A Última Chance

Parte IV - Capítulo 63 - Reunidos


Capitulo 63

Reunidos

Quanto mais o carro se balançava, mais eu me sentia vaga. Estava aberta, exposta. Eu e meus sentimentos.

Não conseguia me lembrar de nada depois de Dennis ter morrido, atém de me sentir sendo empurrada e uma ardência no rosto. Ariane gritava comigo algo como "a culpa é sua" e "você quem devia ter morrido" e apesar de já ter me dado um tapa na cara ainda queria me bater, mas foi impedida por alguém. Mas o que ela disse não era nada que eu já não tivesse percebido por mim mesma.

Depois de enterrá-lo, todos nos afundamos num silêncio profundo, cada um com sua dor. A dor da perda é a pior que existe, pois é a saudade multiplicada por um milhão, mas nada se comparava ao que eu estava sentindo. Não consegui me mexer por um bom tempo, apenas fiquei olhando pela janela gradeada onde o corpo de Dennis estava enterrada - onde o meu corpo de via estar. Devia ser eu ali, eu devia estar cuidando da bebê e que devia ter sido mordida. Era para o plano ter sido seguido, e ele estar ali, sentado naquele lugar ao lado de Carl no carro. Na verdade, eu nem devia ter saído da prisão mas fui praticamente obrigada por alguém - não me preocupei realmente em ver quem era -, que disse que se não fosse para fora e agisse, descontasse tudo o que estava sentido, enlouqueceria. Quase ri desse comentário; eu já estava enlouquecendo.

Apesar disso, sair daquele lugar estava sendo bom. Me distrair, ficar longe de todas aquelas lembranças e dos olhares ameaçadores de Ariane. Estava assustada, mais do que nunca. Precisava de um abraço e não de qualquer um, eu precisava do abraço da minha mãe, onde eu poderia desabar e chorar e dizer tudo o que estava sentindo e ela apenas beijaria o topo da minha cabeça e diria que tudo iria ficar bem.

As árvores que passavam por nós foram aumentando e podia ver um ou outro zumbi andando por entre elas. Nunca tinha reparado muito neles, mas um em especial me chamou a atenção por sua roupa. Era um homem e usava um jaleco verde de hospital. Me peguei imaginando como teria sido a vida dele antes, se era um médico ou cirurgião, do que cuidava, se era pediatra ou cardiologista ou neurologista... Se ele tinha família, uma esposa, filhos. Qual teria sido seu nome. Apesar de matarmos aquelas coisas, um dia elas foram como nós e com certeza lutaram para tentar viver, mesmo que por pouco tempo. Por aquelas pessoas que estavam mortas, elas mereciam que encontrassem uma cura. Deviam encontrar uma cura. Em algum lugar ainda devia existir um médico ou biólogo disposto a estudar esse maldito vírus, tenho certeza, e um dia esse médico ou biólogo (quem sabe um cientista louco) descobriria a cura e não teríamos mais medo.

Viajei por um bom tempo nesses pensamentos, mas então voltei para a realidade. A quem eu queria enganar? Isso nunca aconteceria. No mínimo 90% da população mundial devia estar morta, e todos os que continuavam vivos deviam estar lutando para permanecer assim, não fazendo pesquisas.

Suspirei cansada e voltei a observar as árvores, e foi quando passamos por um homem - um homem vivo - acenando desesperadamente para o carro. Me endireitei no banco esperando que Rick parasse, mas ele passou direto como se não tivesse visto o homem. Eu ia argumentar, mas recebi um olhar pelo retrovisor que me advertia a não abrir a boca. Suspirei novamente e me larguei no banco.

Assim que passamos pelo homem, minutos depois, o carro atolou na terra ao contornarmos os carros parados na estrada, e tivemos que sair para ajudar.

– Está tão calado. - comentei com Carl.

– Não tanto quanto você. - retrucou, e dei de ombros.

Michonne e Rick não demoraram a arranjar um jeito de tirar o carro, e quando estavam terminando de arrumar tudo, um grito foi ouvido e do final da curva de onde tínhamos vindo o mesmo homem que pedia carona corria agitando os braços por cima da cabeça e Rick fez sinal para que entrássemos logo no carro.

– Eu fico. - falei pegando minha arma presa no cós da calça e esticando a mão para Carl me dar uma faca que estava no banco ao seu lado.

– Tem certeza? - Michonne me avaliou inexpressiva.

– Vão logo. - falei apenas retribuindo o olhar severo de Rick.

Logo o carro já tinha dado a partida e foi embora, enquanto eu assistia o homem desacelerar e começar a andar normalmente, olhando para mim esperançoso. Mas essa esperança pareceu enfraquecer quando viu a arma em minha mão. Ele parou uns metros de distância olhando do meu rosto para a arma, e tomei a iniciativa de andar até ele.

