O resto da semana foi maravilhosamente bem. Me mudei de vez para o quarto do Ricardo, a Títilia foi junto. Empenhamo-nos, todas as tardes, para terminar o quadro que ele começou em sua cabana. Admito que não tivemos muito êxito. Ele conseguia se concentrar um máximo de 20 minutos antes que terminássemos enrolado um no outro, nus e satisfeitos, nos cobertores no chão. Também tive minha parcela de culpa nisso. Acho que esse quadro vai levar mais tempo que o previsto, mas, sinceramente, espero que demore.

Domingo chegou e, com ele, o meu jantar com o Animal. Ele insistiu que eu colocasse o vestido vermelho. Eu não queria, já que ele me traz algumas lembranças do dia desagradável em que encontrei o Jaime, mas o Ricardo é cabeça dura e disse que esse vestido é para ele e ele quer que eu use. Fazer o quê? Eu vesti ele. Sei que isso, possivelmente, vai me custar mais alguns chupões no pescoço. Ele faz jus ao seu apelido, animal. Nunca vi homem para gostar tanto assim de deixar marcas em mim. Ele jura que não faz de propósito, mas o idiota só faz onde sabe que a camisa não vai cobrir. Só falta fazer xixi em mim, como os cães, e me declamar como sua.

Acabei com minha maquiagem, coloquei uma jaqueta porque a noite está gelada e desci. O encontrei me esperando na sala. Ele fez uma cara como se eu tivesse tirado o fôlego dele e eu devo ter feito a mesma cara. O homem é um bronco, mas ele estava, simplesmente, magnífico. Ele vestia um terno bege com uma camisa preta sem gravata e aberta nos dois primeiros botões.

—Uau! –Ele suspirou.

—Digo o mesmo. Você está lindo.

—Linda é você, eu sou apenas um velho rabugento que você amansou.

—Não, você é um Animal que eu ainda estou domando e que precisa aprender alguns bons truques, como parar de deixar marcas no meu pescoço. Sabe quanta base eu gastei para encobrir os chupões?

—Eles ficaram lindos contra a sua pele.

—Vou começar a deixar em você para ver se você vai gostar.

—Eu gostaria disso. Exibo com orgulho o de ontem. –Ele falou, abrindo mais um botão da camisa e exibindo um chupão no seu peito. Quando fiz isso?

—Animal.

—Mas você adora. –Ele sussurrou no meu ouvido.

Eu não queria mais nada do que agarrá-lo e beijá-lo, mas se fizer isso, terei que refazer minha maquiagem e chegaremos tarde ao restaurante e eu estou faminta. Ao invés de dar espaço para meus instintos animais, que desconfio estou pegando por conviver com ele, me contentei em arrastá-lo pelo braço para o carro, onde o Moacir já estava esperando.

—Achei que o casal fofura nunca fosse sair. –Ele reclamou quando entramos.

—Não começa, Moacir. –O Ricardo reclamou.

—Para onde vamos? –Perguntei.

—Surpresa. Pisa fundo, Moacir. –O Ricardo instruiu.

—Você que manda, patrão.

O Moacir saiu com o carro e eu acenei para o João. Ele fez a gentileza de olhar a Titília para mim. Ele é um bom amigo, está, até mesmo, tomando mais intimidade e brincando com o Ricardo como eu e o Moacir fazemos. O Ricardo não está muito feliz e vive ameaçando mandá-lo embora, mas sei que, no fundo, o João o conquistou como um amigo.

Depois de uma meia hora, chegamos a um restaurante. Lugar agradável, não era como os botecos que estou acostumada a ir, mas nada muito chique que eu precise de um extremo senso de etiqueta. Acho que posso gostar do lugar. O Moacir se despediu de nós e foi para a casa. Eu e o Ricardo escolhemos uma mesa mais afastada da agitação da entrada. Era um bom lugar, tinha uma música tocando ao fundo e uma janela com vista para a rua. Fizemos nossos pedidos e caímos numa conversa suave.

