A Última Chance

Parte IV - Capítulo 70 - Paranóia


Capitulo 70

Paranóia

Me dobrei para frente, deixando a cabeça pender entre os joelhos, sentindo um gosto horrível na boca.

– Eu preciso vomitar. - falei com a voz embargada. Ainda estava em choque.

– Não pode esperar até chegarmos na prisão? - Damen perguntou, e apesar de parecer controlado, ainda era possível perceber uma ponta (tipo iceberg) de desespero nele.

Não respondi e somente continuei naquela posição, com uma mão apoiada no painel para não bater a cabeça nele.

A imagem da “canibal número um” cortando o braço daquela mulher não em saía da cabeça, o sangue espirrando e correndo pelo cascalho e as folhas caídas. Seu grito abafado pela mordaça, as lágrimas, o olhar dolorido...

– Porque eles não a mataram antes? - perguntei fraca - Será que queriam que ela sentisse dor?

Um momento sem resposta passou e então o carro parou.

– Talvez sim. Mas se a matassem antes ela se transformaria e se a comessem também virariam e... Eca, eles estavam comendo ela! Já não basta canibais mortos, agora temos que lidar com canibais vivos. - ligou o carro novamente - Temos que voltar logo pra prisão e avisar aos outros.

Continuei na mesma posição, evitando fechar os olhos, até mesmo piscar. Sempre que o fazia sentia como se estivesse de volta naquele lugar, com aquelas pessoas estranhas e doentias. Talvez tivessem notado a presença minha e de Damen e agora mesmo estivessem atrás de nós. Mas não antes de fazer algo com aquela mulher. Talvez terminassem a refeição antes, ou apenas matassem como se ela não fosse nada. Bem, ultimamente isso não era uma coisa tão difícil de se encontrar: matar as pessoas como se não fossem nada. O sangue estava escorrendo pelas folhas... Os olhos negros da mulher...

– Hey hey... Você está bem? Por favor, não me diga que está tendo um ataque. - Damen me chamou.

Finalmente percebi que estava arfando, e eu realmente não conseguia respirar. Uma coisa quente subia por minha garganta e a tampava, tornando completamente impossível a passagem do ar.

– Por favor, não passa mal, por favor, por favor...

– Eu estou bem... - me forcei a dizer, abrindo totalmente a janela para deixar o vento entrar, mas a sensação do ar não chegar aos pulmões não passava.

– Droga.

O barulho do acelerador ficou mais alto e o impulso do carro me jogou para frente, me fazendo bater a cabeça no painel. Minha visão ficou um turva e me levantei rapidamente, piorando minha situação.

– Eu quero te matar. - falei com dificuldade, a mão na cabeça bem onde a tinha batido.

– Você se machucou? Droga, droga, droga! Me desculpe, sério, me desculpe! Vamos chegar logo na prisão.

– Não fique desesperado, idiota! Presta atenção na estrada!

Me recostei no banco sentindo o ar quente e abafado finalmente invadir meus pulmões e contive a vontade de fechar os olhos em alívio. Minha testa estava latejando onde a tinha batido e sentia o gosto horrível da bile em minha boca, mas mantive os olhos no asfalto. Isso não ajudou muito, já que em cada curva meu cérebro parecia ir para um lado, e minha visão já estava turva... Bem, tive de me controlar para não acabar vomitando. Pelo menos não demoramos a chegar na prisão, e logo meu irmão me ajudava a sair do carro. Me estiquei sentindo as articulações dos meus braços estalarem e fomos em direção ao bloco de celas.

Entramos lá tão abruptamente que todos pararam para ver o que estava acontecendo.

– Canibais na floresta. - Damen falou, e todos continuaram nos olhando estranhamente. Isso pareceu irritar meu irmão - Eu falei que vimos canibais na floresta!

– É, já escutamos. - Glenn franziu o cenho - Não sei se percebeu, mas o mundo está com super lotação deles.

– Cala a boca, seu idiota! Eu estou falando de pessoas vivas comendo outras pessoas vivas!

– Onde? - Rick perguntou sério.

– Perto do rio, uns dez quilômetros daqui. - falei com a voz entrecortada. É, com certeza eu ia vomitar.

– Estão longe, mas vamos ficar atentos. - Carol falou e olhou para todos em busca de aprovação.

– Não, vocês não entenderam! - disse usando as mãos para explicar - Os canibais querem nos pegar. Tipo, pegar e transformar a gente em jantar. Eles querem pegar todos que estão na prisão.

– Porque eles iriam no querer? - tia Connie (que por algum motivo andara desaparecida nos últimos dias) perguntou.

– Ele... Ele... Falou de um homem. Ele falou que um homem tinha prometido que aqui teria muitas pessoas vivas para eles.

– E quem seria esse homem? - Beth perguntou pensativa.

– Ah. - Merle riu de um canto - Quem quer todos aqui mortos? Só posso pensar numa pessoa.

Não foi preciso dizer mais nada, porque todos já sabiam a resposta. Quem mais seria insano o bastante para procurar canibais por uma vingança?

O Governador.

