No dia seguinte, acordamos cedo. Ainda estávamos muito cansados e sonolentos, mas o calor nos impedia de continuar dormindo. Seguimos para casa.

Assim que entramos, Kadam nos abordou, curioso e animado para saber o que havíamos conseguido. Kelsey lhe entregou a mochila e foi para o quarto. Eu segui em direção ao meu.

Ouvi o barulho do chuveiro e senti o cheiro do xampu enquanto Kelsey tomava banho. Deitei e dormi. Sonhei que nós dois estávamos na selva. Nós estávamos felizes brincando na cachoeira. Então, um vulto negro surgiu em minha visão periférica. Kishan. Ele veio em nossa direção e olhou para Kelsey, que sorriu e caminhou até ele. Eu tentava dizer a ela que se afastasse, mas ela me ignorava. Tentei me transformar em homem, mas não consegui. Então nuvens escuras cobriram o sol e começou a chover muito forte. Kelsey olhou pra mim e estava chorando. Eu não conseguia me mover. Acordei em um sobressalto. Não consegui voltar a dormir.

Ouvi Kelsey do lado de fora. Resolvi me transformar em homem para me encontrar com ela. Apesar do sonho perturbador, eu estava contente. Nós havíamos passado um tempo sozinhos na caverna e apesar de todos os perigos, isso fortaleceu nossa relação como homem e mulher.

Quando me transformei, estava vestindo as roupas brancas de sempre. Resolvi trocá-las. Vesti uma calça caqui e uma blusa azul e fui me encontrar com ela na varanda.

Kelsey pareceu surpresa e satisfeita ao me ver. Ela me olhou de cima a baixo e deu um leve sorriso. Ficou me olhando por um tempo. Sentei-me na cadeira a sua frente e disse:

— Boa noite, Kelsey. Dormiu bem?

— Dormi. E você?

Eu assenti sorrindo.

Kelsey estava segurando uma escova, tentando desembaraçar os cabelos que estavam muito embolados.

— Você está com algum problema? — perguntei divertidamente.

— Não. Está tudo sob controle.

Mas eu vi que não estava. Ela tentou desconversar:

— Como estão suas costas e seu… braço?

— Estão ótimos. Obrigado por perguntar.

— Ren, por que você não está usando branco? Até agora não tinha visto você com roupas de outra cor. É porque sua camisa branca rasgou?

— Não. Eu só quis usar alguma coisa diferente. Na verdade, quando mudo para a forma de tigre e volto, minhas roupas brancas reaparecem. Se eu mudasse para tigre agora e então voltasse à forma humana, estas roupas seriam substituídas pelas velhas brancas.

— Elas ainda estariam rasgadas e sujas de sangue?

— Não. Quando reapareço, elas estão limpas e inteiras novamente.

— Ah. Sorte sua. Seria bem embaraçoso se você aparecesse nu toda vez que se transformasse.

Eu sorri, imaginado a reação dela se eu tivesse aparecido nu diante dela na cabana de Phet. Teria sido mesmo embaraçoso.

Olhei para Kelsey, que parecia envergonhada. Estava lindamente corada e eu pensei se ela estaria imaginando o mesmo que eu.

Ela começou a falar comigo enquanto tentava passar a escova pelos cabelos, sem sucesso. Levantei-me e peguei a escova das mãos delas. Ela ficou sem entender

— O que… o que você está fazendo? —falou gaguejando.

— Relaxe. Você está muito nervosa.

Comecei a pentear mechas dos cabelos dela. Eles eram tão macios e perfumados que eu poderia passar horas tocando neles. No início ela estava tensa, mas em pouco tempo ela relaxou, colocando a cabeça para trás e deixando os olhos fechados. Sorri satisfeito.

Eu estava começando a perceber o efeito que minha presença como homem causava nela. E estava gostando. Eu afastei uma mecha do cabelo dela e me inclinei levemente para falar em seu ouvido:

— O que você queria me perguntar?

Kelsey estava tão relaxada que levou um susto

— Ah… o quê? — murmurou, confusa.

— Você queria me fazer uma pergunta.

— Ah, sim. Era… é… isso é gostoso.

— Isso não é uma pergunta - falei sorrindo - Era alguma coisa sobre eu me transformar em tigre?

— Ah, sim. Agora lembrei. Você pode mudar para uma forma e outra várias vezes por dia, certo? Tem um limite?

— Não. Não tem limite, desde que eu não assuma a forma humana por mais de 24 minutos a cada 24 horas. Mais alguma pergunta?

— Sim… sobre o labirinto. Você estava usando seu faro, mas tudo o que eu sentia era um cheiro horrível de enxofre. O que você estava seguindo?

— Na verdade, eu estava seguindo o aroma da flor de lótus. É a flor favorita de Durga, a mesma que está no Selo. Deduzi que aquele era o caminho certo a seguir.

Terminei de escovar os cabelos dela e coloquei a escova sobre a mesa. Mas eu queria continuar assim, perto dela, tocando nela. Queria continuar observando suas reações a mim. Então comecei a massagear seu pescoço. Mais uma vez, ela ficou tensa no início, relaxando em seguida.