—Espero que goste do lugar. –O Ricardo comentou.

—Eu gosto. Você costumava vir aqui antes?

—Primeira vez.

Eu o olhei com confusão e ele se apressou em explicar:

—Eu pedi para o Moacir pesquisar um lugar bom para mim. Ele me trouxe algumas opções, de todas, essa eu achei a melhor. Espero que tenha acertado.

—Acho que acertou, mas só teremos certeza quando a comida chegar.

—Isso é.

—Você vai na festa do Fabinho mês que vem?

—Se você quiser, eu irei.

—Não foi o que eu perguntei. Você quer ir?

—Quero. Eu adoro os seus sobrinhos. O Fabinho é um ótimo garoto.

—Você adora crianças, não é?

—Gosto. Eu sempre sonhei em ser pai, ter uma grande família, mas não deu certo.

—E nunca pensou em se tornar pai de novo?

—Todos os dias, mas a resposta que veio em minha mente foi sempre não.

—Por quê? Você não tinha o sonho de se tornar pai?

—Foi o meu maior sonho, mas depois de tudo o que me aconteceu, não acho que posso mais criar uma criança. Já estou velho e não tenho certeza se terei cabeça para isso. Eu ainda tenho muitas feridas abertas, Sofia. Feridas que eu acho que nunca fecharão.

Ele tomou um gole de água e eu pude ver que ele estava segurando o choro. Não falei mais nada e deixei que ele continuasse ao seu tempo.

—Você pergunta isso por que deseja ser mãe? –Ele me perguntou, com certo receio.

—Pra ser sincera, eu nunca pensei na possibilidade de ser mãe.

—Se você diz isso por minha causa, não se preocupe. Por mais que eu goste de você e me doa fazer isso, não tiraria esse sonho de você. Se é o que realmente deseja, eu não ficarei no seu caminho para arrumar um bom homem para ser o pai dos seus filhos. Eu nunca poderia ser esse homem.

Dessa vez ele não conseguiu segurar e uma lagrima rolou do seu olho direito. Eu, rapidamente, a limpei com minha mão e segurei o seu rosto para me olhar.

—O que eu quero é você, Ricardo. Se você não quer mais filhos, eu não vou ter filhos. Serei feliz em ser apenas a tia que estraga os sobrinhos.

—Eu acho que eu te amo. –Ele confessou e eu congelei.

Tá, admito que tenho fortes sentimentos por ele, mas amor? Eu não sei se o amo. Eu nunca amei ninguém, mas ele desperta o melhor e o pior em mim. Eu gosto dele, das qualidades e dos defeitos, mesmo quando ele é um mal humorado insuportável. Eu também acho que o amo.

—Eu também acho que te amo.

—Não sei como pode amar alguém como eu, mas serei eternamente grato por isso.

Ele estendeu a mão e segurou a minha entre as deles. Não falamos muito mais depois disso, mas aproveitamos o momento para dizer, com o olhar, o que as palavras não poderiam expressar. É, realmente, como eu poderia não me apaixonar por esse cara? Ele pode ser um Animal na frente de todos, mas, no fundo, ele é um doce de pessoa.

A partir daquele ponto a conversa fluiu melhor. Evitamos temas que pudessem causar dor. Falamos, basicamente, sobre a fazenda e planos para melhorar o lugar.

—Uma estufa não seria má ideia, Sofia.

—Você poderia criar plantas para a venda. Eu tinha uma amiga que investiu nesse negócio de orquídeas e ganhava uma boa grana. Pode ser um dinheiro a mais e até um passatempo.

—Podia tomar como um passatempo, não preciso de mais dinheiro.

—Me desculpa perguntar, mas como você mantêm tudo se não trabalha? Você sempre me pagou em dia e até com mais do que o acordado na carteira.