– Essa arma não é para você. - sorri complacente - Quem é você?

– Sou Charlie. - esticou a mão para mim, dando um sorriso cercado por covinhas.

– Meu nome é Delilah.

– Minha irmã mais velha se chamava Delilah. - seu sorriso diminuiu; provavelmente ela devia ter morrido quando tudo isso começou, como a maioria das pessoas.

– Bem - fugi do assunto -, você carrega muita coisa ai, não é?

– Sim, tenho feito uma viagem muito longa. - arrumou a mochila alaranjada nos ombros desconfortável.

Quando ia perguntar de onde estava vindo, ouvi um barulho que me deixou alerta e apertar mais a arma que tinha em mãos. Tinha zumbis chegando.

– Me ajude a achar o carro em melhor estado daqui. - pedi já começando a analisá-los.

– Você vai roubar um? - perguntou.

Sua voz assustada me fez virar para encará-lo. Pela primeira vez o observando, reparei que ele não parecia estar andando por ai há muito tempo. Sua barba estava bem feita, sua aparência de homem de quarenta anos bem cuidada , seu cabelo castanho encaracolados ainda estava mais ou menos partido de lado e sua camisa de flanela vermelha estava limpa até demais, apesar das calças estarem com grandes marcas de terra.

– Se quiser, pode pedir emprestado para o dono dele. - falei ironicamente apontando para os zumbis que apareciam na curva.

– O azul. - falou assustado.

Fomos para o carro azul - um impala antigo e com a pintura descascando e não tivemos nenhum problema para entrar; a janela estava aberta. Assim que entramos, fechamos as janelas e eu me deitei no chão do carro para ver a parte de baixo da carcaça. Passei a mão ali até encontrar uma linha funda e a acompanhei formando um quadrado. Coloquei uma mão em cada lado e, usando as unhas para colocar por dentro das linhas, puxei o painel, tirando-o.

Algo bateu na janela do carro tirando minha concentração dali, mas me obriguei a continuar, não podia demorar e sabia que aqueles barulhos eram zumbis querendo entrar.

– Tem lanterna ai? E uma chave de fenda? - perguntei a Charlie.

– Lanterna eu tenho, mas chave de fenda não.

– Caneta?

Ele colocou uma lanterna pequena e uma caneta em minha mão. Iluminei o painel*, retirei o fio vermelho e conectei do outro lado do "tambor" da ignição. Com a caneta, puxei um fio preto no fundo e desconectei o amarelo. Bati a ponta de um fio no outro, ouvindo os estalidos de eletricidade esperando que o carro pegasse logo. Alguns estalos depois, o motor ligou e eu quase dancei de emoção. Com dificuldade - e um sorriso no rosto por ainda saber fazer uma ligação direta - me sentei e pirei no acelerador, passando por cima de um zumbi.

– Onde aprendeu a fazer isso? - Charlie perguntou com os olhos arregalados.

– Meu pai me ensinou. - analisei sua expressão, notando que ele era bem parecido com meu pai, tirando a diferença de cor no cabelo e nos olhos.

– Que tipo de pai ensina a filha a roubar carros? - perguntou indignado.

– Ele também me ensinou a atirar com armas de fogo, arco e flecha, luta e direção defensiva. - dei de ombros - Essa é uma das consequências de crescer numa família de militares.

– Ah. Entendi. Bem, de qualquer forma ele deve estar muito orgulhoso de você.

– É, deve... - falei baixo - Então, de onde você vem?

– Sou de Washington. Trabalhava no CCD de lá há anos atrás, mas depois fui transferido para a unidade de Macon.

– Espera um pouco. CCD, Centro de Controle de Doenças? - apertei o volante ansiosa.

– Sim. Eu queria trabalhar na unidade Atlanta, mas não consegui vaga lá.

– Tem sorte. Aquela unidade explodiu, pelo que fiquei sabendo. Mas me conte... A unidade Macon ainda está aberta? - perguntei tentando não parecer tão ansiosa.

– Não, ela também explodiu. Sabe, a história com a energia e tudo mais. Mas eu e meus colegas conseguimos alguns avanços.

– Onde eles estão? - perguntei sem pensar.

Charlie não respondeu. Apenas ficou olhando pelo para brisa pensativo.

– Ah, me desculpe. não devia ter perguntado. - me senti culpada.

– Não se preocupe. - balançou a cabeça sem se importar - Eles morreram alguns dias atrás. Ficamos na unidade por muito tempo, não nos adaptamos á vida aqui fora. Só sobrevivi até agora porque os zumbis que nos atacaram estavam muito ocupados se alimentando deles para se preocupar comigo.

– Sinto muito. Se isso te consola, também perdi muitas pessoas nos últimos tempos. perdi um amigo hoje mesmo... - me interrompi sentindo minha garganta apertar.

