A Última Chance

Parte IV - Capítulo 68 - Sem Esperanças


Capitulo 68

Sem Esperanças

Sangue.

Essa palavra me assustava no momento.

Tudo o que eu enxergava tinha manchas disso, desde a primeira agulhada que senti em meu pescoço. E também via outras coisa. Vultos, brilhos estranhos, e também ouvia outras. Os relinchos de cavalos eram os mais constantes - e os mais estranhos. Tudo isso me assustava tanto que tinha de me esforçar para não acabar gritando ou correndo que nem uma maluca. Umas das coisas que me mantinham alerta para o que era e o que não era real era o corte em minha mão. Quando as alucinações se tornavam insuportáveis apertava-a, e a dor me trazia de volta.

Na hora que se seguiu ao meu choro compulsivo, me forcei a deixar de ser egoísta e perguntar como os outros estavam. Preferia não ter perguntado.

– Perdemos a Savannah. - Damen falou em tom delicado, como se soubesse que eu ia surtar - O Ethan está com o corpo dela até agora, onde ela morreu. Não quer deixar ninguém chegar perto. O único que ele permitiu foi o Reed. Mas ele foi com os outros para Woodburry. Prometeu que vai matar o Governador, mas duvido que o faça. Mas Reed tamém era muito ligado á Savannah. Está arrasado.

Me segurei para não ter outro ataque de choro e enterrei o rosto no ombro de Damen. Savannah era uma pessoa especial, sem dúvida. Nesse momento me sentia reponsável por ela, por ter sido eu a levá-la para nossa casa, então a culpa por não ter cuidado dela, não ter estado ao seu lado quando precisou, era nítida dentro de mim. E também tinha outras culpas.

– Jamie está morto. - minha voz saiu abafada por esta com o rosto enterrado em sua clavícula, sentindo meu corpo ceder e voltar a balançar com soluços baixos - Ele morreu para me proteger... O Governador ia me matar, e ele não deixou. Levou dois tiros. Eu me odeio com todas as forças. Eu devia ter morrido. Há muito tempo, entende? Mas alguém sempre vai no meu lugar. Sou a pior pessoa do mundo. Todos á minha volta morrem... Talvez fosse melhor você e a mamãe terem continuado perdidos.

– Hey, hey... Não fale assim. As pessoas que morreram para salvar você é porque te amavam, assim como eu te amo e faria a mesma coisa. Assim como sei que você faria por eles. - falou apertando os braços ao meu redor.

– A mamãe está com raiva de mim, não é?

– Claro que não. Só está um pouco instável ultimamente.

Limpei as lágrimas e tentei forçar um sorriso. Não tinha como melhorar as coisas, e chorar não traria ninguém de volta ou faria as alucinações vermelhas pararem. Então eu devia ajudar, tentando acreditar que quando o sol nascesse novamente tudo estaria de voltar ao normal, como se tudo fosse apenas um pesadelo.

– Vou falar com Ethan.

– Acho melhor não... - falou um pouco constrangido - Ele está um pouco agressivo, e você precisa descansar. Está com uma cara doentia.

– Obrigada pelo elogio. - tentei dar um sorriso ironico, que não deu muito certo, e me levantei meio cambaleante.

– Não há de quê.

Tentei revirar os olhos mas parei no meio do caminho por causa da dor que se alojava logo atrás deles. Foquei em meus pés para não cair e dei uma passo de cada vez, lentamente, testando meu equilibrio, e fui aumentando o ritmo até estar numa velocidade aceitável que não me fizesse cair e ignorando a manchas de sangue. Queria muito saber o que colocaram em mim para causar essas alucinações. O que me lembrou.

Milton e Andrea.

Ao lembrar, dei um pulo tão grande que quase caí não chão, mas me segurei á parede á tempo. Como pude me esquecer? O que será que foi feito deles? O Governador descobriu que eles sabiam das minhas mentiras? Ainda estão vivos? Se estivessem, os nossos que tinham ido para Woodburry os trariam de volta?

As perguntar giravam tão rápido em minha mente que me deu ânsia, e forcei meus pés a continuarem seu caminho. Não era fraca, não me deixaria vencer. Não depois de tudo o que fizeram por mim.

Finalmente cheguei á “ponte”, onde Ethan estava sentado no chão de costas para mim. Parei á porta.

– Ethan?

Esperei por uma resposta, mas ela não veio, então cheguei mais perto. O corpo de Savannah ainda estava ali, a cabeça repousada sobre seu colo como se estivesse somente dormindo e o lago de sangue que saia de sua garganta e de sua cabeça com certeza não eram alucinação. O vento ali estava forte e frio. Me abracei tentando me esquentar e senti um arrepio de medo descer por minha coluna.

– Quando você chegou lá em casa com ela - começou depois de um tempo, a voz vaga - pensei que não podíamos confiar nela. Na verdade não confiei, até o dia em que estávamos sozinhos e ela começou a falar sem parar, tagarelando. Meu primeiro pensamento foi que ela falava demais. Mas então ela me contou sua história... Não tinha como não me apaixonar por ela. Sav sempre foi perfeita, não importa que digam o contrário. E então chegou Melissa pra estragar tudo. Na verdade, fui eu quem estraguei tudo. Eu estraguei tudo.

