Acordei mais tarde do que esperava, e me arrastei para fora da cama. O pedaço de tecido na pequena mesa ao meu lado me fez lembrar do que aconteceu na noite anterior. Imediatamente, peguei-o e, na fraca luz do sol que já nasceu, fiquei o olhando. Era um tecido surpreendentemente macio, e branco.

Aspirei seu perfume com fervor. Era um cheiro marcante. Uma "fragrância" masculina.

— O ladrão é um homem. - Murmurei, suspirando. Como se o fato pudesse ajudar em alguma coisa. Pelo menos não são os bastardos do comerciante que morava na casa à frente, visto que o cheiro era claramente um homem já mais velho. Como não conseguiria muita coisa, dobrei o tecido com cuidado sobre a cama e fui trabalhar.

Uma das filhas do duque veio visitar-me alguns minutos depois, indo fazer o pedido.

— Para que há de querer um vestido tão bem-feito? - Perguntei após ela terminar de fazer o pedido e escolher o tecido.

— Ora, não sabes? O filho do rei completa quatro anos daqui a alguns tempos, e não demora-se muito. O rei fará uma grande festa para comemorar, já que o menino quase morreu de uma doença séria.

Parei o que estava fazendo, as mãos tremendo.

— A rainha está muito feliz também. Ela não parava muito quieta quando o menino ficou doente. Pobre mãe. Não entendo a dor de ver um filho quase morrendo, mas deve ser horrível.

— Com certeza. - Respondi friamente. O rei não comunicara nada sobre esse acontecimento ao resto do reino. Foi mantido firmemente na nobreza. - A quanto tempo isso ocorreu?

— Dois meses atrás. Lembro-me que chovia muito.

E então eu congelei. A dois meses atrás... Eu estava estranha naquela época, enérgica demais e sempre olhando para o castelo.

Instinto de mãe. Eu ainda o tinha, mesmo sem o filho.

— Senhora? Estás bem?

— Sim, perdão. E será que o reino todo irá comparecer?

Bobagem. Eu jamais iria.

— Não tenha dúvida que sim, Morgana. Até os mais miseráveis. Irás também?

Fiquei calada. Não, eu não iria.

— Posso apresentá-la às minhas irmãs. Elas sempre reclamam que não encontram a alfaiate perfeita, e acham maravilhoso o seu trabalho. Apenas não se animam a vir, por conta desta ser a parte mais pobre do reino. Mas se a verem...

— Tenho muito trabalho. - argumentei, o que de fato é verdade - E vivo muito cansada.

— Entendo. Mas se puderes, vais. Será importante. Para quando ficará o vestido?

— Daqui a uns cinco dias. - Falei, voltando a ficar mais calma - Aí poderás vir aqui buscá-lo. É o menor prazo que tenho.

— Está bom. Até daqui a cinco dias. - Ela sorriu e saiu. Para não pensar em meu filho, comecei já o trabalho da filha do duque. Esperava que assim fosse até mais rápido.

Mais tarde a mulher do vizinho da frente entrou na casa, inquieta, e pediu um vestido para a festa também. Concordei e separei o tecido, observando ela partir, em passos rápidos e sem olhar para trás, como se soubesse que eu já tinha descoberto seu pecado mortal.

Diversas mulheres apareceram para encomendar vestidos mais finos, o que me deixaria com um bom lucro.

Quando já estava perto do pôr do sol, não aguentei mais. Levantei-me e caminhei pela sala pensativa. Algo dentro de mim suplicava que eu fosse ver meu filho, afinal, eu não o tinha visto desde que o larguei na porta do palácio - e o rei não gosta de sair exibindo a criança por aí. Eu poderia ir lá apenas para vê-lo um pouco, pois, mesmo que tenha abdicado do meu papel como mãe, o filho ainda era meu. Parte de mim corria naquelas veias, e isto se via pelos olhos negros como a noite, coisa que o pai não tinha.

Mas simplesmente aparecer por lá? Henry - o rei - quereria me ver? Aceitaria que eu entrasse? Aquele é seu filho único - meu feitiço funcionou perfeitamente - então os cuidados sobre ele são imensos.

Bobagem, já deve ter se esquecido de mim. Além do mais, a magia está do meu lado, sendo assim, sou mais forte. Sou Morgana, a feiticeira.

Mas, e como estaria minha aparência? Fiz alguns gestos e à minha frente surgiu uma espécime de espelho, como um lago límpido. Eu tinha olheiras profundas, estava muito mais pálida e cansada. Os cabelos? Meu Deus!

Estava tão imersa em pensamentos que quando ouvi batidas suaves na porta pulei de susto, desfazendo o espelho. Disse algo meio grogue, e Madalena entrou, um tanto preocupada.

— O que foi? - Perguntei, seca - Viestes por quê?

