A Última Chance

Parte II - Capítulo 38 - Melancolia


Capitulo 38

Melancolia

O silêncio que recaia sobre a sala – quebrado apenas pela ocasional batida na porta de ferro por um dos zumbis que insistiam em tentar entrar - parecia deixar o ar espesso, denso, e com uma grande porção de solidão. Um luto por um amigo perdido.

Eu não conhecia muito bem T-Dog, mas sabia que ele esteve no grupo de Rick desde o começo, e era parte daquela família e já salvara a vida de muitos ali. E, por mais que não o conhecesse muito bem, ele faria falta sim.

Menos uma pessoa.

Essa frase ecoava em minha mente me deixando praticamente surdo. Não importava o que fizéssemos, nosso número apenas diminuiria. Talvez o nascimento do bebê de Lori contradissesse isso, mas continuaríamos diminuindo, dia após dia, talvez não por causa de zumbis, mas por um acidente, uma doença... Não é como se tudo tivesse mudado. As pessoas continuariam a morrer, só que com mais frequência e com traços de canibalismo.

Estremeci com meus pensamentos e apertei Savannah, que estava adormecida, em meus braços. Seus olhos ainda estavam inchados por ter dormido chorando, ainda se culpando pela morte de T. Mas não era ela a culpada, e sim eu. Se não tivesse me atrapalhado eu mesmo teria acabado com aquele zumbi e ele ainda estaria vivo.

- Por que não estou em casa? – alguém quebrou as ultimas horas de silêncio, atraindo a atenção de todos.

- Quem disse que você não está? – Lola falou num tom misterioso.

Delilah a olhou como se fosse maluca, enquanto se esforçava para se sentar.

- É sério, porque não estamos em casa?

Respirei fundo antes de cogitar ir para seu lado. Não imaginei o que aconteceria quando Lia acordasse e descobrisse que Melissa ainda estava viva e nos atacou porque não quis matá-la. Com certeza se culparia o resto da vida e tentaria me matar.

Coloquei Savannah deitada delicadamente e fui me sentar ao lado de minha prima agitada que olhava para o rosto de cada um como se conferisse se todos estavam ali.

- Nós fomos atacados. – falei, sendo a maneira mais fácil que encontrei de começar aquela conversa.

- Atacados... Por zumbis?

- Não... – olhei para minhas mãos pensando em como dizer que a pessoa que ela mais odiava e pensava estar morta estava completamente viva e querendo nossas cabeças – Pode parecer meio estranho, mas por humanos. Mas não por qualquer humano... Melissa.

- O que tem ela? – perguntou confusa.

- Melissaestávivaenosatacou.- falei num fôlego só com a voz alterada.

- É o que? Fale direito! – Lia revirou os olhos.

- Melissa está viva e nos atacou. – falei pausadamente, prendendo a respiração em seguida.

Delilah me observou por alguns segundos com a cabeça inclinada para o lado totalmente sem expressão. Eu esperava que ela explodisse em raiva, choro, desmaiasse, ficasse em estado de choque... Qualquer coisa menos o que ela fez. Rir.

- Ok... Ok... Você conseguiu... Me fazer... Rir... – falou entre a risada – Agora fale sério.

- Mas eu estou falando sério. Melissa não morreu. Ela foi à nossa casa nos fez uma proposta e...

- Que proposta? – ela me interrompeu.

- Bem... Se não entregássemos a pesquisa do tio Zack para Melissa, os caras que estavam com ela iriam nos atacar... – olhei para baixo novamente.

- Está mentindo.

- O que? – olhei para ela confuso.

- Você está mentindo. – repetiu tranquilamente – Ou está omitindo. Diga logo antes que eu faça você saber como um tiro dói.

Seus olhos dourados por um momento pareceram negros e ameaçadores. Engoli em seco e suspirei preparando-me para contar a verdade.

- Ela queria as pesquisas e... Você.

- Tudo bem. E porque ela atacou? – Lia perguntou normalmente, como se alguém querendo matá-la fosse completamente normal.