– Ela te perdoou. - sussurrei, sem ter certeza se devia falar ou não.

– Savannah pode ter me perdoado, mas eu nunca vou conseguir me perdoar. Muito menos agora. Podíamos ter vivido mais coisa, se não tivesse feito a escolha errada. - agora sua voz estava embargada, e tinha certeza que estava chorando.

– Me desculpe. - pedi - Se eu não tivesse levado ela para nossa casa ela não estaria morta agora.

– E eu não a conheceria.

– Ela acharia outra maneira de nos encontrar. Era uma garota esperta. - minha voz ficou abafada pelo nó na garganta.

– Não é sua culpa. Eu que devia estar aqui com ela, protegendo-a. Mas escolhi ficar lá dentro, onde a maioria dos homens do Governador estariam.

Andei com passos titubeantes até o seu lado e pousei uma mão sobre seu ombro. Com um suspiro melancólico e um ultimo soluço, tirou a cabeça da garota delicadamente de seu colo. Não sabia se era por estar muito escuro ou pelo sangue que secou ali, seus cabelos pareciam negros e estranhos, a pele tão pálida que me dava vertigem.

– Todos precisamos dizer adeus uma hora ou outra. - sussurrou se levantando - Só não queria que fosse tão cedo.

– Mas e a Savannah?

– Assim que amanhecer a enterramos.

Passou por mim como se eu não estivesse ali e foi embora, me deixando sozinha com o corpo deitado delicadamente. Se não olhasse direito, podia jurar que seu peito descia e subia numa respiração lenta, que estava apenas dormindo. Essa visão fez minhas mãos começarem a tremer e os olhos arderem. Meu corpo parecia estar indo á direção contrária: quanto mais tentava controlar todas as emoções que corriam por meu corpo, mais elas lutavam contra todo esse esforço e acabavam vencendo. Sentia como se um peso enorme empurrasse meus ombros para o chão, e logo eu desabaria. Se eu desabasse, tinha certeza, morreria esmagada.

Com um enorme afinco, consegui desviar os olhos do sangue que escorria para a parte levemente inclinada e caiam no pátio abaixo. Com certeza essa visão jamais sairia da minha cabeça.

– Adeus, Sav. - sussurrei olhando para o céu limpo e cheio de estrelas. Não era mais criança para acreditar nessas coisas, mas era reconfortante pensar que ela havia se tornado uma delas.

Refiz meu caminho, e então reparei no estado em que os outros se encontravam. Pareciam exaustos, mais magros, sem vestígios de esperança, praticamente mortos vivos, ainda arrumando as coisas por ali. Alguns me lançavam sorrisos fracos mostrando que estavam felizes por eu estar de volta, mas nada mais que isso. Fui direto para minha cela e deitei em minha cama. Precisava urgente de um descanso, ficar deitada na cama por pelo menos uma hora. Deixar a tontura passar.

Estava quase dormindo quando a metade que não estava usando do colchão afundou sob outro peso e um braço passou sobre meu corpo. Abri os olhos depressa encontrando uma cortina de cabelos dourados sobe meu queiro.

– Kal? - o chamei, e seus olhos verdes se encontraram com os meus, tristonhos.

– O que? - falou de forma que deu a entender que não queria falar.

– Nada... - passei a mão por seu cabelo.

Ele se aconchegou ao meu lado, fechando os olhos. O abracei e fechei os olhos também, dormindo quase que instantâneamente, dando lugar á um sonho em que eu corria por uma floresta segurando a mão de uma mulher, zumbis sangrentos em nossos calcanhares.

Quando acordei, a primeira coisa que percebi foi a luz que entrava ali. Provavelmente já passava do meio dia. Esfreguei os olhos e ouvi meu estômago roncar. Não comia há três dias, era incrível eu ainda não ter desmaiado. Ou seja lá o que injetaram em mim ajudou.

Coloquei as pernas para fora da cama notanto pela primeira vez o quão doloridas estava e como minha cabeça latejava. Como costume, olhei embaixo do travesseiro, onde tinha uma faca. Mas aquela não era a minha. Damen. Mesmo assim a peguei e a prendi na calça, na presilha do cinto. Me levantei e saí da cela, encontrando os outros, até quem tinha ido á Woodburry.

– Andrea? Milton? - foi a primeira coisa que saiu de meus lábios.

– Não. - foi Michonne quem respondeu, sentada na escada e apoiando o queixo no punho de sua katana.

– Não de... Não encontraram, ou não de... - parei de falar rezando loucamente para ser a primeira opção.

– “Não” de morreram, não vão voltar, garota. - ela respondeu em um tom perigoso e ressentido - Assim como todos naquela cidade! O Governador matou todos eles! Todos!

