06.

Música do capítulo

ZONA 7

Floresta Dhara – fronteira leste de Fiore.

A árvore repentinamente pegou fogo.

Não por inteira, mas a onda de calor que me engolfou foi forte o suficiente para arder os olhos e me banhar em suor. Folhas flamejantes que despontaram subitamente dos galhos formando uma cobertura vibrante e luminosa, além de quente como fornalha.

Sou pega desprevenida pelo clarão e não vejo quando a criatura aterrissa no solo. As chamas sobre minha cabeça não se alastram e seguem, submissas, os movimentos de uma dança controlada, claramente domadas pelo poderio de seu senhor.

Se antes a escuridão quem governava os arredores da floresta, agora ela se afugenta nos limites da luz, acovardada pela aura ardente do ser em forma de homem, a me encarar com o olhar enigmático. E diante do brilho infernal provindo da árvore, tenho a imagem mais vívida e nítida do predador até então oculto.

Durante toda minha vida, imaginei como seria a aparência do ser monstruoso que habitava as lendas ancestrais do povoado do Phoenix; aquele que incendiara uma vila inteira ainda criança, aquele quem carregava a alcunha de Dragneel, o Salamandra. E não sem motivo; a cria de uma bruxa maléfica e um dragão poderoso… e a força de mil homens sobre as mãos.

Mas agora, frente a frente com a criatura, vejo que minha imaginação fértil nunca fez jus à realidade. Pois em vez de um monstro humanóide e grotesco coberto por escamas, havia um semi-deus. Em vez de garras afiadas e membros disformes, havia o corpo forte e perfeitamente esculpido de um guerreiro, o semblante injustamente belo e implacável de alguém consciente da abrangência do próprio poder. O mesmo tipo de beleza hipnotizante e cruel que eu presenciara apenas algumas horas antes, no despertar de um vulcão enraivecido.

Nenhuma sombra esconde qualquer traço de seu corpo. E assim como um animal, não parece se importar com quaisquer pudores humanos quanto à ausência de vestimentas. Contudo, não é a sua completa nudez que me causa o maior incômodo, mas a pujança e a misticidade de seus olhos dracônicos. Eles me avaliam de cima, verdes e ácidos, parecendo prestes a devorar a minha alma.

A fuga não é mais uma opção. Lutar, muito menos. Ciente da verdadeira catástrofe na qual os deuses me presentearam, uma voz interior diz que a minha missão termina aqui. Você não escapará, ela sussurra, uma vida ceifada como tantas outras… E tantas mais a acompanharão em seguida.

A frustração e a raiva fervilhante só não superam o meu pavor; o suor gelado a escorrer pela testa, apesar do calor febril. Sinto minhas forças se esvaírem junto ao meu sangue, a tontura familiar que antecede a inconsciência. Cada célula do meu corpo luta para permanecer em alerta, a adrenalina trabalhando contra a exaustão, mas temo que não por muito tempo. Reconheço a minha última opção restante: render-me.

Trêmula, abaixo a cabeça e lentamente deposito o arco e a aljava no chão, longe de meu alcance. Em seguida, com mais relutância, desfaço-me também da adaga, empurrando-a na direção do Salamandra. Esta é minha proposta de paz: nenhuma resistência, estou à sua mercê.

De joelhos e com as mãos sobre o chão, é difícil manter a compostura. Nunca me senti tão patética. Incapaz. Por dentro quero chorar (-(gritar), clamar a Jellal por um resgate que nunca virá. Sua presença física havia há muito partido do mundo, mas nunca me abandonou por inteira. Dentro de mim, a minha voz da razão se assemelha a sua, e sobrepõe-se à voz anterior inclemente, proferindo os seus mais sábios ensinamentos.

Às vezes, para ganhar a guerra, é necessário perder uma batalha. — Sentou-se ao meu lado na cama da enfermaria, enrolando a gaze cuidadosamente em meu braço. Aquele consolo não era suficiente para acabar com meu mau humor, percebeu, mas, ainda assim, continuou: – Lembre-se Lucy, não há vergonha na rendição. As consequências podem ser dolorosas, mas enquanto permanecer viva, você ainda estará dentro do ringue.

