Na manhã seguinte, Kelsey acordou totalmente recuperada da noite anterior. Parecia animada.

Ela olhou para a cachoeira que estava mais rápida e cheia por causa da tempestade e concluiu que não tomaria banho naquele dia.

Eu estava na forma humana e disse a ela que iríamos ao encontro do senhor Kadam.

— Mas e quanto a Kishan? Você não conseguiu convencê-lo a vir conosco?

— Kishan deixou clara sua posição. Quer ficar aqui, e eu não vou implorar a ele. Quando toma uma decisão, raramente muda de ideia.

— Mas, Ren…

— Está decidido.

Eu me aproximei e a puxei pela trança, dando-lhe um beijo na testa. Nossa relação estava voltando ao normal, e isso estava me deixando feliz. Olhei para ela e vi que estava sorrindo. Concluí que ela também estava feliz.

Arrumamos o acampamento em poucos minutos e deixamos o local. Segui à frente dela, como tigre e ela começou a me contar sobre o tempo que passou com Kishan.

Parecia que os dois ficaram muito amigos. Ela me disse que eles conversaram muito e Kishan parece ter confiado em Kelsey a ponto de lhe contar coisas pessoais. Eu sabia que Kishan era um homem de poucas palavras e fiquei surpreso ao saber daquilo. Senti ciúmes.

Então ela começou a falar sobre a caçada.

Parei irritado.

"Kelsey assistiu à caçada!"

Transformei-me em homem e a segurei pelos braços.

— Você viu o quê?

Confusa, ela repetiu:

— Vi a… a caçada. Pensei que você soubesse. Kishan não lhe falou?

Rangendo os dentes, eu disse:

— Não, não falou!

Eu que evitava me alimentar como tigre na frente dela, fui visto caçando. O que há de mais animalesco do que isso?

Kelsey desviou-se de mim e me deu as costas.

— Ah. Mas não importa. Eu estou bem. Consegui voltar.

"O quê? Ela voltou sozinha para o acampamento?"

Eu a segurei pelo cotovelo e a coloquei no chão à minha frente.

— Kelsey, você está me dizendo que não só assistiu à caçada como também voltou para o acampamento sozinha?

Eu estava mais do que furioso.

— Foi.

— A próxima vez que vir Kishan, eu vou matá-lo. Você poderia ter sido atacada! Não posso nem citar todas as criaturas perigosas que vivem na selva. Você nunca mais vai sair do meu lado!

Eu a puxei pela mão para que ela caminhasse comigo. Eu não deveria ter confiando em Kishan. Ele foi totalmente inconsequente. Eu estava absolutamente irritado e tenso.

— Ren, eu não entendo. Você e Kishan não conversaram depois de sua… refeição?

— Não. Cada um foi para o seu lado. Voltei direto para o acampamento. Kishan ficou perto da… comida um pouco mais. Não devo ter sentido seu cheiro por causa da chuva.

— Kishan ainda deve estar me procurando. Talvez devêssemos voltar.

— Não. Seria bem feito para ele.Sem um cheiro para rastrear, é provável que ele leve dias até descobrir que partimos.

Eu sorri imaginando o tigre desnorteado.

— Ren, você devia voltar lá e dizer a ele que estamos indo embora. Ele o ajudou na caçada. É o mínimo que podia fazer.

— Kelsey, nós não vamos voltar. Ele é um tigre adulto e pode tomar conta de si mesmo. Além disso, eu estava me virando bem sem ele.

— Não, não estava. Eu vi a caçada, lembra? Ele o ajudou a abater o antílope. Kishan disse que você não caçava havia mais de 300 anos. Por isso fomos atrás de você. Ele disse que sabia que precisaria da ajuda dele.

"Que ódio!"

O pior é que aquilo era verdade. Sem a ajuda de Kishan eu nunca conseguiria pegar aquele antílope e ficaria fraco demais até pra voltar pra casa.

Mas o mais grave era que Kelsey assistiu ao meu fracasso. E ao triunfo do tigre negro.

"Como ela vai confiar em mim agora? Aposto que ele fez de propósito..."

— Não é sinal de fraqueza precisar de ajuda às vezes— Disse ela

Fiquei resmungando baixinho que eu não precisava da ajuda dele. Eu não ia dar o braço a torcer.

— Ren, o que exatamente aconteceu com você há 300 anos?

