Admirável Mundo Novo

9 - Lembranças perdidas


9 – Lembranças perdidas



Manuela Saraiva – 01 de agosto de 1999.


Já faz quatro meses que Pâmela está no coma e alguns dias que eu não a via e nem Filipe. Sentia uma falta terrível deles. Eram os únicos que eu amava e perdê-los assim foi pura maldade comigo, mas agora eu tinha um objetivo, certo? Queria vingança por tanto sofrimento.


Deus era sempre assim quando se tratava da minha vida sentimental, maldoso, mas eu preferia não questioná-lo.

Perdi meus pais, amigos e agora estava na casa de estranhos. Pelo menos tinha um violão, certo?

Eu passava horas no quintal, sentada no chão, tocando qualquer melodia que me alegrasse. Eu também estava pensando sobre como e quando iria embora da casa de Rafael e Laura. Mesmo eles sendo tão legais comigo, eu não podia ficar ali pra sempre.

Mas aquele dia eu não sabia o que viria pra mim. Ou quem viria... Foi então que o vi cruzar a esquina. Estava cambaleando enquanto andava até ele cair perto do portão de casa. Fiquei com receio, mas acabei correndo para ajudá-lo.

– Você está bem? – ele respirava com dificuldade, mas mesmo assim conseguia sorrir – Ei, fala alguma coisa!

– Você está... Me e-esmagando – ele disse pausadamente, então percebi que eu estava completamente debruçada sobre ele.

– Desculpe! – segurei sua mão e o ajudei á andar até a calçada – Está passando mal? O que está acontecendo? Fala alguma coisa garoto!

– Você fala muito rápido, menina – ele respirou fundo – Eu estou bem. Isso sempre acontece – ele colocou a mão no bolso e então eu já pensei coisas ruins.

– O que você vai tirar daí? Já sei, você é um ladrão! Ou um assassino que quer me sequestrar! Mas você não vai conseguir porque eu sou esperta e rápida, ok? Já escapei de muita gente mesmo só tendo 14 anos! – me afastei dele.

– Isso é uma arma para você? – ele me mostrou uma...

– Asma? – olhei incrédula.

– Viu? Todo esse escândalo por causa de um refil e uma bombinha para asma – ele colocou o aparelhinho na boca e sugou o remédio com toda a sua força. Parecia milagroso, pois ele melhorou logo em seguida.

– Desculpe, é que eu pensei que...

– Fica tranquila – ele guardou o remédio novamente no mesmo lugar e voltou á olhar pra mim – Eu sou descuidado. Fico correndo e quando percebo já estou tendo essas crises. É meio estranho viver sozinho ou sem saber quem você é.

– Você usa drogas? – foi a primeira pergunta que me veio á mente. “Sou mesmo muito estúpida!”, pensei.

– Acho que quem usa é você! – ele riu – Não, não, eu sou doente e então se eu usasse já teria morrido. Fica tranquila ruivinha, tá tudo bem.

– Ruivinha? Para! Meu nome é Manuela Saraiva, ok?

– O meu é... Ah é Gabriel – ele disse com dificuldade.

Não se lembrava do seu nome?

– Na verdade eu não me lembro de nada. Só sei que esse é meu primeiro nome e que eu tenho de tomar esse remédio – ele apontou para o bolso – Desculpe, sou meio idiota às vezes – ele riu. Que tipo de garoto não se lembra da própria vida? Ele era divertido, meio lerdo, mas muito bonito, eu confesso. Olhos castanhos como a cor do seu cabelo e um olhar triste, cujo me atraiu muito.

– Você está babando quase... – ele gargalhou – Acorda menina!

– Ah? Eu? Pare de falar besteiras! – Droga eu estava mesmo olhando pra ele de um jeito que me entregava totalmente.

Ter ajudado Gabriel naquela hora me fez lembrar quando ajudei Pâmela com aquelas garotas nojentas da nossa escola. Todos que eu ajudava se tornavam meus amigos por um tempo, mas logo me deixavam. Seria assim também com aquele garoto?

– Gabriel! Como é bom te ver menino! – Laura saiu de casa e foi abraçá-lo. Eram amigos? – Está de volta á cidade?

– Claro! Como anda a minha casa? – eles riam como se fossem amigos de anos atrás.

