02.

Música do capítulo

Um passo de cada vez. Não me permito pensar além disso.

A escadaria até a vila sempre fora extensa, mas agora parece interminável. Lances e mais lances de pedra que contornam a face rochosa da montanha de um lado, enquanto do outro, apenas uma queda fatal à espreita. Há pessoas subindo e descendo com a mesma pressa – esbarro os ombros pelo caminho. Estou sem fôlego, as panturrilhas queimam quando finalmente alcanço o último degrau. No entanto, não paro e sigo até os alojamentos militares em um passo frenético.

Há gritos e lamentos por todos os lados. O último terremoto espalhara desordem. Frutas e legumes esmagados estão espalhados pelo chão de pedras, algumas barracas e tendas desmoronaram. Oficiais buscam acalmar e guiar os habitantes para seus respectivos grupos – muitos, principalmente os idosos, se recusam a abandonar suas casas.

O setor militar está vazio e silencioso – todos já haviam sido alertados, suponho. Atravesso o pequeno pátio até o alojamento que divido com Levy. Ao fechar a porta, já do lado de dentro, sinto o atordoamento me arrebatar por breves instantes diante da tranquilidade ilusória contida naquelas paredes – como se nada do que acontecera há pouco fora, de fato, real. O pensamento é convidativo, mas enganoso. Respiro fundo e ponho a mente para funcionar.

Armas. Abro o baú em frente a minha cama. Pego apenas o necessário: arco, flechas, aljava, espada. Amarro um coldre para uma adaga na coxa direita.

Mapas, bússola. Abro as gavetas – estão cheia de papéis. Dedilho rapidamente os documentos até encontrar o que preciso: um mapa mais detalhado da floresta Dhara, outro mais abrangente, englobando toda Fiore. Em cima da escrivaninha encontro minha bússola dourada ao lado do meu caderno de pesquisas – hesito antes de apanhá-lo também.

Roupas. Agarro capas, braçadeiras, vestes quentes. Primeiros socorros. Encontro a maleta de baixo da cama. Mantimentos. Vou até o armazém da cozinha e apanho alguns enlatados e frutas, além de garrafas d'água. A quantidade não é nem de longe a desejada, mas meu repositório mágico já está em seu limite – será o suficiente para os três primeiros dias, com o racionamento adequado. O restante da viagem dependeria da caça.

Retorno até o pequeno alojamento para uma última checagem.

Em outros tempos morara no casarão mais rico da vila. Lembro-me vivadamente de quando precisara me despedir das memórias de cada um dos cômodos. Hoje é mais um dia de despedida. Mas desta vez, os pertences pessoais ficarão para trás – retratos, livros e outros objetos, não há espaço para mais nada.

Os minutos transcorrem, impassíveis. Não há mais tempo a perder. Sigo em direção aos portões da vila. O dia está nublado e cinzento, apenas algumas horas longe do entardecer.

Devido aos perigos sombrios que rastejam pela floresta Dhara, considerada a maior de Fiore, a vila fora cercada há muito tempo por um muro de pedras antigo que ainda resiste, praticamente intacto, até os dias atuais. Alcançando dez metros de altura e dois quilômetros de comprimento, toda sua extensão, tanto interna quanto externa, é esculpida por runas ancestrais e desenhos misteriosos. Por muitas tentativas, desenhei e cataloguei as marcas, tentando encontrar padrões de leitura, mas a complexidade e diversidade dos símbolos apenas me renderam dias de folga frustrados.

Diziam que as runas protegiam a vila de quaisquer perigos vindos de fora.

Ninguém imaginaria, naqueles tempos, que um dia a ameaça poderia vir de dentro.

Quando chego aos portões de ferro, Levy ainda não está lá. Descanso as mão nos joelhos, buscando recuperar o fôlego. Há dois guardas a postos, um de cada lado dos portões abertos, eles me cumprimentam tão logo me reconhecem. Seus rostos apáticos, sugados de qualquer vitalidade, me revelam que já estão a par das notícias.

Mais oficiais se aproximam, guiando filas de homens e mulheres adultos – alguns são bastante jovens, mas não menos de quatorze anos. As pessoas se amontoam em três grupos separados, todas muito silenciosas – suas faces chorosas e abatidas, mas também temerosas. Tiveram que se despedir de seus entes queridos com a frágil promessa de reencontro para dali a alguns dias. E agora, reúnem coragem para embarcar em uma arriscada jornada nas entranhas da floresta, da qual nunca antes haviam ousado pisar.

Aguardo por Levy enquanto o tempo escorre por entre meus dedos. Já não restava muitos minutos, confiro o horário em meu bracelete esquerdo. O cronometro marca dois minutos. Vamos, Levy.