Imaginei que ela quisesse saber como eu fui capturado. Então comecei a contar a história:

— É muito mais fácil para um tigre negro caçar do que para um tigre branco. Eu não me misturo à vegetação na selva. Quando ficava com muita fome e frustrado com a dificuldade de caçar animais selvagens, às vezes me aventurava em um vilarejo e roubava uma cabra ou uma ovelha. Eu tomava cuidado, mas logo se espalharam os rumores de que havia um tigre branco na região. Não só os fazendeiros queriam me afugentar dali como também havia caçadores de grandes animais selvagens que buscavam a emoção de capturar um animal exótico.

— Nossa, você correu muito perigo!

— Eles espalharam armadilhas para mim por toda a selva e muitas criaturas inocentes foram mortas. Sempre que eu encontrava uma, eu a desarmava. Um dia, cometi um erro idiota. Havia duas armadilhas bem perto uma da outra, mas eu me concentrei na óbvia, que era do tipo padrão: um pedaço de carne pendurado sobre um buraco. Eu estava estudando o buraco, tentando calcular uma forma de pegar a carne, e tropecei em um arame oculto, disparando uma chuva de espigões e flechas que desabou sobre mim vinda do topo da árvore. Saltei para o lado para me esquivar de uma lança, mas a terra sob meus pés cedeu e eu caí no buraco.

— Alguma das setas atingiu você?

— Sim. Várias me arranharam, mas eu sarei rápido. Felizmente, o buraco não tinha estacas de bambu, mas era benfeito e fundo o bastante para que eu não conseguisse sair.

— O que fizeram com você?

— Depois de alguns dias, os caçadores me encontraram. E me venderam para um colecionador de animais selvagens. Quando me mostrei difícil, ele me vendeu para outro, que me vendeu para um terceiro, e assim por diante. Por fim, acabei em um circo na Rússia e desde então fui passando de circo em circo. Sempre que as pessoas suspeitavam da minha idade ou me machucavam, eu causava problemas suficientes para provocar uma venda rápida.

— Por que o Sr. Kadam não o comprou e o levou para casa?

— Ele não podia. Alguma coisa sempre surgia para evitar que isso acontecesse. Todas as vezes que ele tentava me comprar do circo onde eu estava, os proprietários se recusavam a vender por qualquer que fosse o valor oferecido. Uma vez ele mandou outras pessoas me comprarem e isso também não funcionou. Kadam chegou a contratar gente para me roubar, mas os homens foram capturados. A maldição era quem dava as cartas, não nós. Quanto mais ele tentava interferir, pior ficava minha situação. Acabamos descobrindo que o Kadam podia pôr no meu caminho compradores em potencial com um interesse genuíno. Ele conseguia induzir pessoas boas a me comprar, mas somente se não tivesse a intenção de ele mesmo ficar comigo.

Ela me ouvia atentamente

— Kadam cuidava para que eu me mudasse com frequência suficiente, de modo que as pessoas não percebessem a minha idade. Ele me visitava de tempos em tempos para que eu soubesse como entrar em contato com ele, mas não havia nada que pudesse de fato fazer. No entanto, nunca deixou de tentar descobrir uma maneira de quebrar a maldição. Dedicava todo o seu tempo a pesquisar soluções. Suas visitas significavam tudo para mim. Acho que teria perdido minha humanidade sem ele. Assim que fui capturado, pensei que seria fácil escapar. Eu simplesmente esperaria que a noite caísse e abriria o trinco da jaula. Mas, assim que me tornei cativo, fiquei permanentemente preso à forma de tigre. Não conseguia mais me transformar em homem… até que você apareceu.

Nós continuamos conversando até que farejei o cheiro dele. Kishan estava se aproximando.

"Como ele conseguiu nos encontrar tão rápido? Ele é mesmo bom como tigre..."

Kelsey ficou muito feliz em vê-lo, achando que ele iria nos acompanhar. Mas ele se transformou em homem e lhe disse que não havia mudado de ideia.

Ao vê-lo ali, todo íntimo dela, fiquei cheio de raiva. Me aproximei dele e o empurrei pelos ombros.

— Por que você não me disse que ela estava lá? Ela viu a caçada, e você a deixou sozinha e desprotegida!

Kishan reagiu, empurrando o meu peito.

— Você foi embora antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Se isso faz você se sentir melhor, passei a noite toda procurando por ela. Vocês arrumaram tudo e partiram sem me dizer nada.

