A Última Mordida

O amor é tão fatal tanto quanto navalhas


O sol já estava alto e o vento embaraçava meus cabelos, enquanto os raios de sol queimavam a superfície da minha pele, que já estava em um tom salmão se espalhando em meu corpo em matizes avermelhadas.

Minha única veste, o macacão branco do manicômio, não era espesso o suficiente para me proteger contra o frio e contra as intempéries que cruzavam meu caminho durante a minha jornada.

Há dois dias, mesmo sem senso de direção, eu havia tomado um bote para mim e navegado para as ilhas terríveis que haviam se tornado o meu ápice de medo, trevas e luxúria, intercalados e entrelaçados como três cobras tentando devorar uma a outra.

Eu havia levado algumas frutas, que já apodreciam, um pouco de água em uma garrafa de vinho, e foram o que me mantivera vivo. Com minhas poucas habilidades, eu não conseguiria capturar nenhum fruto do mar e a minha água já havia acabado. A desidratação e a fome haviam se tornado minhas principais inimigas no exato momento.

Fechei meus olhos e deitei um pouco. Olhei o horizonte azul-esverdeado e contemplei a visão do topo da torre negra do castelo. Desembarquei sentindo minhas pernas trêmulas e falhei terrivelmente na tentativa de correr até o castelo. Arrastei-me na areia escaldante até finalmente chegar nos primeiros degraus da escada de mármore negro e bruto.

Atravessei as portas e procurei algo que pudesse me alimentar e me hidratar. Havia um banquete já posto na mesa e vinho colocado em taças, e por este motivo, eu já sabia que ele me aguardava. Senti meu corpo fraquejar e desmaiei.

Acordei em um lugar que eu já conhecia. A cama. As janelas. As cortinas. Em desespero, levantei-me e procurei em todos os lugares escuros do castelo. Encontrei-o em uma das torres do castelo. Seus cabelos negros caindo em ondas cintilantes antes de alcançar os ombros, pele pálida e morta, seus olhos exaustos observavam as ondas que atingiam ferozmente a costa rochosa sob uma noite escura e sem estrelas.

–Eu sabia que você voltaria – Aquela voz rouca ecoava pela sala, e por mais familiar que fosse, me causava um estranhamento. Fiquei paralisado e me perguntando por quanto tempo eu havia me perdido em mim mesmo.

— Por que não se senta? – Virou-se para mim e sou obrigado a mergulhar naquela imensidão em seus olhos.

—Como esteve esse tempo? – Pergunto, indeciso sobre o que falar.

— O que está morto nunca pode morrer – Um silêncio tomou espaço entre nós. Imagino-nos perdidos na minha mente, perdidos no tempo, perdidos em memórias. Imortalizados.

— Perdoa-me. Eu só impedi que o pior fosse feito, que sobre o mundo fosse libertado um grande mal.

— Mas ainda assim continua voltando ao que te prendeu, como um pobre gato que fora alimentado uma vez e volta todos os dias buscando farelos e vísceras de peixes – Sua expressão congelou. – O que ganha quando vive implorando por migalhas?

— Você é puro mal.

—Conte-me coisas que eu ainda não sei. Já vivi tempo o suficiente para distinguir bondades de crueldades.

— E ainda assim é enganado mais uma vez por uma dama que te prometeu tudo – Ele se vira rapidamente e, com suas pálidas mãos e unhas grandes, me agarra pelo pescoço. –Faça isso! Mate-me, já não me matou por dentro várias vezes? Eu te contarei como é viver quando se já está morto por dentro.

— Isso não é um jogo, meu caro. – Ele falou aproximando sua boca do meu ouvido – Há muitas coisas pior que a morte.

— Como o amor? – Ele paralisa no tempo e sinto que nenhum musculo seu se movimenta. Ele, aos poucos, me solta e se afasta, virando de costas para mim e encarando mais uma vez o feroz mar. – Você já amou alguém em toda sua vida além de si mesmo?

—Eu te amei, você bem sabe disso.

—Conte-me quando sua paixão morreu por mim.

Um silêncio dominou e por um momento, só havia o vento que assoviava quando passava nos picos do castelo. O uivo dos lobos nas montanhas era uma canção que eu estava disposto a ouvir uma última vez antes de morrer.