Mais alguma pessoa de encaixaria na lista de loucos que chegariam a esse ponto?

Não.

– O que acham de uma busca? - Lola sugeriu girando sua arma pelo gatilho.

– Lola, para de rodar essa coisa! Vai acabar disparando! - Matt a repreendeu.

– Ah, tanto faz. - ela deu de ombros entregando a arma á Maggie, que estava ao seu lado - Mas voltando ao que interessa... Acho que seria legal fazermos uma pequena busca pela região.

– É, até que não é má ideia. - Charlie acenou, os olhos meio assustados. Com certeza a ideia de canibais o assustou.

A conversa sobre os benefícios que uma olhada pela região traria para a segurança de todos. Judith - que havia crescido visivelmente no ultimo mês - também começou a chorar e aquilo estava cheio demais. Meu estômago ainda se contorcia, então fui para a minha cela e me sentei na cama, a cabeça jogada para trás numa tentativa frustrada de fazer aquela sensação horrível passar.

– Enjoo? - Charlie falou da porta, parecendo complacente.

– Sim. - minha voz saiu como um choramingo.

– Quanto tempo?

Charlie se sentou ao meu lado.

– Pouco mais de um mês. - murmurei um pouco envergonhada.

– Bem, tem que aproveitar que ainda está no inicio e tomar cuidado.

Não acho que isso será necessário talvez ele não passe de mais alguns dias, pensei, mas me mantive calada.

– Me responda. Ainda tem alucinações, por causa das coisas que colocaram em você?

– Sim. Diminuíram, mas continuam.

– Isso quer dizer que essa coisa ainda está no seu corpo. - suspirou - Não sabemos o que era, e se injetaram em grande quantidade no seu sistema, mas se foi logo no inicio dessa gravidez, pode acabar complicando a gestação. Dependendo, ainda pode até causar um aborto.

Absorvi aquilo por alguns segundos. Então talvez eu não precisasse tomar remédios, ou me jogar da escada. Talvez eu tivesse somente que esperar um pouco e isso acontecesse naturalmente. Esse pensamento causou dentro de mim uma enorme agitação, feita de muitos sentimentos embolados. Alívio, tristeza, culpa, raiva, certeza... Nunca fui a favor de aborto, mas as coisas mudam. Deixá-lo morrer antes de nascer, sem tanto sofrimento, ou esperar ele nascer e assistir sua morte, talvez por alguma doença, fome, ou servindo de alimento para um zumbi ou, caso sobrevivesse, provavelmente ficasse perturbado - como Carl estava desde que atirara no garoto de Woodburry? Esse era meu grande dilema no momento.

– Ah, eu não devia ter falado isso.- Charlie se repreendeu olhando meu rosto atentamente - Espero que isso não tenha te perturbado. Tanto.

– Está tudo bem.

– Naquela hora em que saiu, assim que contou que o filho era do Dixon, muitas pessoas ameaçaram matá-lo por ter feito isso com você. Tem muitos bons amigos aqui, Delilah, que se importam com você de verdade. Tenho certeza de que vão te ajudar no que for preciso.

– Obrigada, Charlie. - forcei um sorriso, mas acho que não me saí tão bem. - Então, eu vou...

Ao invés de terminar a frase, somente me levantei e saí dali. Me sentia inquieta demais para continuar naquele espaço pequeno, parada. Estava como uma pessoa com hiperatividade.

– Hey, garotinha? - a voz lenta e rouca que fazia uma raiva insana e não explicada dentro de mim me chamou quando estava perto da saída.

– O que é? - coloquei todo o desprezo que consegui em minha voz e me virei para Merle.

– Hey, não seja mal educada com seu cunhado. - sua risada estrondosa fez eu fechar meus punhos.

– Você não é meu cunhado.

– Ah, mas logo serei tio desse filho que está esperando.

– Infelizmente.

– Não posso dizer que entendo o porque meu irmão ficou com você. - me analisou dos pés á cabeça e ergueu uma sobrancelha - Só não fique tão esperançosa pensando que por isso ele vai ficar com você e seu filho no mundo cor de rosa. Mas fique tranquila que o tio dele sempre estará por perto.

Apesar de seu rosto carregar uma expressão irônica e desdenhosa, ri alto e sarcasticamente, assumindo uma postura séria em seguida acompanhada de um sorriso mínimo.

– Acho que confiaria mais em um zumbi.

– Família em primeiro lugar - deu de ombros - Acho que todos aqui estão radiantes por estar grávida. Imagino que o leite que vai alimentar seu filho também poderá ajudar a filha do policial amigo. Não acha que isso seria um motivo muito nobre pra essa criança nascer? Salvar a outra? - um sorriso desdenhoso passou por seus lábios.

Minhas mente ficou muito acesa nesse momento. Não tinha pensado nessa possibilidade, na verdade, nunca pensaria. Mas Merle com certeza estava mentindo. Ou não?

– Ah, e eu menti - falou enquanto saia e encarou meus seios por uns segundos - Eu consigo entender porque Daryl dormiu com você.

