Leonor e Isabel voltavam cabisbaixas do cais. A portuguesa olhou para a amiga e, pela primeira vez, não soube o que dizer.

Isabel de Proença dava graças a Deus por ter se apaixonado pelo homem que seu pai escolhera para ela, um homem tão calmo e tranquilo quanto ela.

Ela nunca soube o que é sofrer por amor e as paixões como a de Leonor lhe eram desconhecidas também.

Por que ele não ficara e lutara por seu amor? Por que não a colocou sobre um cavalo e fugiram os dois por esse mundo a fora? Mas Isabel sabia a resposta dessa pergunta. Leonor nunca deixaria a família. A honra da família justificava qualquer sacrifício. Não foi por isso que ela manteve a palavra do pai no compromisso com D. Constâncio mesmo odiando-o?

E, sendo assim, o que ela poderia dizer a Leonor, cujo sofrimento só aumentava. Pois agora que ela entregara seu coração ao tal Thomas Horton e vivenciara um amor pleno e correspondido, nada mais poderia satisfazê-la em um casamento vazio. E com um homem da espécie de D. Constâncio.

Quando as duas chegaram na casa dos Cubas, havia um homem ajoelhado no chão abraçado à um dos filhos de Isabel.

O som dos saltos delas ressoou no chão de madeira e o homem se levantou e virou.

— Paulo! – Isabel soltou-se de Leonor e correu para o homem. Os dois se abraçaram e D. Paulo acariciou os cabelos da esposa.

Leonor sentiu-se emocionada com a cena. E agradecida também. Afinal, uma coisa boa naquele dia.

Ela olhou para Carmo que se juntara a ela e disse:

— Vamos Carmo. Vamos voltar para casa.

Leonor tinha uma suspeita que sua ausência em seria notada pelo casal.

***

Brás, Thomas e Pedro atracaram o barco e correram para dentro do forte.

Lá, um silêncio sepulcral reinava. D. Brás se dirigiu ao principal prédio do complexo, onde ficava o mestre das armas.

— D. Antônio? – ele chamou entrando no prédio. Manchas escuras marcavam o chão e D. Brás abaixou-se para olhar melhor e constatou que era sangue. – D. Antônio?

— Ele não pode mais responder. – disse uma voz atrás deles

Os três se viraram e viram um rapaz novo amparado por uma espécie de muleta. Suas roupas estavam sujas de terra e sangue e seu rosto jovem mostrava cansaço e tristeza.

— Vosmecê quem é rapaz? – perguntou D. Brás.

— Sou Henrique, filho de D. Antônio.

— Onde estão todos?

— Morreram. – declarou o jovem estoicamente. – Eu levei um tiro na perna. Só sobrevivi por que meu pai tombou sobre mim. O senhor é D. Brás, não é?

— Sim. Estávamos presos como reféns. Marcados para morrer. Mas ele nos livrou. – D. Brás indicou Thomas ao seu lado. – Pedro, vá até a casa das armas e veja o que aqueles canalhas deixaram para nós.

Henrique balançou a cabeça.

— Na casa de armas não há mais nada, D. Brás...

— Quer dizer que estamos indefesos?

— Não, D. Brás! Meu pai era uma raposa matreira. – o rapaz riu, mas a dor em suas costelas o fez arfar. – O que tinha na casa de armas era somente o “boi de piranha”. Venham comigo.

O trio seguiu o rapaz de andar claudicante cruzando o extenso pátio. Ele ergueu o que parecia uma cortina de folhas revelando uma pequena gruta.

— Eles nunca vieram até aqui e poucos homens do forte sabiam de sua existência. Numa noite, meu pai, eu e outros dois homens de confiança, trouxemos tudo para cá. Muita pólvora e armas. Desde o último ataque, ele sempre dizia que eles iriam voltar. Que Edward Felton tinha ido embora muito pacificamente.

— Então ele resolveu esconder o grosso de nossas armas.

— Sim. Tínhamos poucos homens. Do que adiantaria deixar um carregamento inteiro exposto?