— Aroma de lótus? Como você podia sentir esse odor com todos os cheiros fortes de lá?

Me abaixei um pouco e toquei seu nariz com a ponta do dedo.

— Faro de tigre. Posso sentir o cheiro de muitas coisas que as pessoas não percebem. — Pronto, Kelsey. Vá se vestir. Temos trabalho a fazer.

Eu dei a volta, parando de frente para ela. Estendi a mão e ela a segurou. Nesse momento, algo diferente aconteceu. Algo que ainda não tinha sentido antes.

Centelhas elétricas percorreram meus braços a partir das mãos de Kelsey. Era muito diferente daquilo que eu sentia quando estavas prestes a me metamorfosear em tigre. Era quente e intenso. E eu percebi que ela também sentiu aquilo.

Kelsey parecia um pouco assustada, talvez surpresa. Para mim, esta reação era apenas a confirmação de que havia uma ligação especial entre nós dois.

Eu sorri e lhe beijei os dedos. Ela perguntou se eu tinha sentido. Pisquei pra ela, satisfeito e respondi:

— Certamente.

Enquanto Kelsey se trocava, eu desci e encontrei Kadam na sala do pavão. Ele estava diante de vários livros, trabalhando no material que trouxemos da caverna. E estava muito satisfeito por estar conseguindo traduzir as impressões com carvão.

Transformei-me em homem e contei a ele rapidamente sobre os perigos nessa primeira busca.

— Ren, eu creio que teremos outras tarefas igualmente ou mais perigosas que estas. Você é forte e tem magia, consegue se curar. A senhorita Kelsey é uma garota vulnerável. Temos que estar atento à segurança e à saúde dela. Não podemos deixar que nada de mal lhe aconteça.

— Eu sei disso. É por isso que estou convencido a ir atrás de Kishan.

Transformei-me em tigre novamente e sentei-me a seu lado. Kadam me explicou os planos para nossa próxima viagem e depois voltou aos livros. Kelsey chegou após alguns minutos e ficou impressionada com os avanços de Kadam.

— Está trabalhando nisto desde que chegamos em casa, Sr. Kadam?

— Sim. É fascinante! Já traduzi o que estava escrito na impressão que você fez com o carvão e agora estou trabalhando nas fotos que tirou do monólito— disse entregado-lhe as anotações.

Ela leu e lhe fez várias perguntas sobre a profecia, que mencionava 5 sacrifícios, 4 oferendas e o reino de Hanuman.

— Estou pesquisando isso. Hanuman é o deus macaco. Dizem que seu reino é Kishkindha, ou o Reino dos Macacos. Existe uma grande polêmica quanto à localização de Kishkindha, mas, de acordo com o pensamento corrente, o mais provável é que as ruínas de Hampi estejam sobre a antiga Kishkindha, ou perto dela.

— Isso significa que temos que ir para Kishkindha, enfrentar um deus macaco e encontrar um tipo de galho?

— Acredito que o que vocês vão procurar seja, na verdade, o fruto proibido — respondeu Kadam.

— Como Adão e Eva? É desse fruto proibido que o senhor está falando?

— Não. O fruto é uma recompensa mitológica bastante comum, que simboliza a vida. As pessoas precisam comer e dependemos dos frutos da terra para nosso sustento. Diferentes culturas celebram os frutos ou a colheita de formas variadas.

Kadam sorriu e voltou para suas traduções.

Kelsey sentou-se para ler. Ela parecia feliz. Me lembrei do que ela disse na selva, sobre a biblioteca dos pais dela e como ela se sentia quando liam juntos.

Fui para perto dela e deitei a seus pés. Ela estava lendo sobre Hanuman. Ela pareceu sonolenta quando falou:

— Homem-macaco forte, capaz de mover montanhas, cantor. Entendi.

Kelsey pôs o livro de lado e dormiu. Ao vê-la dormindo, Kadam dirigiu-se a mim:

— A senhorita Kelsey é surpreendente, não é Ren? Quem diria que essa aparência frágil traria alguém tão forte e corajosa?

Suspirei concordando com ele.

— Ren, eu me preocupo se o fardo que estamos dando a ela não seria pesado demais...

Sentei-me levantando as orelhas para demonstrar que ele tinha toda a minha atenção

— Ao que parece, essa missão não vai ser simples, vocês tem pelo menos mais uma busca que pode ser tão dura quanto a da caverna, até mais do que isso. Quero conversar com ela. Preciso estar certo de que ela saiba exatamente o que terá que enfrentar e que esteja ciente de que se estivermos lhe exigindo demais, ela poderá desistir a qualquer momento.

Eu rugi baixo, concordando com ele.

No dia seguinte, fui à biblioteca e Kadam estava sozinho. Ele me disse que ao que tudo indicava, iríamos a Hampi, que ficava muito longe dali, por isso ele nos acompanharia. Disse que conversaria com Kelsey naquela tarde, e que, se ela estivesse de acordo, sairíamos no dia seguinte e que poderíamos procurar Kishan no caminho.