Balancei a cabeça tentando esquecer suas palavras. Mesmo que fosse verdade, qual seria o problema? Talvez eu pudesse mesmo ajudar Judith. Seria egoísmo meu se me negasse a isso, certo?

Precisava tirar essas perguntas da minha cabeça, tinha outras tão mais importantes. Mas ainda sim me sentei entre as pessoas que ainda conversavam sobre uma possível patrulha pela prisão até que tudo acabasse. Ao meu redor estavam Maggie e Lola, e não em contive em falar com elas.

– Posso fazer uma pergunta?

– Claro. - Lola acentiu estalando os dedos.

– Er... Eu ouvi que... Bem, eu talvez pudesse ajudar a Judith... - me interrompi me sentindo boba por ter ouvido aquele maldito Dixon.

– Quem falou isso? - Maggie perguntou franzindo as sobrancelhas, como se não soubesse nada sobre o assunto. Isso me tranquilizou um pouco.

– Ah, sim! - Lola falou - Só comentamos que você poderia cuidar da Judith, se é que me entende. Logo aquela fórmula que dão a ela estará em falta, e uma criança tem que ter certa alimentação até os dois anos, mais ou menos.

– É... A Judith realmente vai precisar disso. - Maggie concordou pensativa.

– Ela ainda é tão pequena... Mas acho que sobrevive até você poder ajudá-la. Será o melhor para ela.

Lola continuou falando, mas parei de prestar atenção logo nessa parte. Tudo o que ouvi foi “cuidar da Judith”, “a Judith realmente vai precisar disso”, “será o melhor para ela”... Nada que fizesse menção a mim ou meu pequeno bebê como algo mais que uma conveniência, como se não importasse o que acontecesse conosco se continuássemos "ajudando" Judith.

Queria sair dali, mas não confiava em minhas pernas trêmulas para me manter de pé. Minha cabeça latejou tão forte quanto o nó em minha garganta e meus olhos arderam. Ninguém pareceu ter reparado em meu estado catatônico, então me levantei lentamente testando minhas pernas e saí dali a passos pequenos e firmes, o mais rápido que podia.

Não sabia para onde estava indo, mas quando senti o mormaço e o sol de fim de tarde em minha pele, reuni minhas forças para correr. Parei próxima á covas onde os que tínhamos perdido estavam enterrados. Minha esperança devia estar em um deles. Ela tinha morrido por completo. E a figura ao meu lado parecia estar no mesmo estado.

– Quer conversar? - Ethan perguntou sem tirar os olhos da madeira que formava uma cruz, com o nome Savannah entalhado.

– Não. - respondi logo.

– Talvez precise de um abraço. - sua voz arrastada e um pouco enrolada denunciava um leve sinal de embriaguês. Onde teria arranjado uma bebida era uma ótima pergunta.

– Talvez. Mas acho que no momento só preciso do que você tem ai. - indiquei a garrafa com um líquido âmbar ao seu lado.

– Talvez uma mulher grávida deva beber. - sorriu sarcástico.

– Talvez eu não queira estar grávida.

– Estamos com muitos talvez e poucas certezas.

– Então cala a boca e me dê essa garrafa logo.

Peguei a garrafa de suas mãos. Nem me importei em olhar o que era e tomei um enorme gole, sentindo o ardor, a queimação e o prazer que álcool dava ao meu corpo. O nó na garganta desceu junto com o segundo gole e, quando já tinha perdido a conta do quanto tinha bebido, o motivo da minha tristeza e raiva também. Afinal, o mundo era lindo, certo?

– Eu que perdi minha namorada, o resto da garrafa é meu. - Ethan me encarou.

– Eu que estou grávida sem querer, devia ser meu. - parei um momento - E isso não faz sentido.

– Não faz mesmo. Mas foi comigo que minha mãe deu uma de sentimental e quis conversar sobre perder uma pessoa amada. Traumatizante. Eu fico com o resto.

– E minha mãe gritou comigo por eu ser uma criança e irresponsável e jogou na minha cara que nossa vida era uma droga de uma mentira.

– Já disse que estou me sentindo uma merda?

– Já disse que estou pensando em abortar? - revidei no mesmo tom.

– Caramba, nossa vida é realmente o pior inferno de todos. Vamos dividir isso logo.

Dividimos o resto e comecei a me sentir muito leve. Muito, muito leve.

– Não existe alguma contra indicação sobre o uso de drogas com bebidas? - perguntei com a voz sonolenta.

– Sim. Pode causar alguma coisa. Acho que câncer no pulmão. - encostou a cabeça em meu ombro.

– Isso é cigarro, seu idiota. - dei um tapa em sua cabeça - Bem, se eu tiver a sorte de ainda ter o suficiente da tal droga em mim, isso vai me matar. Nesse momento morrer parece um sonho inalcançável.

– Á nossa maldita vida. - balançou a garrafa com a ultima dose no fundo como se estivesse brindando.

Ao invés de responder, apenas fechei os olhos e deixei que aquela enorme quantidade de álcool tirasse todo o peso de meus ombros e com ele minha consciência.