— Foi realmente muito engenhoso D. Brás. Eles enganaram a todos direitinho. Cavendish achou que vocês não tinham armas. – elogiou Thomas. Imaginem se ele soubesse de todo esse armamento?

— Como você sabia o nome do capitão pirata? – perguntou Henrique.

— Por que Thomas era um deles. – esclareceu D. Brás sem delongas. – Mas ele nos ajudou a escapar e nos avisou sobre o ataque dos índios.

— Índios?

— Sim, menino. E agora temos que levar essas armas para terra firme. Sem armas, não teremos a mínima chance.

Quando Henrique adiantou-se para puxar as caixas, Thomas colocou-se ao seu lado para auxiliá-lo.

O rapaz mexeu bruscamente como o corpo e perdeu o equilíbrio, caindo no chão. Thomas estendeu sua mão a ele.

— Largue de mim, seu pirata! – Henrique bateu na mão estendida.

— Eu só queria ajuda-lo. Vi que você está com a perna machucada. É ruim fazer esforço.

— Eu não preciso de sua piedade! Vosmecês chegaram aqui e acabaram com todos. – ele cuspiu no chão com ódio.

- Sim, eu fui um pirata. Mas nunca matei ninguém que não merecesse ou ameaçasse minha vida. Nunca roubei ou estuprei nenhuma mulher. Fui o pior exemplo de pirata que pudesse haver, nas palavras do próprio Cavendish. E sabe por quê?

- Por que, na verdade, vosmecê é um padre. Mas, como vosmecê gosta da sua cabeça entre os ombros, embarcou no primeiro navio que viu. Ou então um santo. Fala a verdade.... Você é um santo, não é? – brincou Pedro.

A pergunta do rapaz era tão estapafúrdia que Thomas sorriu.

- Não sou um santo. Longe disso. E também nunca quis ser padre. Eu apenas descobri que vale a pena defender a vida. – Thomas olhou para Henrique. – Você tem todo o direito de me fazer responsável por tudo. Cavendish e todos os outros foram embora. Eu aceito o meu destino como ex-pirata. Mas, não me furto do direito de ajudá-los no que for possível. Depois, a gente vê o que acontece. Está bem assim? – ele estendeu a mão para o rapaz novamente.

Henrique hesitou, mas acabou estendendo a mão para Thomas.

- Se já acabaram com a filosofia, temos muito a fazer ainda. – disse D. Brás.

O grupo começou a tirar as armas da gruta e levá-las o mais rápido possível para o barco.

Com o barco cheio, eles o empurraram para a água e ajudaram o jovem Henrique a subir no barco. D. Brás, Thomas e Pedro Cubas nadaram ao lado do barco e os levaram para a praia.

***

Leonor e Carmo estavam chegando a casa quando ouviram um grito. As duas correram para casa e se depararam com a pior cena que podiam imaginar.

Mãe Maria estava ajoelhada perto de um corpo. Agoirá estava de pé cabisbaixo. A frente da camisa dele estava suja de sangue e D. Eugenia era atendida por duas índias que abanavam um leque perto dela. A senhora parecia ter perdido os sentidos.

Leonor registrou toda a cena em segundos e, em seguida, ela viu o pequeno par de botas.

Parecendo estar em transe, Leonor deu a volta por trás de Mãe Maria. Ela sacudia o corpo para frente e para trás, murmurando palavras em voz baixa enquanto a mão acariciava os cabelos do menino.

Uma flecha de penas vermelhas adornava o objeto e estava fincada no peito da criança. Uma mancha rubra de sangue circundava o ferimento.

— Eu achar minino, moça Leonor. Mas não ser rápido o bastante. – Agoirá murmurou.

Leonor olhou para ele, mal registrando suas palavras. Em um canto afastado, D. Constâncio fumava um cachimbo lentamente.

A moça começou a olhar aqueles rostos, a sala parecia girar ao seu redor, a mancha de sangue saltava aos seus olhos. Uma agonia, uma raiva, uma dor atingiu seu peito e grito subiu em sua garganta.

— NÃO! – e ela caiu aos prantos ao lado do corpo do irmão.