- Está falando sério? – indaguei incrédulo – É obvio que não entregaríamos você!

Delilah obsevou atentamente meu rosto piscando mais vezes que o necessário, seu peito subia e descia freneticamente e seu rosto estava claramente brilhante pelo suor.

- Eu que devia perguntar se você está louco! – ela praticamente gritou, de repente, como se acordando de um transe – Colocar todos em risco por causa de alguém que está á beira da morte? Qual é o seu problema? Você pensou por um minuto que estava se arriscando por pouco? – ela parou um pouco ofegante, soltando um gemido baixinho; estava se esforçando demais – Por favor, me diga que ninguém morreu ou se feriu.

- Tudo bem... – Lola falou do outro lado dela – Ninguém morreu ou se feriu.

- Você também está mentindo. – Lia exclamou indignada – Será que dá para pelo menos alguém ser sincero aqui?

- Quer saber, que se dane! – joguei os braços para o alto em sinal de rendição – Savannah foi esfaqueada e o T-Dog foi mordido. Feliz agora?

No mesmo momento me arrependi de ter sido tão grosso ao ver seus olhos lacrimejando. Mas em certos pontos ela estava certa. Não devia ter arriscado varias vidas por uma. Mas por outro lado, não era a vida de qualquer um, era de alguém da minha família, de alguém que era realmente importante para mim.

- Eu vou voltar a dormir. – Lia sussurrou – E torça para eu não acordar mais, porque se eu acordar é você quem vai tirar um cochilo eterno.

Ela ajeitou o travesseiro sobre si e deitou levemente, como se temesse que qualquer movimento pudesse machucá-la. Suspirei e olhei para os outros, suas faces tristes e sem esperança tentando se desviar da recente discussão.

- Isso já era esperado. – falou Rick, á minha frente – Você a conhece e sabe que nunca aceitaria colocar a vida de outras pessoas em risco por sua vida. Mas ela vai entender.

- Espero que sim. – assenti – Gael e Kalem estão dormindo?

- Estão sim. – pude ouvir a voz abafada de Lori, e suspirei aliviado por eles não terem visto ou ouvido nada. – E... Meu Deus, Gael está queimando em febre!

Praticamente pulei de onde estava e fui até onde as crianças estavam dormindo, entre Lori e Rick, e me agachei na frente da garota. Coloquei a mão em sua testa apenas para confirmar o que Lori havia dito; a pele de Gael estava quente como se brasas tivessem acabado de ser passadas por sua pele.

- Gael... – a chamei baixinho, cutucando-a. – Gael...

Quando ela não acordou, comecei a chamá-la mais alto e balançá-la, mas ela não acordava. Comecei a ficar desesperado, então voltei para o meu lugar, peguei minha garrafa de água e despejei um pouco em seu rosto. E nada. Ela continuou com seu rosto angelical inexpressivo, as pálpebras fechadas, os lábios perfeitamente redondos pálidos e as bochechas mais coradas que o normal. Trouxe-a para meu colo e acariciei seu rosto, ouvindo sua respiração forçada. Despejei mais água em seu rosto, dessa vez em maior quantidade, sem me importar se estava gastando demais. Ela se engasgou quando um pouco dela se infiltrou por seus lábios e abriu os olhos apenas um pouco.

- Eu quero a minha irmã. – ela falou baixinho, voltando a fechar os olhos.

- O que está sentindo? – perguntei ignorando momentaneamente seu pedido.

- Está doendo aqui. – colocou a mão sobre o peito, sem abrir os olhos.

Revistei suas roupas procurando algo que evidenciasse uma mordida, mas não havia nada. Era simplesmente uma doença.

Doença. Baixa imunidade.

Bati uma mão na testa e peguei sua mochila no chão, revirando-a atrás dos remédios. Peguei o primeiro que encontrei e retirei da cartela um comprimido amarelo. Coloquei em sua boca e ela engoliu, enquanto derramava um pouco de água junto.

- Eu quero minha irmã. – resmungou novamente quando terminou de engolir.