Agarro-me a essa memória, torcendo para ter feito a escolha certa.

Não sou capaz de prever o que a criatura fará, e mal tenho coragem de erguer os olhos para buscar saber. Em contrapartida, meus outros sentidos estão mais do que alertas, o que faz meus braços se eriçarem instantaneamente quando, a criatura, enfim, se move.

Ele parece brincar comigo, deliciando-se com o meu desespero, pois circula ao meu redor, postergando qualquer que fosse sua decisão. Sinto a raiva inflamar em resposta, e quando ele torna a parar na minha frente, arrisco uma espiada por sob a franja do cabelo – apenas para vislumbrar um sorriso cínico e perturbador se moldar em seus lábios.

Enredados por um jogo silencioso de olhares e movimentos metódicos, nenhuma palavra é trocada. Ambas as partes reconhecem as regras subentendidas do jogo. Falar é o mesmo que ativar um botão de detonação em um campo de guerra.

De onde está, ele se agacha para que eu não tenha como esconder o rosto de seu olhar. A coloração vermelha do fogo mancha sua fisionomia, provendo-o um ar diabólico, e não consigo identificar a cor real de seus cabelos, assim como não consigo diagnosticar sua real intenção depois de todo aquele teatro ritualístico.

Estamos presos novamente no olhar um do outro, enquanto respiro curtamente tentando controlar o pânico crescente. Ele então, faz um gesto, que não tardo a compreender. Com o antebraço erguido, usa o dedo indicador para apontar o seu pulso esquerdo. É um gesto mais do que claro, e me surpreende mais uma vez com sua esperteza de jogador.

Ele quer meu bracelete. Sabe que é um segundo suporte de armas e meu referencial para identificação de perigo. Mas como poderia saber? E por que haveria de querê-lo, se pode acabar comigo a qualquer momento e sem o mínimo esforço?

Com um clique metálico do fecho, retiro o acessório, os dedos atrapalhados, ciente de que tudo o que tenho de mais valioso está contido nele, e que provavelmente não sobreviveria um dia a mais na floresta sem o objeto – caso, por algum milagre, eu seja poupada.

Depois de atirá-lo em sua direção, a criatura estende o braço para agarrar o bracelete e volta a se levantar com a mesma postura altiva de antes. Examina-o por alguns instantes, parecendo saber exatamente quais comandos executar pela tela do dispositivo, o rosto rígido e indecifrável. Até que sua atenção dispara para mim, e como temia, a provocação à distância não lhe parece mais tão interessante.

O Salamandra enfim dá os primeiros passos para perto e esqueço como respirar. Meu coração bate enlouquecidamente, enquanto milhares de pensamentos cruzam a minha mente; um mais terrível que o outro, tentando adivinhar o que poderia se passar dentro da cabeça de um ser quase inumano, senão demoníaco. Pretendia me estraçalhar como a um animal raivoso? Queimar me lentamente, aprazendo-se com o som de meus gritos?

De repente a nudez desconcertante entra em foco, tornando-se opressiva e irrevogável. Meu estômago vazio se revira e se contorce de formas inimagináveis, subitamente consciente do erro abissal que acabo de cometer.

Atribuindo seus instintos à semelhança de um animal voraz, esquecia-me sua parte homem, igualmente vil e ameaçadora – talvez ainda mais asquerosa – que antes mesmo de dar o cabo em minha vida das formas mais horrendas possíveis, também buscasse satisfazer seus desejos mais libidinosos.

Minha tremenda estupidez é como um tapa na cara. Desfazer-me de minhas armas e imaginar que poderia ser poupada... quanta tolice. Mesmo que atacá-lo significasse uma morte mais rápida, se para ambas as alternativas o meu destino convergiria até o túnel obscuro da morte, então era melhor ter permanecido com armas e lutado até o fim.