De repente, uma situação espalhafatosa se contrasta frente a atmosfera sombria. Gritos de mulher. Todas as cabeças se viram para ver o alarde. Uma barreira de oficiais tentava conter uma mulher de cabelos pretos que carrega um bebê nos braços. Mães de filhos ainda muito pequenos deveriam ser direcionadas ao abrigo anti-invasão, e ao que parecia, a mulher conseguira fugir. Ela se debatia inutilmente para escapar do aperto dos guardas. A expressão vidrada e a voz beirando a loucura.

— É o aviso! Ele está vindo! E está faminta, a criatura! Deixe-me ir! O filho do Dragão de fogo há de devorar as vossas carnes e lamber os vossos ossos se ficarem, tolos!

— Senhora, acalme-se, não há criatura alguma. – suspira, cansado, um dos oficiais que procurava apaziguá-la. – A senhora e seu filho devem seguir junto ao grupo na entrada do templo.

Quando a mulher finalmente percebe que seus esforços contra os guardas seriam inúteis, põe-se de cócoras, balançando para frente e para trás, enjaulada em seu próprio mundo. O bebê chora impiedosamente alto.

— É tarde demais, tarde demais… – começa a murmurar repetidamente, enquanto protege a cabeça do filho contra si. – Piedade de nós, piedade de nós…

Sinto as lamentações fervorosas da mulher me gelarem até os ossos, contudo, não mais do que quando um berro agudo traz à tona nossos maiores temores. Eu ergo a cabeça para ver e logo em seguida, uma cadeia de gritos se propaga, como chamas em uma lavoura. O silêncio abatido dá lugar novamente ao caos e mesmo os guardas estão desorientados demais para fazer qualquer coisa senão rezar.

Uma explosão negra e ensurdecedora, uma cascata de fogo. A luminescência alaranjada, bela e letal, que hipnotiza os olhos. Rios de lava são expulsos da cratera gorgolejante – destruidores em seu caminho, eles vieram reivindicar o que lhes é de direito. Mas aquela ainda não é a sua arma mais mortífera.

Mais explosões. Cinzas e pedras incandescentes sobrevoam quilômetros de altura, atingindo um raio perimetral perigosamente próximo da vila. O gigante está enfurecido.

Cortina de gases quentes e tóxicos se lançam em direção ao céu branco. Uma nuvem que se alastra como uma rosa a desabrochar, branda e inofensiva na aparência – mas recobrindo tudo com seus braços gasosos beirando a temperaturas de 400°C. O fluxo piroclástico. Precisava fugir. Agora.

Entretanto, outro fenômeno, ainda mais sinistro, rouba-me qualquer pensamento lógico, qualquer pretensão de movimento.

A sombra de um ser alado sobrevoando a corrente piroclástica mortal.

Estou a enlouquecer? Nenhuma ave – nenhum ser vivo – sobreviveria sem antes ter seus fluidos e tecidos orgânicos evaporados em questões de segundos, não bastasse o aumento da pressão intracraniana que faria qualquer crânio explodir.

Mas lendas ancestrais preconizam outra realidade, a existência de um único ser vivo resistente até mesmo as chamas do inferno – dragões.

— A criatura, a criatura! Óh, céus! – volta a berrar a mãe fervorosa.

O alarme do bracelete já está apitando quando ouço o clamor dos soldados. Uma enorme doma mágica e translúcida começa a se moldar, envolvendo a vila.

A lenda é verdadeira.

A frase se repete e se repete em minha cabeça, martelando o pânico em meu interior. Levy não está em lugar algum. Não há mais tempo – a sirene em minha mente grita. Rezo para que nos encontremos mais a frente. O mundo se dissipa ao meu redor e eu apenas corro.

A adrenalina ferve em meu sangue, garantindo a energia que preciso para escapar. O mais longe possível da nuvem de cinzas mortal e de qualquer criatura que veleje junto dela.

O manto gasoso varrerá qualquer resquício de vida, e em algumas horas, a lava ardente terminará por soterrar o resto. A natureza enterrará seus próprios mortos junto a um passado perdido. A vila do Phoenix finalmente encontrará o seu fim depois de milhares de anos. E levará consigo as memórias – e pessoas – de uma vida inteira.

Mas talvez a natureza estivesse muito mais raivosa e desejasse reivindicar muito mais do que uma remota vila nas montanhas. Explosões, rios de lava, nuvens piroclásticas… O vulcão Phoenix lançara aos ares uma quarta arma mortífera.

A criatura que sobrevoa os céus de Earthland.

O filho do Dragão de Fogo, Dragneel.