– Ela está intacta! Eu e Rafael estivemos cuidando dela enquanto você estava fora! Conseguiu resolver seu problema?

– Infelizmente não. Parece que terei que viver com essas sequelas e rezar para que eu me lembre de tudo um dia.

– Ah sim! E quem esteve com você lá no Rio?

– Um médico me ajudou. Cuidou de mim e até me ofereceu um lugar para dormir durante aqueles dias. Foi bem bacana! E o Rio de Janeiro é demais – ele sorriu.

– Mesmo com tanta desgraça você ainda é feliz! Nunca muda mesmo! Ei vocês se conhecem? – ela olhou pra mim e depois para ele.

– Ah é ela me ajudou agora á pouco.

– Manuela é nossa hóspede por um tempo!

– Dias! Eu já disse que vou embora daqui. Só preciso organizar meus planos. Tenho contas á acertar com pessoas.

– Não acha que é muito nova pra sentir essas coisas? – Gabriel perguntou.

– E você tem quantos anos por acaso senhor “maduro”.

– Dezesseis e tenho mais cabeça do que você – ele sorriu. Laura o abraçou e o levou para dentro de casa. Passamos pelo corredor onde o calendário estava e então eu me dei conta de que dia era hoje. Um de agosto! Faltavam três dias para o meu aniversário. “

“Eu prometi que passaria meu aniversário com você...”, pensei em Pâmela e a tristeza bateu novamente á porta.

Eles ficaram lá conversando e rindo de idiotices que Gabriel dizia. Rafael e Laura pareciam mesmo ser amigos dele. Lucas também gostava dele, até o chamava de “irmãozão”.

Quem era ele? Que tipo de efeito ele tinha sobre as pessoas? E como não podia se lembrar de nada? Que doença ele tinha?

– E aí, não vai comer? – ele apareceu na minha frente com um prato de espaguete – Tá bem gostoso, sério! Mas se você não comer vai ser melhor, assim sobra mais pra mim! – ele riu. Por que ele tinha tanto em comum com o Filipe? Tinha de fazer piada com tudo e me fazer ficar sem graça, sempre? Que raiva desses homens!

– Então espero que você coma tudo e morra! – eu gritei e saí correndo da cozinha. Tranquei-me no quarto, me agarrei ao violão e comecei á chorar como uma garotinha indefesa. Que vergonha de mim!

...

Pâmela Guimarães – Realidade Alternativa. 03 de agosto de 1999.


Continuamos nos preparando para o festival enquanto os dias passavam. Eu estava tão feliz naquele mundo que não queria sair dali.


Não pensava mais na minha mãe, nem em Filipe e Manuela. Eu estava me tornando parte daquela ilusão, parecia estar me esquecendo de quem era. Eu só não sabia o porquê.

Continuei a ler tudo que Filipe escrevera no meu diário, mas já não sentia a mesma sensação de dor ou pena quando via o que ele passava.

– Olá pequena! Como está? – Brian apareceu no quarto com aquele sorriso maravilhoso.

– Ah estou aqui lendo meu diário, mas nem sinto tanta vontade sabe?

– Como assim?

– Eu o leio como antes, mas não sinto quase nada ao ver o que Filipe escreve aqui. Existem coisas que eu nem lembrava mais e... – ele ficou assustado e se aproximou de mim.

– Não se lembra? Como assim?

– Ah eu não estou mais lembrando sobre a minha vida, parece que eu esqueci quem fui antes de parar aqui. Mas nem sinto falta. Acho que este é o momento mais incrível da minha vida! – eu disse animada. Brian ficou furioso na hora – O que foi?

– Não percebe o que está dizendo? Você não pode continuar a gostar dessa vida Pâmela! Ou então você vai... – o que ele iria me dizer? Eu nunca saberei, pois Nicole e Raquel entraram no quarto naquele exato momento.

– Brian? Vem aqui – Nicole o chamou seriamente.

– Estou ocupado! Não vê que ela vai cometer o maior erro da... – ela se aproximou e o agarrou pela blusa.

– A culpa é toda sua! Se não estivesse sendo tão amável e gentil com ela, com certeza Pâmela iria embora daqui!