Meu olhar relanceia para minha adaga, repousando tão perto, mas não menos inalcançável. Quão rápido poderia ser seu ataque? Haveria alguma possibilidade de eu alcançar a lâmina e atingi-lo com um movimento rápido do pulso? Fecho os olhos para me ver livre do cenário infernal e aclarar as ideias, mas é inútil. Ainda vejo a claridade do fogo através das pálpebras, ainda sinto o suor se acumulando nas sobrancelhas e o cabelo grudando na nuca, a respiração pesada com a saturação do gás carbônico no ar, as mãos da inconsciência puxando-me para um abismo de trevas cada vez mais próximo... Não, não há possibilidade.

De repente as chamas se apagam. A escuridão retorna imperiosa, espessa e desoladora, e não sei reconhecer se ainda estou acordada, mas a incerteza desvanece, tão logo sinto um toque abaixo do queixo que ergue meu rosto. Meus músculos tensionam-se de um medo cru e pungente, como sentira apenas uma única vez na vida.

— Filha de Layla. – Sua voz é um mero sussurro, mas retumba no silêncio sepulcral da floresta, rouca pelo desuso e escorregadia como melaço.

O espanto quase me faz vacilar, mas de alguma forma, permaneço silenciosa e imóvel. Meus olhos demoram para se ajustar à baixa luminosidade e percebo que as irises do Salamandra haviam se enegrecido em algum momento, pois voltaram a brilhar, perigosamente próximas.

— Foi agraciada esta noite pela sorte de ter nascido do ventre de sua mãe e não de outra mulher. – Seu dedo indicador desliza de meu queixo até as madeixas que se soltaram do meu penteado. – Prove-me ser digna de seu sangue e não tocarei em um fio de cabelo seu.

— Já está a tocar. – Estou rouca pela fraqueza, mas a voz que sai de minha boca não parece minha. Ela reflete uma audácia que não sinto. – O que quer?

Minha cabeça gira, me sinto leve demais, aérea. O véu da inconsciência já turva a visão e nubla a mente, como se tudo não passasse de um delírio, fruto de meus sonhos mais tenebrosos. Não é preciso muito para isso, no entanto. Travar um diálogo com um ser lendário e sanguinário já é por si mesmo, irreal o suficiente. Ainda assim, luto para me concentrar e resguardar um pouco da prudência, antes que a minha insensatez leve a melhor e eu termine por perder a cabeça, literalmente.

Só que em vez de irritá-lo, vejo o sorriso afiado do Salamandra se alargar diabolicamente em meio ao brilho doentio provindo de seus olhos.

— A garota fede a medo – Seus dedos voltam a traçar um caminho até meu pescoço, leves como penas e ardentes o bastante para assustar. - Mas não abandona a língua.

Ele se detém nos dois botões do colarinho da minha manta negra e os desabotoa. As pupilas verticais me encaram com deleite sombrio por trás delas.

— Usurparei isto em troca de sua ousadia. – declara o Salamandra, o tom de uma calma sinistra, enquanto arranca o tecido de meus ombros.

A friagem da noite recebe meus ossos e minha tremedeira se agrava. Estou tremendo com o frio, a perda de sangue e o medo, e com o passar do tempo, manter-me desperta torna-se cada vez mais difícil e doloroso.

Aguente firme, Lucy. Mais um pouco...

Diante das reações que me provoca, ele se atreve a se aproximar ainda mais, deliciado, até que sua boca quase encoste em meu ouvido.
Involuntariamente eu me encolho quando o sopro de seu hálito atinge minha nuca, meus olhos embaçados de lágrimas que não ouso derramar.
Só mais um pouco, imploro a meu próprio corpo nauseado pela dor.

— Continue seu caminho, donzela. – ele sussurra – Até que eu me decida se gosto de você.

O Salamandra enfim se levanta, avaliando-me com o rosto sério, e mal consigo crer que está indo embora; recobre-se com a nova capa como se de repente a nudez do próprio corpo passasse a incomodar e se afasta com os pés descalços, mal produzindo ruído.

Assim que sua silhueta imerge na escuridão da mata, uma onda de alívio me preenche da cabeça aos pés e no mesmo instante, meu corpo desmorona e tudo se apaga.