Kelsey se colocou entre nós dois:

— Por favor, acalmem-se. Ren, eu concordei com Kishan que acompanhá-lo seria mais prudente e ele cuidou bem de mim. Fui eu quem resolveu assistir à caçada e fui eu quem escolheu voltar para o acampamento sozinha. Portanto, se você vai ficar com raiva de alguém, fique com raiva de mim.

Virando-se para Kishan, ela se desculpou.

— Sinto muito ter feito você me procurar a noite toda no meio de uma tempestade. Não me dei conta de que ia chover ou de que isso fosse apagar o meu rastro. Peço desculpas.

Kishan segurou a mão dela e a beijou. Quase morri de ódio, mas me segurei em respeito à Kelsey.

— Desculpas aceitas. Então, o que achou?

— Da chuva ou da caçada?

— Da caçada, é claro.

— Ah, foi…

— Ela teve pesadelos!

Ela balançou a cabeça concordando.

— Bom, pelo menos meu irmão está bem alimentado. Provavelmente semanas se passariam antes que ele matasse uma presa sozinho.

— Eu estava indo muito bem sem você!

Kishan sorriu, com deboche.

— Não, você não ia conseguir pegar nem uma tartaruga manca sem mim.

O idiota estava se gabando. Não me segurei mais: acertei-lhe um soco no rosto.

Kishan se afastou, esfregando o maxilar, mas me encarou com um sorriso cínico:

— Tente de novo, irmão.

Eu queria socá-lo até a morte, mas não ia continuar aquela briga enquanto Kelsey assistia. Ela agora era minha prioridade. Segurei a mão dela e comecei a andar a passos largos.

Kishan se transformou em tigre e nos alcançou rapidamente, transformando-se novamente em homem.

— Esperem. Tenho uma coisa para dizer a Kelsey.

Eu franzi a testa e pretendia impedi-lo, mas Kelsey colocou a mão em meu peito.

— Ren, por favor.

Eu olhei para ela e me acalmei. Toquei em seu rosto e me afastei.

Kishan se aproximou e eu pude ouvir a conversa dos dois:

— Kelsey, quero que fique com isto — anunciou Kishan, levando as mãos ao pescoço para retirar uma corrente oculta sob a camisa preta.

Depois de colocá-la em torno do pescoço de Kelsey e prender o fecho, ele disse:

— Acho que você sabe que este amuleto irá protegê-la da mesma forma que o de Ren protege Kadam.

— Kishan, tem certeza de que quer que eu o use?

Ele sorriu.

— Meu encanto, seu entusiasmo é contagiante. Um homem não pode estar perto de você e permanecer indiferente à sua causa. E, embora eu vá continuar na selva, esta será minha pequena contribuição para seus esforços.

Sua expressão ficou séria.

— Quero que se cuide, Kelsey. Tudo o que sabemos com certeza é que o amuleto tem o poder de dar uma vida longa a seu portador. Mas isso não significa que você não possa ser ferida ou mesmo morta. Fique atenta.

Ele segurou o queixo dela e eles se olharam nos olhos. Meu corpo se retesou. Então ele disse:

— Não quero que nada lhe aconteça, bilauta.

— Vou tomar cuidado. Obrigada, Kishan.

Kishan olhou pra mim e eu senti sua sinceridade. Kelsey havia tocado o coração de meu irmão, assim como tocou o meu e o de Kadam. Ela era mesmo uma mulher especial, destinada a nos libertar, antes mesmo de quebrar a maldição.

Inclinei levemente a cabeça em consentimento. Ele voltou o olhar a ela e lhe disse:

— Vou sentir sua falta, Kelsey. Venha me visitar.

Ela o abraçou, mas não da mesma forma que me abraçava, então não me importei.

Kishan desviou o rosto e deu um beijo rápido nos lábios dela. Preparei-me para atacá-lo, mas Kelsey sorriu e eu fiquei confuso.

Kishan riu e voltou rapidamente para a floresta antes mesmo que eu pudesse reagir.

Me aproximei e segurei o amuleto. Fiquei feliz e aliviado por ele estar com Kelsey. Sorri e lhe dei um beijo na testa. Meu tempo como homem tinha acabado.

Transformei-me em tigre e nós caminhamos pensativos, lado a lado até encontramos Kadam.