Escuridão. Um espaço desconhecido, impossível de identificar. Não se ouvia nada naquele estranho ambiente. Nem mesmo um som. O silêncio era total. Ele estava perdido na escuridão e no silêncio. Sentia-se lânguido. Onde estava? O que estaria acontecendo ali? “Nada”, concluiu. Apenas tinha consciência de que seu corpo flutuava como se estivesse submerso no oceano.

Ele movimentou os braços e as pernas, tentou se locomover, mas não pôde sair do lugar. Ao menos esta foi a impressão que teve. Tédio. Sem nada para enxergar, o tempo parecia parado. “Que tempo?”, pensou, “será que as horas ainda existem aqui?” Parecia o fim do mundo.

Já tinha dormido e acordado uma centena de vezes naquela escuridão surreal quando algo finalmente aconteceu. Ele ouviu um ruído tênue, mais próximo de um sussurro ao pé do ouvido. A voz aparentava morbidez.

– Christian Cortázar... – Ele reconheceu seu próprio nome nas palavras do sussurro e aquilo o fez despertar completamente do estado de torpor em que se encontrava – Christian Cortázar... – Repetiu a voz suave, quase longínqua.

– O que é? – Ele tentou se comunicar – Quem está aí? – Mas dessa vez a voz nada disse. Ao contrário, o jovem empresário falecido, Christian Cortázar, vislumbrou um lampejo duplo faiscando na escuridão, como um par de olhos luminosos a lhe observar. Desde que se dera conta do ambiente sinistro em que estava, Christian ansiava pela presença de alguém; no entanto, ao ver aqueles terríveis olhos faiscantes sobre ele, o rapaz mudou de ideia no mesmo instante.

Tratava-se de um ser não humano, com toda certeza. Um monstro abominável. Cortázar tinha o coração aos galopes quando a criatura falou com tremenda voz gutural, confirmando todas as suspeitas do rapaz sobre a natureza não humana daquele ser.

– Não tenha medo – disse o monstro dos olhos faiscantes, oculto pela escuridão do local – Não estou aqui para lhe fazer mal. Muito pelo contrário, vim ajudar você.

As palavras amistosas não condiziam com o horror daquela voz e a agressividade daqueles olhos brilhantes. Ainda assim, Christian tomou coragem e tentou vencer o estado de choque em que se encontrava. Vacilou por um momento e respondeu gaguejando um pouco.

– Ehr... Bem... Q-quem é v-você? – foi o máximo que conseguiu dizer.

– Esta é uma pergunta complicada de responder, rapaz. – Disse o monstro – Sou muito antiga. Existo desde o início dos tempos e continuarei existindo enquanto houver vida no universo. Já tive vários nomes: Anúbis, Ishtar, Perséfone, Hel, Ceifador, Caronte, Mulher-Corvo e até mesmo Dark, a Mãe da Escuridão Pós-Vida. Em todo caso, sou perpétua, pois a vida do universo jamais acabará.

O rosto de Christian empalidecia a cada palavra. Entrou em pânico ao perceber que a criatura com quem falava era a própria Morte. As mãos suavam e o corpo tremia como vara verde. Naquele momento teve certeza de que a tentativa de suicídio fora bem-sucedida. Frente ao silêncio amedrontado do rapaz, a Morte retomou a palavra.

– Não tenha medo, Chris – dessa vez o tom do monstro não era mais horrendamente gutural. Agora assumiu a doce voz de uma mulher proferindo aquelas palavras – Como disse antes, eu não vim para lhe fazer mal algum. Quero ajudar você a escapar de seu destino.

De dentro da escuridão emergiu uma silhueta esguia, de cabelos esvoaçantes, tão negros quanto ébano. Aos poucos uma tênue luz vinda de lugar algum iluminou seu semblante, revelando uma moça de aparência jovial e aspecto cadavérico.

– Q-que d-destino? – balbuciou Christian, horrorizado por estar frente a frente com a Morte.