– Ah e você queria que eu fizesse o que? Tratasse a pequena como se não fosse nada? Eu sou a natureza do Filipe, não poderia ignorá-la nem que eu quisesse.

– Você é muito insuportável garoto!

– Mas eu sou bonito, e todas me amam – Brian riu.

– Cala a boca e vem comigo!

– Ei eu estou aqui tá? Expliquem-me o que está acontecendo! – Nicole e Brian continuaram a brigar enquanto Raquel sentou-se ao meu lado.

– Não podemos te dizer agora querida, mas se nossas suspeitas estiverem corretas, teremos que tirar você daqui. Querendo ou não.

– Nunca irão decidir por mim! Se eu quiser ficar aqui eu ficarei! Este mundo é meu não é? Eu o criei e ele é perfeito! Participaremos do festival de bandas, realizarei meu sonho e assim seremos amigos pra sempre! E... Eu poderei ficar com Brian, não é? – sorri levemente. Raquel não me respondeu, apenas suspirou e se dirigiu á porta.

– Você vai entender logo, só espero que não seja tarde pequena Pâmela – ela saiu do quarto e me deixou cada vez mais confusa com tudo.

...

Algumas horas depois – Realidade alternativa.

– Você não vai fazer mal á ela Nicole!

– Brian pare de falar e me escute! A culpa é nossa. Essa ilusão está indo longe demais! Temos que contar á ela o que vai acontecer se ela permanecer aqui.

– Não! A garota está feliz como nunca. Vai até realizar os sonhos de cantar num show, por que destruir isso agora?

– Juliana! Não percebe o que estamos criando? Criando um monstro. Logo não poderemos mais controlá-la e então ela vai mesmo se achar dona disto tudo! Não podemos perder a Pâmela desse jeito! Ela já não está mais se lembrando de nada e até o diário abandonou!

– Nós vamos contar! Mas que tal esperarmos o Festival de Bandas passar? É o sonho dela ser uma grande cantora então, vamos deixar que se realize. Assim que acabar, nós contamos tudo á Pâmela. Pode ser?

– Jimmy isso... Isso vai funcionar?

– Relaxa Nicole, nós vamos conseguir. Confie em mim.

– Sim, eu confio.


...


Manuela Saraiva – 03 de agosto de 1999.

Ainda estava trancada no quarto, agarrada ao violão. Parecia uma criança idiota e medrosa. O que estava acontecendo?

Meus pensamentos estavam confusos e eu só queria vingança. Só guardava coisas ruins dentro de mim. Como? Eu nunca fora assim, mas acho que ser rejeitada por Filipe depois de tanto sofrer me fizeram ser este lixo humano.

– Que se dane. Eu vou ter minha vingança – Eu estava louca. Mas planejava matar Pâmela de algum jeito. Como se eu a liberta-se e assim Filipe poderia se libertar também. Ele perceberia o quanto tempo perdeu ali. Toda a sua juventude e sonhos estavam ficando pra trás só pra cuidar dela. Eu estava com inveja, pois ninguém havia se importado comigo como ele fazia com ela.


“Vida injusta a sua Manuela”... Pensei.


– Ei, ruivinha abre a porta! – batidas na porta me fizeram voltar a atenção á voz que me chamava. Era o chato do Gabriel.

– O que você quer? Já comeu todo o espaguete? – ironizei.

– Ah não – ele riu – Bom, eu não consegui comer tudo e nem o Lucas – ele apontou para o menininho que sorria pra mim – E então ele passou a vez dele pra você! – Gabriel me deu o prato com macarrão – Sei que está com fome, já que passou a tarde toda trancada.

– Quem você pensa que é?

– Olha não quero discutir – ele caminhou e deixou a comida em cima da escrivaninha – Acho que você precisa conversar, mas faremos isso quando você estiver melhor. Ok?

– Não quero nada de você – Por que aquele menino me irritava tanto? Talvez eu tivesse raiva de tanta bondade que eu via nele.

– Ei Gabriel, podemos jogar vídeo game?

– Claro que sim, mas vamos pra minha casa. Consegui comprar um de segunda mão! Tá divino menino! – eles começaram a rir e caminharam para fora do quarto.

– Esperem! – gritei – Posso ir com vocês?