— Não! Não! João! Fala comigo! – ela começou a mexer nos braços do irmão. Tocou o ferimento, o rosto dele, enquanto as lágrimas corriam pelo seu rosto. – João! Para de brincar e fala comigo!

Ela olhou para Mãe Maria que continuava a balançar o corpo para frente e para trás.

— Mãe Maria, ele... ele... – Ela se virou para Agoirá. – Agoirá, faz alguma coisa... Ele... – os soluços a sufocavam.

O índio acocorou-se ao lado da moça.

— Fazer nada não, moça Leonor. Minino se foi com o vento.

— Mas vosmecê anda pelas terras dos espíritos, vosmecê disse! Traz ele de volta, Agoirá. – a moça sacudia os ombros do índio. – Eu te ordeno! Traz meu irmão de volta!

— Agoirá não pode, moça Leonor... – o índio queria poder fazer qualquer coisa para tirar o desespero de Leonor, mas estava além de qualquer um naquela sala.

— Meu menino.... Meu bebê... – Leonor acariciava os cabelos dele. Imagens de João Guilherme passavam pela sua mente. Ele um bebê, aprendendo a andar na areia branca e macia de Rio Santo, pulando de pedra em pedra ou subindo em arvores. Beijando seu rosto quando ela foi trazida depois da captura pelos piratas.

— Ah meu Deus! – ela gritou em desespero. - João! Volta pra mim, irmãozinho... Volta pra mim... – pegou na mão dele, notando que estava fechada.

Curiosa, ela forçou os pequenos dedos a abrirem. Dentro da mão do menino, uma pequena flor de cor branca. Era a sua favorita. Primavera. Cresciam abundantemente na região com diversas cores.

— Muitas dessas ao redor dele, moça Leonor. Ele segurava muitas dessas. – esclareceu Agoirá.

— Flores? Ele tinha ido colher flores?

— Ele sabia... – disse Mãe Maria – que esta era sua flor favorita, minina. Sabia que vosmecê tava tristonha e quis te alegrar.

— Por mim... Ele foi buscar minhas flores favoritas... – Sorrindo entre as lágrimas abundantes, Leonor acariciou o rostinho do irmão. Ele parecia tão tranquilo... Parecia dormir. – Ah, João Guilherme... O que eu vou fazer da vida sem vosmecê.

***

O barco vindo do forte atracou nas areias macias e os homens pararam um pouco para recuperar o fôlego.

— Pedro, vá até a praça e avise aos homens para virem. Vamos distribuir as armas e nos preparar.

— E quanto a mim, D. Brás? – Henrique perguntou. – O que eu faço?

— Vosmecê já fez o bastante, rapaz. Agora vosmecê carece de cuidados. Vá até o hospital e procure padre Afonso, se ele ainda estiver vivo, pobre homem.

— Sim senhor. – e o rapaz foi apoiando-se na muleta improvisada.

— D. Thomas... – D. Brás virou-se para o inglês. – Vosmecê me ajuda com as armas. Depois que carregarmos os homens com elas, vamos saber dos nossos.

Alguns homens ao chegaram com Pedro reagiram mal a presença de Thomas entre eles. D. Brás teve que se valer de toda sua autoridade para os fazerem aceitar a presença do inglês.

— Se o inglês quis permanecer junto à nós, ele deve ter as suas razões. Para mim basta saber que ele me salvou e a minha família da morte certa e, ao nos avisar do ataque dos índios, ele salvou à cada um dessa colônia.

— Menos ao filho de D. Bernardo, D. Brás. – disse um dos colonos

— De quem falas, Fernão Guimarães?

— Do menino João Guilherme. Estão preparando ele para o enterro agora.

Thomas olhou para D. Brás curioso.

— Quem é ele?

— O irmão de D. Leonor.

— O menino?! – Thomas sentiu uma estocada em seu peito. O irmão de sua amada estava morto e ele nem podia consolá-la.

— Eu tenho que ir ver Leonor.

— Se fores até lá D. Constâncio termina o que Cavendish não pôde. Ele tem muitos empregados e vosmecê não passará da porta. Espera e eu arrumarei um jeito de vê-la.

