Admirável Mundo Novo

3 - O outro lado da vida


3 – O outro lado da vida


Manuela Saraiva: 20 de abril de 1999 – Capela do hospital público de São Joaquim da Barra.



– Quanto tempo eu terei que esperar?



– Pare de reclamar e vamos rezar! – Não... Aquilo não poderia estar acontecendo. Parecia um pesadelo. Um pesadelo que você pensa nunca ter fim.

Nunca imaginei estar ao lado dele numa capela e...

– Acredita mesmo nisso? – perguntei.

– Claro! Você não? – ele sorriu.

– Isso tudo é inútil! E se a Pam nunca mais voltar? Já faz cindo dias...

– É eu sei, mas eu sinto que ela está bem sabe? Sinto que ela está viva. Só anda um pouco longe de nós.

– Longe? Por que eu não consigo entender nada do que você diz Filipe?

– Você não se esforça.

– Preciso da minha amiga aqui! E logo! – levei minhas mãos ao meu rosto e comecei a chorar. Filipe segurou meu queixo obrigando-me á olhá-lo.

– Não podemos ter tudo Manu. E saiba que rezar não é inútil. É tudo o que podemos fazer agora. Você devia acreditar mais nas coisas e nas pessoas.

– Por quê? Elas sempre me fazem sofrer! Ou me abandonam como a Pam está fazendo. Quem garante que você não fará o mesmo? – ele olhou pra mim com o bom e velho sorriso e desatou á rir de mim.

– Para com isso! Já disse que a pequena está bem! E você sabe que sempre estarei com você – ele fez uma pausa e pegou o caderno que a Pam havia esquecido na escola quando fugiu – Temos algumas anotações dela, porque não completamos enquanto ela não acorda?

– C-Completar? – ele acariciou meu rosto com as costas da mão.

– Sim... Não acha que a Pâmela vai ficar feliz quando acordar e ler isso? – sorri pra ele. Acho que aquilo já estava passando dos limites do que eu podia aguentar. Filipe estava se tornando mais do que um amigo pra mim, mas aquilo não era certo. Nem comigo, nem com ele e com a Pam.

Segurei o caderno e nós dois ficamos escrevendo coisas em forma de recados na esperança de que ela acordasse para ler depois.

...


“Hoje é Quarta-Feira, 20 de abril e estamos numa capela. Nunca estive em uma tão bonita quanto esta. Queria estar aqui apenas por visita, mas estamos ocupados rezando por você. Não sei se você tem ideia do que está acontecendo, mas quando acordar terá muitas perguntas e este caderno responderá á todas elas.


Manu está comigo, não se preocupe. Ela é bem chata e não para de reclamar, mas o que eu não faço por vocês? Rsrsrs...

Cinco dias se passaram desde o acidente e você está internada agora. Os médicos disseram que não podem fazer nada. Seu quadro é muito grave, pequena. Traumatismo craniano, conhece? Não queria ter que escrever essas coisas, mas ninguém sabe quando você vai voltar. Disseram que sua situação é de coma vigil, ou seja, você pode ficar até anos sem mover um músculo se quer.

Mas quer saber? Eu acredito que tudo voltará ao normal e logo você estará conosco. Prometa que irá à nossa formatura esse ano. Promete? Eu vou esperar!

Manu está sempre lendo histórias e falando com você durante o dia, você pode ouvir? Desculpe mas eu só posso te visitar á noite, pois trabalho na loja do meu pai.

Quero que saiba... Quero que saiba o quanto amamos você, por isso acorde logo para que possamos te dizer isso, ok?

PS: Quando voltar iremos passear por todos os lugares e ainda iremos á sua formatura ano que vem! Eu te proíbo de chamar outro cara para dançar com você além de mim entendeu? Ótimo! Não esqueça, temos uma promessa!

Beijo dos amigos Filipe e Manuela.”

...


– Escrever essas coisas é tão terrível! Não vou aguentar! – Fechei o caderno e o joguei no colo de Filipe.


– Pra que tudo isso? Pra que agir assim? Está tudo bem Manu! Vamos, ainda tenho que contar á Pam como foi meu dia! – Olhei bem nos seus olhos claros e comecei a gritar dentro da capela.

– Como você consegue estar tão calmo? Você é burro? Pâmela pode nunca mais acordar ou até morrer á qualquer hora! Você age como se ela estivesse bem, como se estivéssemos conversando como antes, mas não estamos!

– Eu... Eu simplesmente sei! Sei que ela está bem, não pergunte como, só confie em mim.