– Ele era especial para você? - perguntou compreensivo.

– Não... Quero dizer, sim, mas é que... Ele morreu por minha culpa. Era para eu ter morrido. - sussurrei.

– Então foi por isso que me ajudou.

– O que quer dizer com isso?

– Está me ajudando para tentar se redimir. Vamos falar sério, seus amigos não iam parar por mim. E não acho que você também fosse.

– Não sou uma assassina. - murmurei infantilmente com os olhos marejados.

– Por isso mesmo tem necessidade de se redimir. Você está se sentindo culpada, e quer fazer algo que diminua isso. - deu de ombros.

– Você era psicólogo?

– Não.

– Então cala a boca. - pisquei para retirar as lágrimas, voltando a atenção para a estrada.

– Quantos anos tem?

– Dezoito.

– E eu tenho quarenta e um. Isso se meu aniversário já não tiver passado. - falou risonho - Sei do que estou falando.

– Eu sei. - dei de ombros - Só não sou muito boa para lidar com verdades. Mas me conte, você estava pesquisando esse vírus ou o que seja que transforma as pessoas em zumbis?

– Sim. Chegamos a algumas conclusões, mas não conseguimos completar a pesquisa por causa da energia. O lugar para onde estamos indo tem energia? Eu poderia terminar minhas pesquisas lá. Ou tentar, pelo menos.

– Não. Não mais. Tivemos problemas com isso e tivemos que cortar algumas coisas que usam energia, só permanecemos com o que aquece a água dos chuveiros. Precisa mesmo de energia?

– Sim. E de alguns equipamentos.

Ficamos em silêncio o resto do caminho, e durante todo esse tempo fiquei pensando que se alguma força maior, como Deus, realmente existia, tinha escutado meu pedido. Talvez conseguíssemos uma forma de Charlie continuar procurando a cura, e o mundo não estivesse totalmente perdido.

Chegamos á prisão e buzinei, tentando chamar a atenção de alguém. Em questão de segundos, várias pessoas estavam ali apontando suas armas em nossa direção.

– Tem certeza que eles são amigos? - Charlie ergueu uma sobrancelha sarcasticamente.

– Estamos num carro diferente, que não reconhecem. Fomos atacados por humanos ontem pela manhã, ainda não nos restabelecemos completamente.

– Atacados por humanos. - repetiu em voz baixa incrédulo.

Abri a janela e tirei a cabeça para fora. Assim que me reconheceram abaixaram as armas. Glenn abriu o portão e, assim que entrei, voltaram a levantar suas armas na direção de Charlie.

– Hey, não atirem nele. Ele é amigo. - falei pegando a mochila dele no banco de trás.

– Porque trouxe ele para cá? Quer vê-lo morrer também, ruiva psicopata? - Ariane falou com um sarcasmo carregado.

– Cala a boca, loira de araque. - revirei os olhos.

Ariane ia responder, mas Herschel parou a conversa sendo o primeiro a ir dar as boas-vindas ao homem que permanecia ao meu lado.

– Como se chama, rapaz? - perguntou apertando sua mão.

– Charlie, senhor.

– Espero que ache agradável esse lugar, porque a maioria de nós não acha. - sorriu afável.

Charlie relaxou os ombros tensos e também sorriu, parecendo se sentir em casa.

Andei um pouco até poder abraçar meu irmão pelos ombros, que permanecia tímido atrás de Ethan, e lhe dei um beijo na bochecha.

– Como... - comecei a perguntar, mas fui interrompida por um tiro, e então um grito.

Empurrei Kalem para o chão e puxei minha arma, apenas para ver uma mulher imobilizando Reed no chão com uma chave de braço e outra mulher e um homem apontando armas para nós. Mas eles estavam em menor número, muito menor, mesmo contando com uma mulher que conseguisse imobilizar um homem enorme como o Reed.

E eu reconheceria aquelas três pessoas em qualquer lugar.

– Mãe?

– Lia! - ela sorriu e, por baixo dos óculos de grau, seus olhos marejaram.

– Mamãe. - Kalem se levantou num pulo (se recuperou até rápido demais) para abraçá-la.

Continuei parada, assistindo os dois se abraçarem. Minha cabeça estava rodando e não conseguia respirar direito; era muita informação. Minha mãe estava ali. Olhei para as outras duas pessoas. Tia Connie já tinha soltado Reed - que mexia o ombro parecendo sentir dor - e meu irmão, Damen, me olhava com a cabeça inclinada para o lado, como sempre fazia quando algo o incomodava. Ele tinha mudado bastante. Estava mais magro, além de mais forte, e os cabelos ruivos continuavam curtos mas ao invés do espetado arrumado milimetricamente eram bagunçado, uma ponta para cada lado e maior que a outra. E ainda continuava lindo. Como os braços da minha mãe já estavam ocupados, andei lentamente em direção a Damen, cada passo contado pelo medo de ser tudo um sonho e eles desaparecerem de uma vez. Parecendo não aguentar mais minha lerdeza, ele andou a passos largos até mim e me deu um abraço forte, me tirando do chão.