A fim de me preparar para a viagem, alimentei-me como tigre naquele dia. Kadam havia deixado um dos cômodos da casa para este fim. Eu o havia explicado que não queria que Kelsey me visse enquanto me alimentava. Não queria que ela pensasse em mim como uma fera selvagem.

Fui para o cômodo, onde Kadam havia deixado uma grande quantidade de carne fresca. Assim, eu poderia ficar alguns dias sem me alimentar como tigre.

Após o meu lanchinho, resolvi tirar um cochilo. Dormi a tarde inteira. Não me lembro de ter sonhado. Levantei-me e me dirigi à varanda, onde esperava encontrar Kelsey. Ouvi o som vindo da piscina e corri pra lá.

A visão de Kelsey em seu maiô era tentadora demais. Fiquei observando-a nadar até que ela percebeu que eu estava na borda, mergulhou e nadou até mim. Colocando a cabeça pra fora da água ela me cumprimentou:

— Ei, Ren – Disse jogando água em mim. Bufei e saí dali.

Kelsey deve ter pensado que eu fiquei com raiva da brincadeira, mas não era isso. A visão dela na piscina me perturbou um pouco. Ela era tão perfeita que me inspirou.

Fui até o meu quarto, me transformei e escrevi um poema sobre ela. Depois, colhi a rosa mais linda que encontrei e fui até o quarto dela. Ela estava tomando banho e o cheiro de pêssego com creme estava invadindo deliciosamente o cômodo, me deixando atordoado. Deixei a rosa ao lado e deitei-me no tapete do quarto como tigre.

Quando saiu, enrolada na toalha, Kelsey viu a rosa e perguntou:

— Isto é para mim?

Eu disse que sim através dos meus ruídos de tigre, que ela já parecia entender bem. Ela cheirou a rosa e deitou-se na cama, virando-se para mim.

— Obrigada, Ren. É linda!

"Sim, mas não tão linda quanto a mulher enrolada em toalha que a está segurando".

Kelsey me fez um carinho na cabeça. Eu me inclinei para que ela continuasse. Eu adorava nossos momentos juntos, mesmo como tigre.

Ela começou a ler "Romeu e Julieta", o livro que ela começara lá no circo, e que nunca tivemos a oportunidade de continuar. Eu queria muito saber o que iria acontecer, pois me identificara com a história, até o ponto onde paramos.

À medida que a história foi avançando, eu me decepcionei com as atitudes de Romeu. Então me transformei em homem para comentar.

— Romeu era um tolo. Ele devia ter contado para as duas famílias. Manter o casamento em segredo é o que vai destruir Romeu. Segredos assim podem ser a ruína de qualquer homem. Quase sempre são mais destrutivos do que a espada.

Fiquei pensando a esse respeito. Refleti o quanto os segredos eram perigosos, em como Kelsey pareceu decepcionada por eu ter escondido a verdade sobre a maldição por tanto tempo.

Ela interrompeu meus pensamentos, perguntando se deveria continuar com a leitura. Eu disse que sim e voltei a forma de tigre.

Ela mudou de posição e eu não resisti: pulei na cama e me deitei ali, pra ouvi-la. Sempre que algo na história me incomodava, eu balançava a cauda. Claro que Kelsey reclamou:

— Pare com essa cauda, Ren! Está fazendo cócegas nos meus pés!

Eu continuei balançando a cauda, só de brincadeira. Quando ela terminou de ler o livro, voltei a forma humana.

— O que achou? — Ela perguntou—Ficou surpreso com o desfecho?

Pensei um pouco antes de responder. Não estava certo sobre meus sentimentos a respeito daquela historia.

— Sim e não. Romeu tomou algumas decisões ruins ao longo de toda a história. Estava mais preocupado consigo mesmo do que com a mulher. Ele não a merecia.

— O final o desagradou tanto assim? A maioria das pessoas se concentra no romance que há na peça, na tragédia de nunca poderem ficar juntos. Lamento que não tenha gostado.

Refleti sobre aquele momento. Fazia tanto tempo que não conversava com alguém daquele jeito. Eu estava feliz e disse:

— Ao contrário, gostei bastante. Não tenho ninguém com quem conversar sobre peças de teatro ou poesia faz… bem, desde que meus pais morreram. Para falar a verdade, eu costumava escrever poesia.

— Também sinto falta de ter alguém com quem conversar — ela falou baixinho

Pensei em como nós dois éramos parecidos, apesar de termos nascido em épocas tão distintas, em como nós nos completávamos e concluí que nós precisávamos um do outro. Me aproximei dela e segurei sua mão

— Talvez, da próxima vez, eu leia um poema meu para você. Dei-lhe um beijo suave e demorado na palma da mão. Olhei pra ela e senti que ela queria mais, tanto quanto eu. Mas ainda não era a hora.

— Deixo-a com um beijo. Boa noite, Kelsey.

Fui para o meu quarto, sonhando em tê-la em meus braços e decidido: quando chegássemos à cachoeira, eu iria beijá-la.