– Já disse que não confio em ninguém! – Poucas pessoas sabiam da minha história, do quanto eu havia sofrido. Saudade dos pais, dor, mágoas. Era algo que eu não revelara á ninguém, nem mesmo ao garoto que eu tanto amava.

– Manu, espere! – ele tentou me segurar, mas eu me desviei.

– Me deixe em paz! Vá ver a Pam, eu vou embora, já terminei minha visita! – Saí correndo atordoada que nem consegui me despedir dele.

“Sou uma idiota, sou uma perdedora.” Era o que vinha á minha mente toda vez que eu analisava meu passado, minha história.

Continuei andando pelas ruas escuras. Estava uma chuva muito forte, mas eu parecia não sentir nada. Só chorava, chorava escondido e fingia estar tudo bem. Como sempre.

“Acorde logo minha amiga. Eu só tenho você!”

...


Manuela Saraiva – 14 de maio de 1999 – Hospital Público de São Joaquim da Barra.



Quase um mês depois e lá estava eu no hospital novamente. Uma rotina eu diria. Sair do colégio, visitar Pâmela e depois ir embora.


A história dela pareceu comover muita gente da nossa escola que também vinham vê-la. Todos tristes e desanimados, mas Filipe não. Ele parecia entender e saber onde Pâmela estava. Para ele era tudo normal e ela logo voltaria para nós. Meu celular vibrou, afastando meus pensamentos.


– Alô? Ei Filipe eu estou no hospital sabia? Não posso atender!


– Então sai daí e vem me encontrar! Estou na entrada principal – ele desligou. Olhei para tia Sally, mãe de Pâmela, e avisei-a que ia sair, mas já voltava.

Fui até Filipe que para variar estava feliz, sorrindo com um filhote de cachorro nas mãos.

– Bom dia Manu! Olha o que eu encontrei! Acho que vou chamá-lo de Haru ou Spoke, o que acha?

– Não acredito que me chamou aqui pra isso! Eu toda preocupada com a Pam e você caçando filhotes de vira latas por ai?

– Não, não Spoke ela não quis te ofender tá? Ela é uma garota boba e fria, mas é gente boa!

Você é doente garoto! – eu já estava preparada para subir quando ele me chamou mais uma vez.

– Pode ficar com o Haru pra mim? Eu quero ver a Pam. Prometo que volto logo – ele lançou um daqueles sorrisos maravilhosos e pronto. Filipe Oliveira conseguia tudo que queria.

– Mas o nome dele não era Spoke?

– Spoke ou Haru! Não sabemos ainda. Depois me lembre de tirar uma foto dele para colar no caderno da Pam! - Filipe subiu as escadas e pegou o elevador e eu ali com o filhote de cachorro. Sorri pra mim mesma ao ver como tudo aquilo era patético e bom ao mesmo tempo. Tudo estaria melhor se Pam estivesse aqui.



3 Dias depois...



Tudo continuou como estava. Manuela visitava Pâmela todos os dias e as noites era a vez de Filipe. A mãe da garota também estava lá, mas ela não podia deixar de trabalhar então os amigos cuidavam dela durante o dia.


Manu continuou lendo histórias para a amiga. Histórias sobre herois e heroínas, as quais Pâmela adorava. As heroínas sempre encontravam seu par perfeito e realizavam seus sonhos. Bons e velhos contos de fadas, certo?

Á noite, Filipe contava á ela como estava o seu dia e como o cachorrinho Haru ou Spoke estava crescendo. Ele prometia escolher o nome somente quando a menina voltasse.

Toda a dedicação dos amigos e da mãe parecia não surtir efeito algum, mas era o contrário. A menina estava mais viva do que eles imaginavam. Pâmela podia estar desacordada em cima de uma cama, mas por dentro ela nunca esteve tão viva. Sua mente sempre foi muito criativa e a cena do atropelamento a fez criar outra realidade. Todas as pessoas importantes para a menina foram transportadas para esse novo mundo, para essa nova vida.

A partir daqueles dias, Pâmela Guimarães não vivia mais na realidade. Ela havia mergulhado no seu mundo. Onde lá ela poderia realizar seus sonhos, ter amigos e encontrar o tão sonhado amor verdadeiro.

Tudo começou com o primeiro delírio da menina, no qual ela sonhou estar perdida e foi encontrada por algumas pessoas. Ela os chamava de Raquel, Nicole, Bianca e Juliana. Essas meninas se tornaram as amigas de Pâmela e agora ela tinha a própria realidade sem se importar com o que havia deixado aqui. Para ela, aquilo era o paraíso, mas só não se sabe quando ela voltará e se voltará.