A peguei em meus braços e a deitei ao lado de Delilah, que abriu os olhos instantaneamente.

- O que aconteceu? – perguntou acariciando o rosto da irmã que se aconchegou debaixo de seu braço.

- Ela está ardendo em febre. – falei simplesmente.

- Isso está difícil não perceber. Sabe o que ela tem?

- Ela disse que está com dor bem aqui... – apontei pro mesmo lugar que ela tinha apontado.

Lia, com uma careta que revelava sua dor, levou a garotinha para mais junto de seu corpo e beijou sua testa.

- Vai ficar tudo bem, pequenina.

- Eu sei... – ela respondeu com a respiração ainda mais ofegante – Eu te amo.

- Eu também amo você, querida. – falou sorrindo.

E fiquei ali, observando as duas dormirem, pensando o quanto era difícil pensar que elas eram irmãs – de sangue -, não só pela diferença de idade que fazia com que Delilah parecesse mais uma mãe que irmã, mas pela cor dos cabelos e dos olhos. Lia, com seus cabelos vermelhos e olhos dourados, era a cópia exata da mãe, e Gael, com seus cabelos pretos e olhos azuis era igual ao pai. Mas, apesar de todas as diferenças, eram tão iguais.

No meio de um bocejo foi que me lembrei de que não dormia havia mais de três dias. Encostei-me na parede e colo

Fiquei um bom tempo as observando, mas saí de meus devaneios quando Gael acordou com a respiração ruidosa, e levou um tempo até eu perceber que ela simplesmente não conseguia respirar. Lia se sentou tão depressa que se curvou com o rosto tomado pela dor enquanto levava a mão livre ao estômago.

A atenção de todos, que tinham estado quietos até agora isolados em seu luto, agora estava na garotinha que sofria uma convulsão e se contorcia no chão, as costas arqueadas e os olhos revirados. Era uma cena assustadora e, mais que isso, agonizante.

Meu corpo parecia paralisado, simplesmente não conseguia me mexer, por mais que quisesse tentar ajudá-la, e o mundo pareceu girar mais devagar, enquanto um amontoado de gente corria para tentar ajudá-la, mas sem saber o que realmente fazer. Estávamos impotentes; não tínhamos como tentar parar aquilo e nem sabíamos o que era. A única coisa que podíamos fazer era assistir enquanto Gael de revirava, se mexendo como se estivesse se afogando, tentando se agarrar a algo, a respiração tão ruidosa, tão seca, que dava mais angústia, gastura ou desespero. Era muito mais forte.

- Gael... Por favor... – Delilah chorava tentando alcançar a irmã, mas Reed a segurava em um abraço, impedindo-a de conseguir fazer isso – Me solta!

- Água fria, AGORA! – Herschel gritou e alguns (não sabia exatamente quem, não conseguia me focar em seus rostos) se levantaram em busca de água.

Meus olhos não se desviavam da cena á frente. Eu queria fechar os olhos, olhar para qualquer outro lugar, ou pelo menos ter o movimento sobre meu corpo novamente para poder ajudar. Mas tudo sempre tem que acontecer na pior hora possível, da pior maneira possível. Era uma lei. E ela se aplicava muito bem á todas aquelas pessoas ali. Num mundo como aquele, tudo o que conseguiríamos era sofrer cada vez mais, uma perda a cada dia; talvez não de uma pessoa. Mas sempre haveria perdas. Dor. Culpa. Medo. Lágrimas. A expressão “dia após dia” não serviria. Como viver sem ter uma vida? Era simplesmente algo mecânico, natural. Sobreviver. Nosso instinto falando mais alto. E uma hora ou outra, teríamos de aprender a conviver com nossa dor.