Abaixei a cabeça sentindo toda a culpa e tristeza que tentara deixar para trás voltar com força total. Sem olhar para mais ninguém e tentando me controlar, praticamente corri dali. Ignorei alguém que me chamava e meu estômago gritando para voltar e comer alguma coisa e fui para fora. O vento forte e o sol muito quente atingiram meu corpo e então me deixei cair mais á frente, na grama. Não sabia se um dia conseguiria me levantar novamente, mas no momento a única coisa que importava era tentar não enlouquecer com tudo isso. Como uma pessoa podia se manter forte numa situação dessas? Não conseguia acreditar que Andrea e Milton estavam mortos. Todos em Woodburry. Até Cassie. As crianças que eu via brincando.

Nenhuma lágrima saiu de meus olhos, e o ronco em meu estômago parecia um lamento. Talvez meu pequeno bebê estivesse tentando se comunicar comigo.

Meu bebê.

Isso ainda era tão surreal, tão impossível. Devia ter escutado Lori, quando avisou que isso acabaria acontecendo se não tomasse cuidado. E agora ela está morta, assim como estarei se essa criança nascer. Porque devo encarar os fatos, se a Lori não conseguiu, como eu posso fazer isso? Tudo bem, alguns fatores complicaram a vida dela, como o parto do Carl ter sido cesariana. Isso realmente dificulta as coisas. Mas ainda sim minhas chances eram mínimas. Qualquer pequena complicação poderia me matar.

O que me levava á outra parte: como contar a Daryl?

Tinha quase certeza que ele não seria a pessoa mais animada nisso tudo. Ele era imprevisível, mas acho que não encararia a paternidade com olhos tão bons. Tinha certeza de que a maioria das pessoas tinham ouvido a minha briga com minha mãe no dia anterior, então elas já deviam saber minha situação, e isso tudo não demoraria a chegar aos ouvidos de Daryl. Ou de Merle, e então ele contaria ao irmão. E se não soubesse por outra pessoa, saberia por minha barriga que logo estaria maior. Se já não estava.

Apoiei o queixo nos joelhos tentando pensar no que fazer. Os nomes rodavam em minha mente, todos os que tinham morrido, todos os que morreram por minha causa, e todos os que provavelmente morreriam. Kalem. Não era a melhor pessoa para cuidar dele. Damen. Daria a vida por mim assim como faria isso por ele a qualquer momento. Meu futuro filho. Esse era o mais condenado de todos. Ter eu como mãe já era uma enorme maldição.

A grama á minha frente de repente pareceu vermelha demais e fechei os olhos tentando fugir de mais essa alucinação. A luz do sol que dançava através das minhas pálpebras sumiu subitamente e abri os olhos assustada.

Á minha frente, um olho me encarava furiosamente e podia sentir o outro, atrás do tapa olho, me fuzilando acusadoramente. Governador.

Soltei um curto e agudo grito apavorado enquanto tentava me mexer, sem conseguir. Uma mão tomou meu ombro com força, praticamente me balançando. De repente conseguindo me mover novamente, peguei minha faca e apontei para o homem á minha frente, a mão trêmula. Minha visão escureceu um pouco e pisquei, voltando á realidade.

– Não acho que isso é necessário. - Daryl me olhava impassível e inexpressivo.

– Me desculpe. - abaixei minha mão lentamente com a respiração descompassado e me levantei - Já faz um tempo que não consigo saber o que é realidade ou... Apenas minha mente.

– Mas tenho certeza de que é capaz de me dizer se está grávida ou não.

Fiquei por um tempo encarando-o. Ele não parecia feliz. Não que eu esperasse isso, mas... Bem, sonhar ainda não é tão incomum assim. A única coisa que conseguia ver através de seus olhos era algo como severidade. Ótimo, tudo o que me faltava no momento era escutar um sermão sobre como fomos irresponsáveis.

– Eu... - começou, mas o interrompi, falando tudo num fôlego só.

– Antes de tudo, só quero lembrar que não fiz essa criança sozinha.

– Tudo bem... Não vou me esquecer. - apertou a ponte do nariz por um momento.

E então me puxou para um abraço.

Entre o choque e o choque maior ainda, consegui retribuir o abraço hesitante. Não sabia o que isso queria dizer, mas era bem melhor que ele ficar com raiva de mim.

– Sinto muito te fazer passar por isso. Devíamos ter encarado aquilo há seis meses atrás como o final disso.

– Ah, aquele dia na torre foi épico. - só quando ouvi minha própria voz percebi que estava chorando, mais uma vez – Eu não vou conseguir fazer isso. Não vou. Não tenho como sobreviver a isso, e estou com medo. Todos á minha volta acabam morrendo, e se acontecer o mesmo com ele? Ou você? Se mais alguém morrer eu juro que não vou suportar. E essas alucinações... O que colocaram em mim... E se tiver ido para o bebê? E se nascer com algum problema? Ele vai crescer com medo e...

Engasguei e não consegui mais falar.

– Eu sei. - falou simplesmente.

A dor em meu peito era dilacerante. Nada daquilo pareceu tão real até Daryl concordar com tudo isso. E sabia que tudo só iria piorar.