— Bem... - Começou Madalena, sem graça - Eu tive um sonho confuso e queria pedir ajuda.

— Para mim? Sou uma mera alfaiate.

— Não sei. Algo me diz para vir aqui.

— Tanto faz. - Suspirei, resignada - Senta-te e conta-me.

Madalena o fez e eu também, diante dela. Ela passou a mão com cuidado sobre o ventre ainda não crescido e começou:

— Eu tive um sonho esta noite. E era muito estranho. Eu ouvia o meu bebê chorando do alto de uma torre, que não tinha portas nem escadas, apenas uma janela. Eu gritava chamando ela, e do nada jogaram uma corda da única janela. Quando eu subi, percebia que a "corda" eram os cabelos dourados da minha filha. Mas quando eu fui correr até ela...Eu ouvi uma gargalhada estranha e o sonho acabou. O que isso quer dizer? Estou com medo.

— Eu realmente não sei. - Respondi secamente - Como já te disse, sou meramente uma alfaiate.

— Por favor. - Suplicou Madalena, os olhos carregados de lágrimas - Explica-me o que significa.

— Madalena, eu já te disse que não sei. Sou uma mera alfaiate. Fala com o padre, sei lá. - Eu disse, levantando-me e caminhando até a porta - Ele pode mandar-te rezar alguns pai-nossos, vai depender apenas dele. Agora, por favor, vá. Estou ocupada. - Caminhei até a porta e a abri.

Madalena levantou-se e saiu de cabeça baixa. Fechei a porta. Madalena já me viu conjurando algum feitiço? Se não, por que acreditou que falando comigo ajudaria? Não que eu pudesse ajudar, é claro. Sou feiticeira, não vidente. E, mesmo que pudesse fazer alguma coisa, jamais ajudaria.

Decidi deixar o fato estranho de lado e voltei para o pomar. Suspirei com o ar fresco do anoitecer e aproveitei para pegar algumas maçãs. Voltei para casa e, após devorar as maçãs, dormi.

Tive um sonho muito tranquilo e no outro dia notei que o ladrão não apareceu, o que me deixou aliviada.

xXx

O tempo foi passando e, para meu alívio, o dia da festa ia chegando. Como eu já estava decidida a ir de todo modo (embora por outro motivo), enquanto preparava os vestidos das outras mulheres eu secretamente tecia o meu também, com um tecido especial e caro que havia comprado a pouco tempo.

— Espero usar o vestido. - Comentei para mim mesma em um certo dia, quando já tinha anoitecido.

O ladrão dificilmente dava as caras no pomar, o que também me deixava aliviada. Menos um problema, finalmente. Os dias corriam como nunca, e, quando vi, o dia da festa tinha chegado.

Naquela manhã eu acordei e notei a animação repentina. O dia havia chegado. Passei o dia todo terminando de tecer o meu vestido, que era azul escuro com mangas longas, discreto. Sempre imaginei que ficasse bonita com azul, então não me animei a usar um vestido de outra cor.

A festa começaria depois do entardecer, e logo um pouco antes eu resolvi banhar-me e então escovei os longos cabelos negros com cuidado. Peguei o vestido e o vesti. Era longo, tinha mangas compridas e bufante. Assim que o vesti fiquei observando-me em um espelho que havia invocado com minha magia. Aceitável.

Prendi os cabelos em um coque firme e perfeito, dando destaque ao meu rosto. Com um pouco de magia, fiz as olheiras desaparecerem. Coloquei um colar bonito e o anel negro de minha mãe no dedo anelar direito. Sentia-me como a antiga Morgana, aquela que adormecia nos braços de Henry: jovial, mais uma vez, embora já com trinta e cinco primaveras.

Calcei um par bonito de sapatos e saí de casa. Parei na porta e olhei para os lados. O palácio ficava muito longe. Com poucos gestos, acabei por invocar uma carruagem imensa e dois cavalos brancos. Sentei-me na frente e segurei fortemente as rédeas para guiá-los nas ruas do reino.

Como eram jovens e rápidos, em pouco tempo eu estava já na frente do palácio. Desci da carruagem e, junto dos outros, entrei no salão principal.

Como eu me lembrava, estava lindamente arrumado e polido, o piso era branco e extremamente limpo, de dar inveja. Muitas pessoas conversavam sobre diferentes assuntos, e eu me sentia perdida em meio a praticamente o reino inteiro.

Eu não estava ali para ver meu filho; queria apenas o caos da família real.

Estava vagando por aí procurando por eles quando senti uma mão suave em meu ombro:

— Olha quem está aqui!- Virei-me para ver a filha do duque sorridente. Eu havia dito a ela que não iria - Resolvestes vir, Morgana?

— Mudei de ideia - Falei sem nenhuma emoção.