Thomas pareceu mais calmo diante das palavras sensatas do homem mais velho.

— Bem meus amigos. Temos que começar a nos preparar para um eventual ataque. Aqui estão armas e pólvora que pegamos no forte. Levem de acordo com os homens de cada casa.

Brás virou-se para Fernão Guimarães.

— Onde está o resto dos homens? Só tem os homens que estavam conosco na igreja na noite de Natal.

— Uma parte da população fugiu durante o ataque, D. Brás. Parece que estávamos errados sobre Mestre Bartolomeu.

— Mesmo?

— O filho dele, Bartolomeu nos mostrou um esconderijo. Ele levou boa parte dos moradores. Crianças e mulheres. Por um túnel, através de uma gruta para a floresta e para São Vicente.

— Então D. Martim Afonso já deve saber o que aconteceu aqui.

— Com certeza D. Brás. E o reforço já deve estar vindo.

— Com atraso contra os piratas, Fernão. Mas talvez não tarde para os índios.

***

Isabel descansava a cabeça no peito do marido Paulo. Já o banhara, alimentara e insistira que para que ele fosse descansar. O valoroso homem pediu que ela se juntasse a ele, o que ela fez de bom grado.

Ela rezara muito para Deus e todos os santos que se lembrava para que o marido, o pai e o irmão voltassem vivos do cativeiro. E agora, em parte, o seu pedido havia sido atendido.

— ... E então, estávamos todos ali, esperando quando a porta se abriu com um estrondo. Cavendish estava com uma pistola na cabeça e sendo guiado por um dos piratas. Justamente o que havia ajudado a nos aprisionar.

Isabel levantou-se da cama subitamente.

— Quem? Thomas Horton?

Paulo a olhou com estranheza.

— Sim. Como você sabia?

Isabel não pareceu ouvir a pergunta do marido

— Então ele não foi embora... – ela olhou para o marido com um sorriso enorme.

— Mulher, o que está acontecendo?

— Temos que encontrar Leonor o mais rápido possível. – ela se levantou da cama e estendeu a mão para Paulo que ainda não entendia nada.

— Leonor? A filha de D. Bernardo? Porque?

— Por que ele ficou por ela, Paulo! Ele não foi embora!

— Por isso que Cavendish perguntou a ele se era por causa de uma... – Paulo nunca usaria uma palavra tão desrespeitosa na frente de sua esposa – Ele usou uma que não ouso repetir diante de vosmecê. Quando Cavendish foi embora e ele nos soltou, seu pai ficou um tempo conversando com ele e eu ouvi o nome de Leonor Duarte da Meira. Na hora, não entendi bem. Mas, agora... Seu pai ficará ao lado dele.

— Então temos que encontrar Leonor depressa. – disse Isabel terminando de descer as escadas

Nesse momento, ela vê entrando pela porta a figura querida do pai e do irmão.

— Meu pai! Pedro! – correu para abraça-los.

Um pouco distante da cena familiar, Thomas sentiu-se feliz por ter tomado a atitude correta. Ainda mais ao ver as duas crianças correndo para abraçar D. Brás. O filho Pedro pegou um dos meninos e o jogou para o alto. O menino riu deliciado.

— Venha, D. Thomas! Conheça a família que você salvou.

Meio encabulado, Thomas adiantou-se e fez uma reverencia.

— Senhor... Senhora... – ele os cumprimentou.

Isabel adiantou-se e, sem cerimônia, o abraçou afetuosamente.

— Meu marido me contou o que o senhor fez para salvar minha família. – os olhos da jovem senhora estavam rasos d’agua, ele percebeu. – Além dele, outra pessoa já me falou muito do senhor.

— Verdade?

— Oh, sim! E eu não vejo a hora de voltar a ver o sorriso estampar o rosto de minha amiga Leonor Duarte da Meira.

Mas para a surpresa da portuguesa, os semblantes dos recém-chegados sombrearam-se.

— O que foi? O que há de errado? – ela perguntou.

— O irmão de Leonor, João Guilherme, foi vítima dos índios que irão nos atacar. – esclareceu D. Brás.