A procissão seguia em direção à igreja da Misericórdia iluminada com tochas e velas.

Ladeada por D. Constancio de um lado e D. Eugenia de outro, Leonor seguia juntamente com as outras pessoas. Ela vestia um lindo vestido de brocado branco bordado com pérolas nas mangas e no decote. D. Eugenia reagiu com espanto ao vê-la, pois um vestido tão rico assim só deveria ser usado em uma noiva. Ela respondeu que a ocasião merecia. D. Constancio entendeu a mensagem da noiva. Que ela nada faria para reavivar os sonhos de donzela destruídos por ele.

Os seus lábios não se moviam com as palavras da reza ministrada e seus pensamentos estavam longe de ser piedosos ou jubilosos como seria de se esperar durante uma procissão a celebrar o nascimento de Jesus Cristo.

Sua mente voltava à tarde daquele dia, durante a qual ela fazia companhia a D. Isabel Cubas de Proença que preparava a ceia festiva daquela noite. Entre carnes, verduras e legumes, aromas e gostos, Isabel olhou para sua antiga pupila e observou o semblante triste.

— O que tem vosmecê, Leonor? Estás tão cabisbaixa...

A jovem soltou um suspiro e respondeu.

— Saudades de meu pai e de Martim. Preocupa-me os dois a estar aí por esse sertão a fora.

— Não te incomodes... – tranquilizou-a Isabel indo de uma panela a outra. – Não é a primeira expedição de teu pai e com certeza não será a última. E ele não há de deixar nada de ruim acontecer com Martim.

Mas a expressão de tristeza não se dissipou do rosto de Leonor, Isabel percebeu. Havia ainda algo preocupando a rapariga.

— Mas não é só isso que está a preocupar vosmecê. Deixe de rapapés e me conte o que te inquietas.

Leonor permaneceu ainda de cabeça baixa alguns minutos. Era evidente que se debatia com algum assunto grave. Isabel começou a ficar preocupada. Será que Leonor havia cometido algum desatino?

— Eu não posso me casar com D. Constancio, D. Isabel! – ela revelou.

Isabel não conteve um suspiro exasperado.

— Ainda com essa? O que mais quer vosmecê, Leonor? O homem te adora. Não sabe o que faz para te ver feliz. – Isabel pegou o pingente que repousava sobre os seios de Leonor. – Olha essa joia que ele te deu. Só pode ser de algum ourives italiano. É uma peça rara. Deve ter custado uma fortuna.

Leonor olhou para a joia sobre a mão de Isabel e recordou do momento em que D. Constancio lhe dera a joia: “Para atar vosmecê a mim por toda a vida”. Era como uma sentença de prisão.

— Isso não me interessa D. Isabel. Queria eu que ele fosse um simples marceneiro, ou soldado ou pastor. Que não fosse rico e poderoso. Que não detivesse o poder de destruir uma vida inocente apenas com o bater de lábios.

— O que estás a dizer? De que vida inocente diz vosmecê?

— Da minha!

A veemência empregada atraiu a atenção das criadas que estavam a preparar a ceia. Notando isso, Isabel pegou na mão de Leonor a levando até uma sala vazia.

— Senta e me dize do que fala vosmecê. Por que tua vida corre perigo de destruição?

— O surpreendi uma noite a violentar uma das índias. Confrontei o canalha dizendo que havia de deixar a casa dele e contar ao meu pai sobre seu comportamento. E ele me chantageou dizendo que haveria de enlamear minha honra.

— Por que procuras pelos em ovos, Leonor? – respondeu Isabel. – Não és tão inocente assim para pensar que um homem viúvo como D. Constancio não haveria de servir-se de alguma índia.

— Concorda com isso?! – Leonor levantou-se horrorizada.

— Não se trata de concordar, Leonor. Trata-se de resignar-se. È uma prerrogativa dos homens.

— Prerrogativa?! A devassidão, o pecado?

— E desde quando sabes sobre do que é pecado ou devassidão, Leonor?

— Eu sei o que vi naquela noite. Aceitaria isso se fosse com D. Paulo? Que ele se deitasse com uma índia?

Isabel empalideceu um pouco diante das palavras de Leonor.

