Marie Jean POV – Madrugada de 19 de Novembro.

Subimos aquelas escadas durante a noite inteira. Às vezes, parávamos, cansados e exauridos. Descansamos por uma hora em alguns degraus, o suficiente para eu ter forças para curar os meus ferimentos mais sérios e os dos outros, antes que continuarmos a subir. Ninguém falava nada. Não sabíamos ao certo se havia algo para se falar. Havíamos sobrevivido a essa loucura toda, cumprimos o tal destino... Mas Fred se fora e eu não tinha certeza se ele voltaria. Isto é, ele poderia usar seu desejo da Mortem para outra coisa, certo?

Depois de horas finalmente passamos pela porta da torre e saímos ao ar livre, no topo dos Cliffs of Moher. O ar estava fresco, frio, até. O cheiro de maresia era bom. O céu estava azul, rosa e amarelo, naquela tonalidade linda antes do amanhecer. Virei-me em direção ao mar, onde a luz do sol se refletia lindamente. Era uma visão de tirar o fôlego. Aproximei-me das ruínas e sentei-me em uma delas, observando o horizonte, enquanto descansava. Mesmo sem olhar, sabia que os outros estavam se aproximando também.

O mundo parecia em paz. Não havia nada desarmônico por ali. Por um instante, poderíamos fingir que nada sobrenatural existia, apenas existia a paz, apenas o amor. Não existiria ódio, rancor, mágoa ou dor. Só a leveza de espírito e alegria. Permiti-me sorrir.

– É tão lindo... – Eu murmurei ao sentir Ethan me abraçar lateralmente.

– É mesmo.

Olhei-o, e ele me olhava, em vez de olhar para o horizonte. Ethan sorria.

– Você deveria sorrir mais vezes. – Eu comentei, baixinho, acariciando sua face. Ele fechou os olhos suavemente, abrindo-os dois segundos depois e me olhando.

– É só você continuar existindo... Afinal, é por você que eu sorrio.

– Eu amo você. – Eu disse, sorrindo. Ethan se inclinou e me beijou.

– Eu também amo você.

Ele me abraçou, e me escondi em seus braços, sentindo o peso de tudo o que enfrentamos nas costas. Os meus olhos se encheram de lágrimas novamente, e fiz força para não deixá-las caírem. Ethan pareceu sentir que eu estava a beira de lágrimas.

– Não fique assim. Não é culpa sua. Tudo vai ficar bem agora... Ok? Eu prometi que ficaria tudo bem. Demorou um pouco, mas agora é verdade. – Ele sussurrou no meu ouvido. Assenti, ainda escondendo o rosto nos seus braços.

– Eu não sei vocês, mas eu tô morto de cansaço. Por mim, durmo na sombra dessas ruínas ou até mesmo no degrau dentro da torre. – Disse Harry. – Eu preciso dormir algumas horas antes de seguir viagem.

– Eu tô de acordo. – Disse Andrew. – Se não me engano, no topo da torre tem um cômodo plano, dá para descansarmos algumas horas lá. Nenhum turista viria para cá até umas 10 da manhã, no mínimo. E agora, pelo os meus cálculos, é apenas 6.

– Vamos nessa. – Disse Ethan, e voltamos para dentro da torre, subindo as escadas e encontrando um cômodo pequeno, mas suficientemente bom para dormirmos. Eu e Ethan conjuramos alguns sacos de dormir e cobertores, nos ajeitamos, e quase imediatamente adormecemos.

Os dias seguintes foram longos, vazios e às vezes, complicados. Estávamos sem carro, sem dinheiro de verdade (tive que conjurar algum para poder pagar passagens de trem), recebíamos olhares tortos por andarmos um tanto quanto maltrapilhos, já que havíamos perdido a maioria de nossas roupas.

Cada vez que levantávamos pela manhã, ou cada cidade que entrávamos, cada vez que nos deitávamos à noite olhávamos ao redor para ver se Fred estava conosco. Se ele havia retornado para nós. Mas até então, nada havia mudado.