– O destino dos suicidas. – A Morte respondeu com um sorriso alegremente entusiasmado, como o de uma criança – Quando uma pessoa tira a própria vida, sua alma fica marcada pelo estigma da dor. Com isso, seu destino é apenas um: pagar mil anos de extrema agonia num lugar do inferno chamado Vale dos Suicidas. Naquele vale as almas são torturadas com gelo e fogo por demônios cruéis. Este é o seu destino... a menos que você aceite minha ajuda.

– Quando cometi suicídio, eu não tinha consciência desse destino terrível... – disse Christian Cortázar arrependido – Se soubesse, não teria feito o que fiz.

– Eu sei disso. E eu também não pretendia lhe deixar morrer, pois você ainda tinha muito que fazer a meu benefício. Você me é mais útil vivendo que morto, por isso eu interferi em seu destino cantando a Canção da Lua Vermelha.

– Do que está falando?

A Morte analisou o semblante do rapaz. Ainda tremia de pavor, no entanto parecia um pouco mais conformado. Tinha olhos escuros e cabelos compridos na altura dos ombros. Embora Christian fosse jovem demais para seu gosto, Morte sentiu certa simpatia por ele. Decidiu abrir o jogo e explicar em detalhes todos os seus planos... ou quase todos.

– A Canção da Lua Vermelha é uma música antiga, de tempos anteriores à criação da vida. As palavras têm poder, Chris. Se for entoada corretamente, o universo concederá uma realização àquele que a cantou. E minha realização, meu desejo foi trazer você de volta à vida. – Morte aproximou-se de Cortázar até ficarem cara a cara – Eu tinha planos para você, rapaz. Seu destino original era morrer num acidente de trânsito aos setenta e quatro anos; nesse meio tempo, você se envolveria com o tráfico de armas e me ajudaria viabilizando a morte de centenas de pessoas inocentes. Porém, você tirou a própria vida. Isso me dá mais trabalho, sabia? Agora eu teria de planejar outros meios de matar essas pessoas – Morte fez uma pausa e sorriu – Mas eu pensei numa maneira de resolver o contratempo. E a resposta é você.

– Eu?! – Christian tinha os olhos arregalados.

– Claro, Chris! Você tomou a decisão errada. Agora aguente as consequências! – O rapaz estava atordoado. Antes era dono de uma empresa, agora passaria a ser empregado da própria Morte.

– Pelo que me disse, eu tenho que dizer se aceito ou não...

– É verdade – a Morte respondeu em um tom delicadamente feminino – Você pode ou não aceitar minha ajuda para sair daqui. Mas saiba que, se aceitar, haverá um preço.

– Que preço? – questionou o rapaz dos longos cabelos, após certa hesitação.

– Terá de matar todos aqueles que estavam destinados a morrer por sua causa. Se o fizer, eu lhe devolverei à vida como se você nunca tivesse sequer tentado o suicídio.

– Mas são centenas! – Christian se desesperou.

– É o preço, querido. – A aparência jovem que a Morte incorporara parecia suavizar a loucura da proposta.

– E se eu não aceitar?

– Se não aceitar minha ajuda, seu alma será transferida para o Vale dos Suicidas e terá de pagar mil anos com torturas inimagináveis. Decida-se com sabedoria.

Christian Cortázar arfou estupefato. Definitivamente não imaginara que seu suicídio acarretaria um dilema tão satânico. Suava frio. Aquela seria a decisão mais difícil de toda sua existência. Tinha de optar entre uma morte de sofrimento incessante ou uma vida de assassino em série. O rapaz respirou fundo e se resolveu.

– E então, qual minha resposta? – Perguntou a Morte, paciente como era natural de um ser perpétuo.

– Tudo bem, eu já decidi – Cortázar encarou a Morte nos olhos, que faiscaram altivamente – Aceito sua ajuda. Matarei todos que me pedir, e em troca você me libertará.

A mulher de aspecto cadavérico, pálida como uma estátua de mármore, deu um sorriso satisfeito. Tudo saía como planejara. – Neste caso – disse ela – você precisará disso aqui. – A criatura estalou os alvos dedos feminis e, como se fosse mágica, um artefato peculiar surgiu em suas mãos.

– O que é isso? – o rapaz quis saber.

– Este, meu querido Christian, é o Caderno da Morte.