—Eu recebo uma generosa pensão da minha mulher e também tenho algum dinheiro no banco do seguro de vida que recebi pelo acidente. Eu optei por não trabalhar mais. Não podia fazer algo que me recordasse quem eu perdi. –Falou, com dor.

—Desculpe, eu não sabia disso.

—Não precisa se desculpar. Você não sabia, como disse, e é normal perguntar. Eu também deixo o Moacir se divertir apostando em ações. Isso também aumenta muito minha renda mensal. Eu não faço nada ilícito, como você achava. Sem plantações de maconha.

—Você não vai mesmo esquecer isso, não é?

—Nunca. E, se te deixar feliz, posso considerar a ideia da maconha, já que estou pensando na estufa. Podemos col...

—Puta que pariu! –Xinguei, ao ver meus velhos entrando no restaurante.

—Desculpa, foi uma piada. Sem maconha, só suas orquídeas.

—Não é isso. Meus pais acabaram de chegar. Estão vindo nessa direção. Disfarce e olhe para o casal vindo. –Falei, abaixando o máximo que eu conseguia na minha cadeira, sem ser suspeita.

O Ricardo, porém, não fez o que eu pedi e virou a cabeça quase como no filme no exorcista. Ele não é nem um pouco sutil.

—São seus pais?

—São.

—Chame-os para cá.

—E o que eu vou falar? Pai, mãe, conheçam o meu patrão e namorado. Tem certeza que quer enfrentar seus sogros hoje?

Ele engoliu em seco e perdeu um pouco de cor. Acho que a resposta é não.

—Acho melhor não, Sofia.

—Eu também acho melhor não. Eu não gostaria de ter que explicar para o meu pai, hoje, que o meu patrão se converteu em algo mais. Não tenho certeza se quero o seu Wagner fazendo uma cena no restaurante e te acusando de seduzir a filha dele.

—Eu também acho que não quero esse tipo de atenção.

Eu tentei me encolher na cadeira, mas os olhos de águia da minha mãe me viu e eu me lasquei.

—Sofia, menina, o que está fazendo aqui? E quem é esse? –Meu pai perguntou, com a sutileza de um elefante ao apontar para o Ricardo.

—Papai, mamãe, esse é o senhor Ricardo Bittencourt. Meu patrão. Chefe, minha mãe e meu pai, seu Wagner e dona Júlia.

O meu pai trocou um olhar com ele antes de apertarem a mão. Meus coroas nem esperaram o convite e se sentaram nas duas cadeiras que estavam sobrando. É, a noite vai ser estranha.

—Que patrão convida a empregada para um jantar? –Meu pai perguntou, desconfiado.

O Ricardo olhou para mim com terror estampado na cara e me suplicando, silenciosamente, para ajudá-lo.

—É que tivemos alguns compromissos na cidade, pai, e acabou ficando tarde para que eu preparasse o jantar e o senhor Bittencourt sugeriu, educadamente, que comêssemos algo fora.

—E por isso estão vestidos tão formais assim? Isso se parece com um encontro. –Minha mãe ajudou. Valeu mesmo, dona Júlia.

—Por favor, não interpretem mal, fomos resolver algumas papeladas que pediam uma certa formalidade em nossas vestimentas. –O Animal mentiu, descaradamente.

—Mesmo assim isso não explica esse restaurante que escolheram. Lugarzinho muito romântico para um jantar de negócios. –Meu pai reclamou.

—Papai, por favor. Será que podemos trocar o assunto e jantar em paz?

Ele olhou meio desconfiado para mim e para o Animal, mas concordou. A partir daí, eles começaram a contar, pela enésima vez, a história de como se conheceram ao som do Roberto Carlos e como minha mãe pegou uma rosa dele no cruzeiro. Triste mesmo foi ver meu pai arriscando umas notas de “Quero que vá tudo para o inferno” e levando o Ricardo para cantar junto. Eu mereço!