– Senti sua falta, baixinha. - falou alegre.

– Eu sou do seu tamanho. - retruquei coma voz sem emoção, ainda mortificada.

– Eu sei.

Ficamos assim por mais um minuto e me soltei dele, querendo ver melhor minha mãe. Ela me pegou num abraço caloroso. E rápido.

– Onde estão os outros? - perguntou alegre.

– Os outros?

– Sim. Austin, Leonard, Charity...

Mordi os lábios. Não iria responder. Mas ela entendeu o que meu silêncio significava.

– Gael? - Balancei a cabeça - Sue?

Sua boca se abriu no que me pareceu uma tentativa falha de gritar e seus olhos se encheram de lágrimas. Ainda sim, ela sorriu e balançou a cabeça em compreensão.

– Tudo bem... Eu já sabia que isso poderia acontecer. E o seu pai?

Abaixei a cabeça. Essa sim era uma pergunta que não iria responder. E pude ouvir seus soluços altos. Meu pai sempre fora o amor da vida dela, ela fazia de tudo por ele. Sabia que sua reação seria a pior.

– Espera, espera. Não estou entendendo mais nada. - Matt, que estava apoiado em Beth por sua perna machucada, falou - Quem são eles?

– Essa é a nossa família, inteligente. - Ethan revirou os olhos, seu braço ao redor dos ombros de sua mãe.

– Oba, mais gente. - Lola comentou desanimada.

– Só está assim porque seu ultimo palpite estava errado, Lola. - Savannah a olhou irritada.

– O que quer dizer com isso? - perguntei tendo um pressentimento ruim.

– As meninas superpoderosas são de Woodburry. - Daryl respondeu como se isso não fosse surpresa nenhum. Bem, talvez realmente não fosse.

– Tem certeza? - perguntei.

– O pivete e meu irmão as reconheceram. - respondeu.

Ergui a sobrancelha ao reconhecer Jamie como o "pivete". Voltei a atenção para a discussão que se iniciava sobre Lola estar errada ou não. Aquele grupo realmente era difícil.

Entramos na prisão enquanto eu ouvia minha mãe, tia Connie e Damen se revesando para contar sobre sua trajetória até a casa da vovó em St. Louis, e quando chegaram lá ela já tinha sumido, como o exército não queria deixar eles saírem da cidade que estava isolada e tia Connie deu uma surra num dos soldados.

Passamos do lado da parte isolada onde as garotas, Merle e Jamie estavam presos, e Isabela nos olhou com um misto de raiva e tristeza. Parei um pouco ali e a observei por um segundo.

– Porque fez isso? - perguntei antes que pudesse me conter.

– Porque não faria? - devolveu a pergunta - Você não entenderia. Sua vida é perfeitinha demais.

Dei de ombros e voltei a andar. Alguns passos á frente, ela gritou de volta, chamando a atenção de todos.

– Quer saber porque sai de lá? Aquele lugar é um inferno. Antes de tijolos e muros, aquele lugar é construído por mentiras. Todos tem um preço para ficar lá dentro, pode não ser cobrado quando entra lá, mas uma hora ou outra vai ser. E você não imagina o que eu tive que dar em troca da segurança da minha irmã.

Todos ouviam atentamente o que ela dizia, e ficamos em silêncio esperando que ela continuasse.

– Você não tem ideia do que é ser usada como um brinquedo para satisfazer aqueles homens idiotas e nojentos. Eu nunca faria isso, mas não aguentaria ver outra irmã morrer, eu tinha que manter Isadora segura, e essa me pareceu a única maneira até escutar sobre essa prisão e que pessoas vivas viviam aqui. Ainda pergunta porque eu vim para cá?

Em seu rosto eu não via nenhuma tristeza mais, apenas raiva e nojo, e eu podia entender aquilo. Não da maneira como ela sentia e via aquilo, isso nunca poderia entender, mas entendia seus motivos.

A única pessoa que se moveu depois disso foi Daryl. Ele abriu o lugar e deixou as três garotas saírem. Isabela me encarou franzindo os lábios muito vermelhos e abraçou a irmã de lado, que chorava compulsivamente.

Sorri complacente para ela e voltei a andar para a seção de celas. Ainda tinha muito o que conversar com minha família, e mais ainda com Charlie. Estava decidida a ajudá-lo de qualquer maneira a continuar suas pesquisas, não importava como. Depois de tudo que vi e ouvi num só dia, essa era minha única esperança, e agora o que me dava forças era ter minha família - ou o que restou dela - reunida novamente.