Demoramos quase três dias para atravessarmos a Irlanda de volta a Dublin, e de lá pegarmos uma balsa para Blackpool, refazendo nosso trajeto. Quando retornamos à Inglaterra, tivemos que fazer uma parte do trajeto a pé, até chegarmos a uma cidade com uma estação de trem. Assim, em menos de dois dias, retornávamos a nossa pacata e pequena cidade.

Era dia 26 de novembro pela manhã quando finalmente adentrávamos em minha rua. Estar de volta era uma sensação surreal. Depois de tantas experiências de quase morte, eu havia aprendido a dar muito mais valor a tudo àquilo que eu tinha, e estava infinitamente feliz de estar de volta. Eu olhava ao redor encantada, matando a saudade de cada detalhe do lar. Quando avistei minha casa, a porta da frente se abriu e minha mãe saiu correndo de dentro da casa, descalça e envolta em um roupão vermelho escuro, com os cabelos soltos e bagunçados.

– Marie! – Ela gritou, vindo até mim e me abraçando com força. – Graças a Deus, você voltou, graças a Deus...

Eu comecei a gargalhar enquanto ela me abraçava forte e me dava beijinhos por todo o rosto, repetindo frases como estas o tempo inteiro. Eu retribuía os abraços na mesma intensidade, e quando ela se acalmou, ela saltou em Ethan e começou a fazer a mesma coisa com ele, agradecendo por ter me mantido a salvo. E então meus olhos se prenderam na soleira da porta de casa, onde havia uma figura encostada.

Era Fred.

Ele estava lá, inteiro. Do mesmo jeito que eu me lembrava dele, sorridente, saudável, limpo e forte. Fred estava vivo!

– Fred! – Gritei, saindo correndo, seguida pelos outros, que berraram seu nome também. Ele desceu as escadas da varanda e se desequilibrou quando eu me joguei nele, abraçando-o com força. Ele retribuiu o abraço, rindo. – Ai, graças a Deus você voltou!

– Bem, não foi exatamente Deus... – Ele retrucou, rindo. Dei um tapa em seu ombro e ele gargalhou com mais força, sendo abraçado por Ethan em seguida.

– Cara, por que você não deu um sinal de vida, seu babaca? Estávamos morrendo de preocupação! – Disse Andrew.

– Achei que seria melhor e mais emocionante se eu simplesmente voltasse para cá direto. – Respondeu ele, recebendo um soco de Ethan.

– Podia ter dado um aviso! Existe magia pra isso, sabia? – Ethan ralhou. – Mas deixa pra lá. O importante é que você voltou.

– O importante é que vocês todos voltaram! – Disse minha mãe, quase saltitando de alegria. – Vamos logo, entrem, vou colocar café na mesa. Quero saber de tudo o que aconteceu, pois Fred não me contou muita coisa, e depois vocês vão dormir na cama de vocês, eu até limpei a casa de vocês, meninos, enquanto estiveram fora!

Entramos em casa e enquanto comíamos fizemos um resumo de tudo o que havia acontecido nas últimas semanas. Amelia, minha mãe, estava horrorizada com tudo o que tivemos que suportar e no fim, ficou orgulhosa de nós. Por termos sobrevivido àquilo tudo.

– Fred, o que aconteceu depois que você, bem... Se sacrificou? – Perguntei, meio sem jeito. Ele ficou sério, mas continuou calmo enquanto respondia.