E, foi com esse pensamento, que Gael parou de se mover, sua respiração espessa se tornando apenas um pequeno fio de vida, que logo se extinguiu. E então o nada. Apenas o silêncio enquanto tentávamos encarar a dura realidade que nos golpeava. Mas no momento os golpes eram fracos demais para nos fazer acordar daquele momento. Daquele ultimo suspiro que fez com que eu sentisse que era o meu ultimo suspiro. O ultimo suspiro de minha esperança, do que me mantinha com os pés no chão. E o silêncio que se formou ali era mais alto que qualquer grito que pudesse preencher aquele lugar que agora parecia mais sombrio, frio e o cheiro de morte infestava o ar fazendo meu estômago revirar.

Delilah, finalmente se livrando dos braços de Reed, se ajoelhou ao lado do corpo da irmã, levantando-a do chão e segurando-a contra o peito como se fosse seu mais precioso tesouro, enquanto sussurrava coisas que não conseguia compreender em meio aos soluços e lágrimas.

- Delilah, você sabe que ela vai acordar e... – Rick falou colocando a mão em seu ombro, mas o olhar que recebeu em resposta era tão intimidador, selvagem e insano que o fez calar.

Todos ficaram naquela mesma posição por alguns minutos, como se qualquer movimento pudesse fazer tudo o que estava prestes a queimar explodir de uma vez, o silêncio absoluto fazendo de tudo aquilo tão surreal, tão impossível, e tão imperturbável. Mas como a vida gosta de contrariar, o tal “silêncio imperturbável” foi quebrado por um ruído seco e asqueroso.

- Eu não posso... Não posso... – Lia falou balançando a cabeça negativamente, segurando o corpo tão forte contra si que os nós dos dedos estavam brancos.

- Hey, vai ficar tudo bem... – Reed a abraçou de novo, delicadamente afastando o corpo de Delilah do da irmã.

- Sim, vai ficar tudo bem. – repetiu no ouvido do que um dia fora Gael, e que agora acordava novamente dos mortos, mas não a soltou por completo; apenas deitou-a no chão e continuou segurando sua mão, como se se* apegasse á sua ultima esperança.

Os olhos dela se abriram novamente e, dessa vez, não era do azul angelical, mas daquele tom desbotado e doentio, repulsivo, que nos encaravam como alimento.

- Vamos, solte. – Reed falou encarando o ponto em que a mão das duas se agarravam.

- Eu não posso... – resmungou, seu choro aumentando juntamente com as lágrimas que lavavam seu rosto.

Percebendo todos hesitantes, fiz a ultima coisa que podia fazer por Gael. Não havia feito nada para ajudar quando estava viva, deveria pelo fazer o que podia para não continuar daquela forma.

Peguei minha arma sem hesitar e me levantei. Sem medo algum ou pressa, andei até o corpo ali no chão, que esticava a mão como se precisasse urgentemente dela para sobreviver – o que não era totalmente mentira. Ergui a arma e apontei diretamente para a cabeça, mas, no momento de apertar o gatilho, não pude fazê-lo. Simplesmente travei, e por mais que quisesse fazer aquilo não conseguia.

- Droga! – rosnei, jogando a arma do outro lado da sala numa onda de desespero e raiva.

Virei-me de costas para aquele corpo e todas as faces tristes e de certo modo conformadas. E, assim que o fiz, um tiro ecoou pelo lugar me fazendo virar no mesmo momento, procurando de onde vinha.

Ao lado de Delilah, ajoelhado, Daryl tinha a mão em seu ombro com a de Lia sobre a dele, enquanto a outra empunhava a arma apontada para... Gael.

Respirei fundo me recompondo, tentando não sucumbir á dor que já estava presente demais ali, enquanto todos finalmente saiam de suas posições e voltavam a se movimentar, com uma lentidão e tristeza que eram desconfortáveis naquele escuro sem fim.

E, como um deixa, Kalem saiu de sua sombra e correu para a irmã se ajoelhando á sua frente e a abraçando num choro ainda mais desesperado. Naquele momento, todos pareceram se libertar de sua tristeza contida, seu luto silencioso, e finalmente externalizar sua tristeza, sua dor pela perda, não só pela pequena garota, mas por tudo o que haviam perdido desde o inicio de todo aquele caos.