— Faço por bem desconhecer esse fato, Leonor; e vosmecê deveria fazer o mesmo. Teu pai irá casar vosmecê com D. Constancio e ponto. Ajas com teimosia e será pior para vosmecê. Pergunte a D. Eugenia o que a rebeldia trouxe para ela.

Leonor tornou a sentar-se.

— O que aconteceu com D. Eugenia?

— Esse fato é desconhecido aqui no Brasil, mas foi falado por muito tempo no Alentejo, de onde eles vêm. Meu pai contou para mim para servir-me de exemplo, pois também era um pouco rebelde. Ele me disse que D. Eugenia era uma moça linda, que tinha muitos pretendentes a seus pés. Era mui amada por seus pais e sua independência era vista com complacência por eles.

— Sim, assim como eu sou.

— É. Mas o pai de D. Eugenia permitia coisas a ela que D. Bernardo não permitira a vosmecê. Como eu dizia; D. Eugenia, a despeito dos melhores pretendentes a seus pés, enamorou-se de jovem advogado de Lisboa. Um profissional competente, mas sem posses. É claro que seus pais foram contra porque o casamento de D. Eugenia já havia sido acertado com o filho do conde de Bragado.

— E ela não concordou com o casamento?

— Não. E ela fez questão de dizer isso ao conde, ao filho e aos pais em pleno acerto. Só que o filho do conde era uma pessoa horrível. Mimado, ele não aceitou que D. Eugenia não agradecesse de joelhos o fato de ter sido escolhida por ele.

— Assim como D. Constancio.

— Mas D. Constâncio não agiu como ele. Ele fez questão de dizer a toda Portugal que havia se deitado com ela. Acredito que, se foi verdade, fora contra vontade dela. Mas é claro que a mácula ficou toda com ela. O jovem advogado, quando soube do caso, suicidou-se. A vergonha fulminou sua mãe e seu pai a mandou para um convento de onde ela só saiu para vir para cá, após a morte dele.

— Pobre mulher. Ela é tão melancólica, triste. Mas desconhecia a sua vergonha. – Leonor comentou sentindo sua simpatia crescer pela futura cunhada.

— Que isso te sirva de exemplo, Leonor. Merecedoras ou não, a vergonha será sempre imputada a nós mulheres. E uma vez maculada, ela nunca mais se apaga. E agora não quero mais que toques nesse assunto comigo. – ela se levantou voltando para a cozinha.

Leonor teve suas lembranças interrompidas ao ouvir uma grande sineta ser tocada e ver-se dentro da igreja. Sem que percebesse, D. Constancio a havia segurado pelo braço e a levava pela nave da igreja em direção aos bancos dianteiros.

O ilustre padre Marçal Baliarte estava diante da assembleia para oficializar a missa e esperou que a procissão encerrasse com a entrada da imagem de Jesus menino e que a mesma fosse depositada em uma manjedoura feita de palha seca.

A um sinal do padre Marçal, outro padre mais jovem, virou-se para um coral de crianças índias e elas começaram a cantar uma delicada musica sacra, jubilando-se e regozijando-se pelo nascimento do filho de Deus.

Ao final da música, o padre ergueu as mãos e abençoou a assembleia.

In nomine patris et fili et spiritus sancti.

Os que puderam, sentaram-se nos bancos. As famílias mais ilustres da Vila de Santos estavam ali para ouvir as palavras do padre. Os Olinto de Siqueira, os Cubas, os Adorno, os Góis, os Martins e mais uma dúzia de potentados daquela terra. Mas uma ausência sentida por todos era D. Bernardo Duarte da Meira.

O padre discorreu sobre a importância do nascimento de Jesus nas vidas das pessoas. Ao final da homilia, ele virou-se de costas para a assembleia e levantou o grande receptáculo dourado que levava a representação terrena do corpo de Cristo no mistério da Eucaristia.

Nesse momento, em que todas as pessoas levantaram-se, ao som do sino, para adorar o corpo de Cristo e receber o que para eles era o pão da vida; uma grande explosão foi ouvida e houve uma grande confusão dentro e fora da igreja. Uma palavra começou a correr de boca em boca junto com gritos e imprecações.

— Piratas!