– Foi estranho. Eu senti algo que supera os níveis de dor. Eu literalmente morri, bem devagar, enquanto aquela coisa sugava o meu corpo. Eu não sabia o que estava acontecendo com vocês, muito menos comigo. Eu não sabia mais nem quem eu era. – Fred disse, enquanto cutucava um pedaço de bolo com o garfo. Todos nós estávamos em silêncio, tentando visualizar o que ele passou, mas sabíamos que o que imaginávamos não era nada parecido com a realidade dele. Fred respirou fundo e continuou. – Depois, tudo parou. Eu me lembro de estar em um corredor negro, e nas paredes havia flashes da minha vida inteira. Andei pelo corredor inteiro até chegar a uma sala, onde havia uma mesa cinza, parecia mármore, e havia duas pessoas lá. Uma era uma mulher branca, muito branca, como se estivesse morta, tinha cabelos longos negros e escorridos, usando uma roupa que parecia de exército e segurando uma foice. O outro parecia um anjo. Tinha a pele clara, os cabelos loiros e cacheados, e os olhos azuis. Usava uma roupa um tanto quanto hippie, sei lá. Ele exalava paz, entendem? Eu logo pude entender que eram a Mortem e o Paradisum.

– A Morte e o Paraíso. – Amelia murmurou. Fred assentiu.

– Eu parei diante deles, sem saber o que fazer. Logo, a Mortem começou a falar. Disse que eu havia levado uma vida curta, de grande violência e crueldade de minha parte. Disse que eu era digno de ir para os domínios dela. Mas Paradisum argumentou, dizendo que minhas atitudes nos últimos meses, principalmente a atitude que me tirara a vida, foram nobres o suficiente para me redimir de todos os meus pecados e me tornar digno de ir para os domínios dele. Isso só me deixou mais confuso. Perguntei onde eu estava, e eles me disseram que estava no Além dos Portões, mas não estava em nenhum domínio, nem no Purgatório. Então perguntei o que aconteceria comigo, e Paradisum respondeu que eu tinha uma escolha a fazer: ir com ele para o Paraíso e ficar lá até a próxima encarnação, ou quem sabe a eternidade, de acordo com o julgamento dele; ou usar o pedido que a Mortem concede para seus heróis para retornar a vida.

Até então estávamos todos em silêncio. Só se ouvia a voz de Fred e a cantoria dos pássaros do lado de fora da casa. Estávamos abismados, atentos a tudo o que ele dizia. Afinal, era o único que sabíamos ter voltado dos mortos para contar a história.

– Então, perguntei o que aconteceria se eu escolhesse ir com Paradisum. Ele me respondeu que este seria um mistério que eu só saberia a resposta se fizesse esta escolha. Comecei a refletir sobre o que eu queria. Perguntei se vocês ainda estavam vivos, e eles me disseram que sim. Então, comecei a refletir sobre o que seria possível fazer se eu retornasse. Eu poderia continuar vivendo normalmente, continuar com vocês, quem sabe até encontrar a minha alma destinada por aí? Nunca se sabe... Enquanto que, se eu fosse com Paradisum, isso nunca poderia acontecer, mas sabe-se lá o que poderia acontecer? Afinal, ninguém nunca contou como são os domínios do Paraíso... Mas, quanto mais eu pensava, mais eu tinha certeza que devia retornar. Não sei por quê, mas havia algo dentro de mim dizendo que eu precisava voltar. Que não era o meu destino permanecer ali. Então pedi para Mortem me trazer de volta, mas, por obséquio, que ela já me deixasse aqui.

– E foi assim que você me deu um baita de um susto surgindo na minha porta às três da manhã, né?! – Exclamou minha mãe, rindo. Fred riu e assentiu.

– Antes de ir, Paradisum me disse uma coisa: “Você é dono do seu próprio destino, Frederick Storm. Você tecerá seu destino ao passo que fizer suas escolhas. E lembre-se: você tem o bem e o mal dentro de si. Basta decidir o que fazer a respeito”.

Ficamos em silêncio, absorvendo a declaração final de Fred. Tomei um gole de café, enquanto pensava em tudo o que passamos. Cada um de nós havia passado por maus bocados, mas Fred havia visto mais do que qualquer um de nós; mas é claro que, um dia, todos nós veríamos o que ele viu. Mas, sinceramente, eu não tenho pressa alguma.

Mas agora tudo ficaria bem. Desta vez, eu tinha certeza.