu fiz uma careta e ela afagou minha face. Segurei sua mão na minha.

– Eu preciso que não desista de mim... – tornei a me aproximar dela. – Porque o que eu disse hoje é uma mentira! Você se preocupar comigo faz sim toda a diferença!

– Eu sei... – ela sorriu.

– Eu quero... Eu preciso viver o resto da minha vida ao seu lado, Sereny!

– Eu também sei disso! – ela tornou a afagar minha face, mas seu sorriso foi se apagando aos poucos.

– Mas... – tornei a instigá–la.

– Mas eu não vou expor alguém que não tenha feito a mesma escolha que eu fiz a isso!

Eu demorei um momento pra processar o que ela tinha dito.

– Está dizendo que...

– Que eu não vou expor uma criança inocente a esse tipo de situação se eu... Se eu tiver feito uma escolha errada... – ela terminou, penosamente.

– Não é todo dia que sua namorada diz que considera você uma possível escolha errada... – tentei brincar, mas o que ela tinha acabado de dizer tinha sido perturbador demais pra mim...

– Bom, também não é todo dia que seu namorado diz “isso não é um dos seus livros”... – ela respondeu, parecendo tão perturbada quanto eu para brincar.

– Sabia que tinha ficado brava! Eu sei que foi cruel o que eu disse, mas... Eu mereci ouvir isso? Quer dizer... Você sabe que eu sempre quis...

– Kouyou, isso não foi um... Jeito de me vingar ou coisa parecida... Eu estou falando sério!

Encarei–a pensativo e refleti sobre o que tinha ouvido. Eu ainda estava aprendendo a lidar com a maneira que Sereny me fazia pensar sobre certas coisas.

– Entendo... Entendo... Acho que você tem razão... De certa forma...

Ela se aproximou, hesitante e eu a prendi novamente em meus braços.

– Não me entenda mal, Kou... Tenho certeza de que você será um ótimo pai... Só o que eu estou dizendo é que...

– Eu entendi sim, querida... – respondi sério, sem deixá–la terminar sua frase, porque ela parecia realmente aflita. – É só que eu... Nunca tinha... Olhado as coisas por esse ângulo... E isso me assusta um pouco...

– Se você for pensar... Tudo isso assusta um pouco, não é mesmo?

– O que está me dizendo? Que a grande Sereny tem medo de ser mãe? – eu dei uma risada mais bem humorada.

– Não... Não é... Medo... Mas é... Uma responsabilidade extrema, não acha?

– Você tem toda razão... Não é uma coisa que se possa fazer levianamente... – tornei a rir agora que a conversa tinha se tornado mais leve.

– É por isso que... Bom... Por isso que eu pensei... Que talvez não fosse...

– É melhor esperar pra ter certeza de que a hora é boa, não é?

– Isso! – ela me sorriu, agradecida. Sua alegria conseguiu tranquilizar completamente meu coração aflito.

Sereny tinha acabado com a minha solidão com toda aquela ternura e eu ainda ousava entristecê–la, ousava fazê–la duvidar sobre nós dois...

Fiquei olhando–a dormir em meus braços por um longo tempo, sem me sentir cansado... Estava muito claro agora que todos os meus esforços pra fazê–la feliz tinham de se concentrar em fazê–la nunca deixar de me amar... Porque se ela deixasse de me amar algum dia... Se algum dia eu fizesse algo que fosse a gota d’água pra ela... A solidão que me alcançaria seria pior do que qualquer outra que já tivesse conhecido...

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.