Leonor agarrou a mão de D. Eugenia e as duas correram para uma das saídas laterais. Foram barradas por um gigante ruivo cabeludo e barbudo como um momo.

As duas gritaram e correram de volta para onde estavam outras mulheres. Os homens haviam desembainhado as espadas e lutavam contra os piratas. Mas poucos homens portavam armas e eles foram rendidos.

— Isso é um ultraje! – bradou D. Brás. – Quem são vosmecês?

— Calem-se! – uma voz de trovão ecoou entre as paredes. – Eu sou o capitão John Cocke, comandado por Sir Thomas Cavendish, corsário de Sua Majestade a Rainha Elisabeth. E essa vila, seus pertences, navios e tudo o mais são propriedade da Coroa Inglesa.

Um murmúrio indignado respondeu a essa declaração.

Caminhando pela nave principal do templo, o capitão Cocke estava rodeado por mais quatro que agiam como seus seguranças e entre eles estava Thomas.

Ao olhar para os presentes, seus olhos azuis cruzaram com os olhos castanhos de Leonor e tudo sumiu ao redor deles.

Nem gritos ou o menor murmúrio era ouvido. Nem o agarrar de mãos ou o toque suave de uma pluma era sentido. Todos os sentidos estavam voltados um para o outro. O coração a martelar no peito, a respiração ofegante e o tremor das mãos e das pernas. Um raio os atingira naquele instante.

“Seria o olhar dela um imã que o atraía”, pensou Thomas sem conseguir desviar os olhos dos dela.

“Seria o calor do corpo dele que incendiava o seu?” Leonor pensou sentindo o corpo queimar como se estivesse com febre.

Os dois miraram-se nesses segundos em que todas as perguntas foram respondidas, todas as preces atendidas e todos os desejos acendidos. Mas uma barreira de temor e ódio acabara-se de erguer-se entre eles. Pois ele era o odiado conquistador. Um pirata sanguinário que viera roubar-lhes a paz e os pertences. E assim sendo, ele não poderia sequer lhe dirigir a mais simples palavra.

Thomas sentiu um cutucão e seu capitão olhava para ele como se esperasse uma resposta.

— Horton, ouviu o que eu lhe disse? Homem, eu mandei que vasculhasse a todos.

Ainda aturdido, ele juntou-se aos outros homens. Joias e armas eram retiradas dos presentes. Mas Thomas sentia os olhos dela a queimarem suas costas e ao responder ao mudo chamado viu que os olhos dela estavam cheios de lágrimas de raiva e dor. Um dos companheiros havia acabado de arrancar de seu delicado pescoço o cordão de ouro que ela carregava.

Antes que ele pudesse chegar até ela, outro pirata tentava lhe arrancar o rosário que ela levava nas mãos. Ao lutar contra o bandido, a delicada peça arrebentou-se. Ferida em seu orgulho, Leonor ajoelhou-se no chão tentando recolher as delicadas contas douradas.

Ela olhou o rosário arrebentado entre suas mãos e apertou o delicado crucifixo até que a imagem de Jesus ficasse impressa em sua carne. Sem ajuda, ela tornou a levantar-se. Sua raiva era palpável. Nunca se renderia sem lutar.

Aproveitando a distração dos bandidos das mulheres, ela levantou as saias e correu para uma porta por trás do altar.

Mas Thomas não estava distraído como os outros. Cada movimento, cada respiração dela, era percebido por ele. Empunhando a arma, ele correu para trás do altar também.

Leonor correu até os fundos da igreja onde encontrou Igaracê pacientemente sentado.

— Igaracê! Corres! Vais encontrar o meu pai! Dizes que a vila foi atacada. Para que ele traga mais homens. Vais!

O índio saiu correndo até atingir a mata.

Nesse momento, Thomas que viera atrás dela chegou a tempo de ver Igaracê correndo entre as folhagens e levantou o arcabuz para atirar.

— Não! – gritou Leonor segurando o cano da arma e o movendo para cima.

O tiro foi disparado, mas não atingiu Igaracê que continuou a correr.

O pirata olhou furioso para a moça.

What did you do?! O que você fez?! – gritou enraivecido.

Leonor não compreendeu o que ele disse. Mas gritou de volta.