– Você joga vídeo game? Bom, já aviso que eu sou dono da casa e então sou o jogador um. E pode levar lencinhos, pois eu sempre faço todos chorarem – ele gargalhou.

– Chorar?

– Claro! Perdem todas! Sou demais cara – revirei os olhos em sinal de tédio.

– Que se dane, posso ir?

– Vamos lá ruivinha – ele tentou segurar na minha mão, mas eu a afastei dele.

– Não me toque! E meu nome é Manuela! Agora vamos! – tomei á frente deles com o violão nas mãos.

– Ela sempre foi assim?

– Não sei, eu a conheci há alguns dias. Mas acho que ela tem muito estilo! Não acha?

– Ah ela podia se vestir melhor. Até nós dois estamos mais na moda do que ela – ouvi os dois rindo de mim.

– Fiquem quietos vocês dois! – eles seguiram rindo de mim até chegarmos á casa de Gabriel. Era na mesma rua que a onde eu estava morando com Lucas.

Tudo sempre muito simples, mas aconchegante demais.

– Fiquem á vontade! – Gabriel abriu as janelas – Vou pegar algo para bebermos – Ele foi até a cozinha enquanto eu me sentei no sofá. Lucas já tratou de ir ligando o vídeo game.

– Que bom que veio, minha amiga – Lucas disse á mim. “Amiga?” Era tão bom ser chamada assim.

– Olha só pessoal! Suco de uva pra vocês. Desculpe, mas é só o que tenho aqui. Preciso fazer compras – ele estendeu o copo á mim – Pode beber, não envenenei, mesmo que eu queira te matar ás vezes – ele riu.

Aceitei o suco e fiquei ali vendo-os brincar. O vídeo game era antigo, mas era o suficiente para fazê-los se divertirem.

– Toque alguma coisa, já que trouxe isso – Gabriel olhou para o violão.

– Você não manda em mim!

– Toca amiga, por favor! – Lucas pediu. Acabei cedendo ao seu pedido e comecei á tocar uma canção que eu ouvia quando era criança. Por incrível que pareça ela era japonesa e meus pais tinham grande apreço pela cultura oriental. Eles amavam a música, como eu, e então sempre cantavam esta canção pra mim. Respirei fundo e comecei a dedilhar os primeiros acordes da triste melodia. Fechei meus olhos e parecia estar em outro mundo. Acho que estava até sorrindo enquanto tocava.


( http://www.youtube.com/watch?v=OLDptTV-h14 )



“Você me ensinou muito e eu não estou mais assustada.



Não importa o quão difícil seja, eu posso agarrar a felicidade

Eu vou sempre continuar o sonho que tive com você...”



Aquela letra significava muito pra mim, pois o sonho que eu e meus pais tínhamos não poderia ser esquecido. Como eu sentia falta deles.



Mais uns minutos e então eu havia terminado. Não esperava que eles fossem prestar tanta atenção, mas Gabriel e o pequeno Lucas estavam de boca aberta só de ouvir a música.

– O que? Parem de me olhar assim! – me virei de costas pra eles – Eu sei que foi horrível ok? Eu vou embora! – levantei rapidamente, mas Gabriel segurou meu braço.

– Por favor, não vá – ele me olhou tão profundamente que eu fiquei nervosa – Eu adorei a sua música. Eu não te entendo e acho que nunca vou conseguir, mas por que não consegue confiar em ninguém?

– Você não sabe nada sobre mim! Ninguém me ama nessa droga de mundo então, não me venha com mentiras! E me solte – ele continuou á me segurar firmemente.

– Eu também não tenho ninguém Manuela – ele havia me chamado pelo nome pela primeira vez desde que eu o vira – Deixe que eu te ajude.

– É amiga, nós podemos confiar um no outro! – o pequeno Lucas viera saltitando na minha direção.

– Não. Eu tenho coisas á fazer. Eu não tenho ninguém e é assim que vai ser! – Soltei-me de Gabriel e saí da casa dele segurando minhas lágrimas.

“Por que está fazendo isso? Por que quer me fazer acreditar que será diferente com você? Filipe se cansou de mim, mesmo com anos de amizade. Por que você, que mal conheço iria me amar mais?”

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(Representação do Gabriel)