Saí do quarto e percorri todos os lances de escada até chegar na grande porta do castelo. Senti a areia fria e molhada sob meus pés quando eu pisei na praia e senti o vento sussurrar melodias em meu ouvido, embaraçando meus cabelos. Sentei-me na praia e observei as ondas. Havia várias coisas circulando minha mente. James me amava? Arriscaria tudo por mim? Por que ele me usou para um plano maligno? Por que confiou naquela bruxa maldita? Seria um ato egoísta ou apenas as coisas malucas que fazemos por amor e por liberdade quando vivemos em uma sociedade que nos julga e que nos faça seguir padrões idealizados de amor perfeito? Meu coração sempre fora dividido em Valerie e em James, agora ambos estão mortos. Porém, James ainda está aqui.

Sinto-o perto de mim. Ele está ao meu lado com seu braço apoiado em meu ombro, olhando o mar, assim como eu.

— Eu nunca deixei de amar você. Há diferenças entre um propósito e um amor verdadeiro, Charles. Eu sempre amei você, mas não era um amor possível. Quando tive a oportunidade de ser parte de um plano grandioso e ainda assim poder te conquistar, não me restaram opções. Eu fui egoísta, pensei em conquistar o mundo, mas nada no mundo seria tão importante se eu não tivesse você ao meu lado.

—James, o amor mata tanto quanto a guerra. –Levanto meus olhos para olhar para ele e vejo que ele está completamente despido, apenas vestindo um casado de lã. Perco-me um momento observando-o e vendo o quanto ele tem poder sobre mim, mas é preciso voltar para a realidade. É preciso acordar – Amar é ser atingido por uma lança. Quando atinge o coração, você já estará cego demais para sentir a dor, mas ainda assim, foi atingido e estará sangrando. E quando menos imaginar, estará morto.

— Então morra comigo, Charles. – Ele me beija no pescoço, dando-lhe a última mordida, e sobe pela bochecha. – Morra por mim. Acompanhe-me até a morte, meu amor. Seremos eternos.

— Eu te acompanharei, James. Eu te amo, mas já estou morto por dentro.

Então ele sente. Minha mão está em seu peito, mergulhada em um líquido negro que escorre entre os meus dedos e sobre a pequena navalha de metal que eu retirara de meu bolso enquanto James me beijara. Sua expressão é indiferente.

— Seu coração me pertence, James. Para amar e para destruir. – Retirei a navalha que encravava em seu peito. – Descanse, meu amor. A vida e a morte ainda nos separam. Algum dia quando retornar, teremos a oportunidade de recomeçar sem segundas pretensões, sem medo, sem obstáculos. Agora descanse.

James deitara sobre seu ombro e Charles ficara abraçado com ele ali até que o corpo de James se desintegrara em cinzas que eram espalhadas ao vento, até que Charles finalmente ficou sozinho. Ou até achar que estava sozinho.

***

—Tudo acabou, então. – Charles olhou para trás e viu cabelos dourados ao vento em um vestido branco. Demorou até reconhecer Valerie.

— Valerie? Eu... Eu... – Estava sem o que dizer.

— Não precisa dizer nada, Charles. Estou aqui. – Sentou-se ao seu lado e observou o mar junto com ele. – Aquela vadia tinha razão mesmo, eu sou uma bruxa. Tentaram me queimar, mas eu dancei sobre suas chamas. Várias garotas inocentes morreram enquanto ela me possuía para se alimentar, mas parte de sua magia ficou em mim. No fim, eu me tornei tão cheia de poder quanto ela.

— Então, você quer abrir o portal das trevas?

—Não, Charles. Eu ficarei viva até os fins dos tempos para mantê-lo fechado, nem que eu o tenha que matar, matar outra encarnação de James, matar aquela vadia. Eu me auto declaro guardiã do portal.

— Valerie, desculpe-me por te deixar, por te deixar morrer. – Charles estava envergonhado.

— Coisas malucas que fazemos por amor, Charles. Mas isso definiu meu propósito, minha nova vida, meu destino.

Charles sorriu meu abobado e olhou tristemente para o mar, enquanto Valerie puxou seu rosto e o beijou.

—Eu te amo, Charles, mas você não me pertence. Nossos caminhos foram feitos para se cruzar, mas não para ficarem juntos até a eternidade. Fique bem. – Charles a retribuiu o último beijo

— É minha hora de partir.

— Nos vemos em uma próxima vida, Charles. Se cuida. – Ela observa Charles levantar, seguir até as ondas violentas do amanhecer e mergulhar. O amor é tão fatal tanto quanto navalhas.

Valerie observava o mar levaria o corpo de Charles enquanto as cinzas de Jaime eram levadas pelo vento.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.