— Seu pirata imundo! Não vais atirar em Igaracê!

Jogando a arma para as costas, ele a agarrou rudemente pelo braço, disposto a agredi-la, mas a moça recusou-se a encolher-se de medo.

Os dois olharam-se tomados pela raiva. A respiração ofegante. Os olhos de Thomas lançavam faíscas e todo o corpo de Leonor tremia.

Mesmo enraivecido, Thomas não pôde deixar de admirar o rosto bonito e o colo que o decote do vestido de festa deixava a mostra. A marca que o cordão deixara ao ser arrancado era a única falha na pele branca. Havia tanto tempo que ele não tinha uma mulher, pensou sentindo o desejo crescer por aquela que, em nenhum momento, abaixou a cabeça para ele.

Os dois encararam-se. Em algum momento da corrida ela havia perdido o véu rendado que usava e ele pode ver seus cabelos a roçarem a face afogueada. Sentiu vontade de tocar onde os cabelos tocavam.

A mão dele parecia queimar-lhe a pele através do tecido. Com certeza sentiria aquele toque por muito tempo ainda. Mas não devia esquecer que ele era um pirata. Alguém que só deveria causar dor e destruição.

Por um segundo, a despeito da raiva de ambos, Leonor e Thomas sentiram que bastaria um fechar de olhos ou uma respiração mais profunda e os dois se deixariam levar pela atração fulminante.

— Venha! – Thomas a puxou rudemente pelo braço de volta para a igreja, desfazendo o encanto que ele sabia ser perigoso. A moça queria resistir, mas o aperto do pirata em seu braço não deixava dúvidas do que ele faria com ela se ficasse ainda mais bravo.

Ele a jogou junto com as outras mulheres. Isabel, Eugenia e as outras mulheres que estavam na missa a acolheram verificando e perguntando se Leonor estava bem.

Thomas se aproximou do capitão Cocke e trocou algumas palavras com ele olhando para a moça. O capitão pirata ficou um tempo olhando para o grupo de mulheres. Depois se encaminhou para elas e pegou Leonor pelo braço diante do protesto das outras muilheres.

— O que você fazer? Para onde o selvagem ir? – Perguntou em mal português. Diante do mutismo da moça ele a sacudiu violentamente. Thomas desviou o olhar da cena.

Mas Leonor travou os dentes e não disse nada.

O capitão Cocke a largou. Depois fitando os presentes deu uma gargalhada sarcástica.

— Estou vendo que eu precisar ter mais cuidado com as mulheres do que com os homens desse lugar. Amanhã eu decidir o que eu fazer com essa lady tão corajosa.

Se a intenção do capitão era amedrontar Leonor, ele teve viagem perdida. Pois a moça não abaixou a cabeça. Cocke fez um sinal para uns quatro ou cinco piratas e saiu da igreja. Após um rápido olhar para Leonor, Thomas também saiu.

— Leonor, criança... – Eugenia a abraçou. – O que vosmecê fez?

— Pedi para Igaracê procurar o meu pai. – a coragem que a sustentara até aquele momento ameaçava abandoná-la. – Ele conseguiu fugir da vila pela mata. Ele é rápido e conhece os caminhos que meu pai faz. Ele vai encontrá-lo. – sua voz tremeu.

— E do que vai adiantar? – perguntou Dom Constancio nervoso. – Colocaste a todos nós em risco.

Alguns dos presentes murmuraram em aprovação as palavras dele.

— E o que meu noivo sugere que façamos? Que continuemos aqui a mercê desses facínoras? Ou honramos nosso sangue e lutamos por nossa liberdade?

— Vosmecê é louca! – disse Dom Constancio. – Estamos desarmados.

— Mas somos muitos! Quantos eles são? Uns vinte, trinta homens?

— Calma, minha criança. Eles podem ter muito mais homens lá fora. – ponderou Dom Brás. – Seu noivo tem razão. Devemos evitar um derramamento de sangue. Sem nossas armas, seremos massacrados. Já agiste com coragem, enviando o bugre atrás de teu pai. Agora só nos resta esperar.

Leonor teria respondido, mas o olhar de advertência de Isabel a fez calar.

Inconformada, ela limitou-se a deixar as mulheres cuidarem dela.