—Eu já volto. Preciso ir no banheiro. –Meu pai comunicou, antes de se levantar e ir para longe.

Minha mãe olhou, com um sorriso de psicopata, para mim e para o Ricardo antes de perguntar:

—Então, vocês dois estão juntos há quanto tempo?

Eu congelei e o Ricardo se engasgou com o vinho que estava tomando.

—Mãe...

—Você pode enganar a seu pai, mas não a mim. E outra, sua maquiagem está começando a sair com o seu suor e suas marcas de vampiro estão aparecendo no seu pescoço. Imagino que a marca do seu patrão seja de sua autoria. –Falou, apontando para o peito do Ricardo, onde tinha uma marca igual as minhas. Porra!

—Senhora, garanto que tenho as melhores intenções com sua filha. –O Ricardo disse, parecendo que estava de frente para um pelotão de fuzilamento.

—Espero que seja verdade. Mas você parece um pouco mais velho que os ex dela. Quantos anos você tem?

—Mãe!

—Quê? Se ele vai ser o meu genro, preciso conhecer o homem. Então, meu querido, quantos anos?

—49, senhora.

Minha mãe fez uma cara e podia ver ele fazendo as contas na cabeça. Eu achei que meu pai seria o interrogador, mas minha coroa está me saindo pior que a encomenda.

—16 anos de diferença... Não é muito, isso é bom. Seria estranho ter um genro da idade do meu marido, mas vamos rápido, ele vai voltar e não queremos assustar a fera antes de amansá-la primeiro e fazê-lo se acostumar com a ideia de que a filha está namorando o patrão dela. Profissão?

—Designer.

—Que isso faz, exatamente?

—Designer é a pessoa que desenha, projeta produtos antes que eles sejam fabricados.

—Isso é bom. Família?

—Nenhuma. Sou somente eu e agora, se sua filha me permitir, ela.

Oh! Isso foi fofo da parte dele em me considerar como família.

—Ela? Isso quer dizer que pretende casar?

—Mãe! –Agora eu fiquei vermelha com a pergunta. Casamento? Mal começamos a namorar...

—Futuramente, sim.

Tá, agora eu não sei o que pensar. Ele respondeu com tanta convicção que me deixou confusa. Ele realmente quer casar e comigo?

—Bom. Espero que não seja um mentiroso como o ex dela. Sabia que essa aqui já quase chegou a se casar?

E lá vai minha mãe falando sobre meu passado escuro para ele. Ainda bem que eu já discuti esse tema. Graças a Deus, meu pai voltou e minha mãe se calou. Essa noite não poderia ficar mais estranha!

Ainda ficamos mais um tempo no restaurante, até ficar muito tarde e nos despedirmos. Meu pai não pegou mais nada, mas minha mãe nos lançou um olhar acusador. Eu e o Ricardo pegamos um táxi para casa. Eu não poderia deixar de perguntar sobre aquele negócio do casamento. Isso ficou na minha cabeça o resto da noite e agora preciso saber se foi para se livrar da minha mãe que ele disse isso ou se ele realmente tem essas intenções.

—Ricardo?

—O que foi, Sofia?

—Você falou sério?

—Sobre?

—O casamento. Quando minha mãe perguntou e você disse que o faria, futuramente.

—Falei. Sofia, eu me casaria com você agora, se quisesse, mas acho que mataríamos algumas pessoas do coração e teríamos alguns comentários maldosos se fizéssemos isso, mas eu pretendo, futuramente, se você ainda me quiser.

Eu o abracei e o puxei para um beijo rápido antes de responder:

—Eu vou querer.

—Espero que ainda pense isso quando eu propor. Sei que não sou a pessoa mais fácil para conviver e pior ainda para se casar. De brinde, ainda sou perneta.

Ele tem o péssimo costume de se depreciar que me irrita, mas dessa vez vou levar na esportiva. Acho que seria feliz se me cassasse com o meu perneta rabugento.

Continua.