— Acontece o tempo todo. - Então ela sorriu - Preciso apresentar-te às minhas irmãs. Elas vão adorar saber da notícia!- Ela puxou-me pelo salão, a procura das irmãs. Suspirei resignada. A notícia se espalharia bem rápido.

A filha do duque me apresentou às suas quatro irmãs, e todas tagarelavam tanto quanto ela. Eu fingia que prestava atenção enquanto procurava algo interessante em volta.

— Realmente, acho que esta é uma atitude muito exagerada do rei. - Comentou uma delas, Margareth, o que me chamou a atenção - Até mesmo os mais pobres podem ir lá tocar no príncipe e desejar-lhe muitos anos de vida. Sinceramente, muito ridículo! Pobre criança, tendo que ser tocada por aqueles imundos... - Então ela fitou-me e arregalou os olhos - Oh! Não quero ofender, Morgana.

— Não tem problema. - Falei, querendo voltar no assunto às pressas - Mas diga-me, todos podem ir lá ver o príncipe?

— Sim. Exagerado, não?

— De fato - Concordei - Ele ainda é uma criança, sequer tem noção de que irá governar daqui a um certo tempo. É desnecessário expor ele desta maneira.

— O fato é que eles montaram um baile incrível. Em breve teremos a valsa.

— Estou ansiosa. - menti, fingindo animação. Um vulto mais adiante chamou-me a atenção. Estava mais afastado e o tempo todo recebia olhares. - Se me derem licença. Acho que vi um conhecido.

— Claro, todos estão no baile. - Disse Margareth, com sarcasmo.

Caminhei até ele com certa dificuldade, espremendo-me entre os convidados. Por sorte, fiquei diante dele. Os cabelos castanho-claros reluziam, e ele usava vestes ricas. Ergueu a cabeça para olhar-me. Os olhos negros como a noite não enganavam; era meu filho.

— Olha só... - Abaixei-me para ficar no seu tamanho. - És o príncipe?

— Sim... - Ele pareceu confuso ao me fitar - Você é...

— Sua mãe. - Sorri. A sua confusão. Era o que eu queria.

— M-Mãe? Não, minha mãe está lá dentro...

— Esqueça-a. Eu sou tua única e verdadeira mãe. Não ves? Olhe para teus olhos e para os meus.

Um brilho de reconhecimento passou pelo olhar dele. Ele então sorriu.

— Outra pessoa veio desejar-te felicidades, filho? - Henry apareceu e sorriu para o garoto. Mas então me viu. - Você?! O que fazes aqui?

— Vim ver meu filho. - Sorri sarcasticamente. - Vais me privar disto?

— Ela realmente é minha mãe. - Disse o garoto, fitando o pai. Henry fitou-me com ódio.

— Viestes apenas para colocar coisas na cabeça dele!

— Claro que não! Agradeça que não vim levá-lo comigo.

— Não ouse... - Rosnou Henry, dando um passo adiante. Ergui-me e o fitei, impassível.

— O que farás? Espancará uma pobre alfaiate no meio do baile? Todo o reino está aqui, Henry.

— Sua... Vadia.

— Querido, não os encontrava em lugar nenhum...Quem é esta?

— Conte, pequeno. - Incentivei o garoto - Conte a esta mulher quem sou eu.

— Ela é a minha verdadeira mãe. - Disse ele, abraçando-me. A mulher arregalou os olhos.

— Tu quem deixastes ele na porta do palácio?!

— Eu mesma. - Sorri.

— Ordinária! Sequer passou aqui uma única vez para ver teu filho! Ao menos agora decidiu chegar!

— Olhe quem fala... Fiquei sabendo que ele é o único na linhagem real. O que foi, Henry? Não teves mais nenhum filho? Ah, acho que sei porque. Será que ao menos satisfaz a mulher?

Aquilo pareceu demais. Henry teria saltado em meu pescoço, se a sua esposa não o tivesse impedido. Isso atraiu alguns olhares.

— Por favor, vá embora. - Pediu a rainha.

— Agora que vi meu filho? Não, obrigada.

— Suma daqui! - Vociferou Henry.

— Shhh... Não precisas de escândalo Henry. - Ajoelhei-me e sussurrei no ouvido do garoto: - Se um dia cresceres e veres que tens poderes, não se assuste; é herança da tua mãe. - Ele arregalou os olhos. Levantei-me e, satisfeita, saí sem me despedir.

Alguns olhares caíram em mim, mas não liguei. Voltei para a minha carruagem e logo parti. Cheguei em casa sentindo-me nas nuvens, gargalhando. A reação de Henry fora cômica.

Troquei o vestido por um mais simples, soltei os cabelos e deitei na cama. Imaginei que teria um maravilhoso sono, porém um grito acordou-me imediatamente. O barulho vinha do meu pomar.

O ladrão.