A Sétima Zona

A melodia da vingança


08.

ZONA 7

Floresta Dhara – fronteira leste de Fiore.

Acordo com o cheiro de carne cozida.

De início, imagino que estou no alojamento que divido com Levy, deitada sobre o colchão fino de meu catre, no qual é possível sentir a dureza das tábuas de madeira embaixo. Se isto fosse verdade, Levy acordaria em questão de segundos ao meu lado, reclamando das dores nas costas, primeiro xingando o colchão extremamente fino que nos era oferecido pelo departamento militar, e depois me questionando, com vigor, onde é que eu estava com a cabeça quando decidi me juntar à milícia, abandonando o luxo das camas de dossel e travesseiros de penas da Mansão Heartfilia, e eu apenas riria em resposta. Mas aqui não é nosso alojamento – não tardo a reparar.

Ainda deitada, observo ao redor. Uma lona branca, sustentada por uma haste ao centro, recobre o pequeno espaço amontoado que me cerca. A claridade e o calor que transpassam o tecido demonstram que já é dia. Dois catres de madeira – um dos quais eu repouso – estão montados apertadamente um contra o outro, além de um leito improvisado no chão com cobertores e almofadas. Há também uma série de pertences e equipamentos, como armas e kits de primeiros socorros, espalhados pelo ambiente; uma bagunça notável que indicava, que fosse quem fossem seus ocupantes, pareciam atarefados o suficiente para se darem ao trabalho de uma limpeza.

Ao tentar me sentar, as dores me recebem por todo o corpo. Massageio meus ombros doloridos, logo percebendo minha perna direita devidamente enfaixada com gaze na região da panturrilha.

Confusa, procuro recapitular os últimos eventos antes de desmaiar e entender como fui parar aqui. Apesar de alguma dificuldade inicial, logo as memórias me invadem com bastante clareza; a erupção do vulcão Phoenix, minha missão de fuga, a perseguição dos lobos-gigantes, e o aterrorizante encontro com o Salamandra – suspiro, quase desejando não ter relembrado. A única explicação congruente é que alguém tivesse me encontrado inconsciente na floresta e me levado até seu acampamento. Não é comum que pessoas acampem pela floresta Dhara, e o mais provável é que os grupos sobreviventes do Phoenix ainda estivessem a alguns quilômetros de distância – principalmente porque, pela intensidade das dores que ainda sinto pelo corpo, não passara muito tempo desde que apaguei, provavelmente nem um dia.

— Olha quem acordou! – Ouço uma voz bem-humorada vir da direção da abertura da tenda. Uma mulher bonita de curtos cabelos brancos me recebe com um gracioso sorriso de covinhas, assim que adentra o abrigo.

— Bem na hora do rango! Bom, não é surpresa. Afinal, dizem que a Divina Sopa acorda até os defuntos! – exclama, divertida.

Apesar da aparência inofensiva, suas vestes diziam muito sobre seu modo de vida. Calças justas e botas de couro, bem como coldres para armas amarrados em suas pernas e tiras de cinto afiveladas com espaço para prender mais apetrechos em seus antebraços. Uma caçadora, sem dúvidas.

Apenas a encaro, sem saber exatamente como reagir. A verdade é que qualquer pessoa que viajasse por Dhara, era no mínimo, suspeita, justamente porque ninguém o fazia. Apesar da posição receptiva e de muito provavelmente ter salvado minha vida, jamais poderia antecipar os seus verdadeiros planos para mim.

Alguns segundos de silêncio constrangido se passam até que a mulher resolva se aproximar, sentando-se com as pernas cruzadas no colchão em frente ao meu.

— Ora, não olhe pra mim com olhos tão desconfiados. – brincou. – Meu nome é Lisanna. Uma mortal como você.

Sorrio levemente com o comentário descontraído.

— Lucy.

Seus olhos azuis-celeste se acendem, divertidos.

— Muito bem, srta Lucy. Aposto que está com fome. Vamos para fora, então poderemos encher o estômago enquanto conversamos mais. Consegue se levantar? – ela pergunta, oferecendo o braço.

Assinto timidamente, um pouco desconcertada com a gentileza da mulher e me levanto com algum esforço. Sinto a pontada ao dar o primeiro passo; a albina vem logo atrás, servindo de amparo. Assim que atinjo o limiar da entrada, a luz do sol cega meus olhos. Pisco algumas vezes para normalizar.

Do lado de fora, deparo-me com uma pequena fogueira rodeada por assentos improvisados, como pedra e troncos, enquanto um suporte feito de galhos mantém uma panela pendurada sobre o fogo. Examino a floresta ao redor, todas as suas cores e sons tão deslumbrantes e enigmáticos quanto de costume, e o sol à pino sobre as árvores, propiciando as mesmas sombras suaves e travessas. Entretanto, percebo uma maior concentração de pinheiros e araucárias entre as espécies de árvores – o que era estranho, já que na noite anterior me lembrava de estar rodeada principalmente por angiospermas¹. A exatamente que distância do acampamento eu fui encontrada, afinal?

A albina passa por mim para cuidar do cozimento da sopa, enquanto eu volto a mancar em direção a um assento.

— Não se preocupe, logo sua perna estará nova em folha. – informa Lisanna ao mexer o caldo da panela com uma colher de pau e encher duas tigelas de madeira até a borda. – O unguento que passei em sua ferida é poderoso.

— Obrigada por me ajudar. – Sento-me em uma das pedras alojadas próxima à fogueira. – Não fosse sua bondade, minha perna estaria terrivelmente infeccionada agora.

Lisanna refuta o agradecimento descontraidamente com a mão, como se ajudar alguém ferido não fosse mais do que sua obrigação.

— Jamais poderia ignorar alguém no estado em que você estava. – Ela me entrega uma das tigelas e senta-se em um toco de tronco ao meu lado, segurando a própria. – Mas admito estar bastante curiosa em como uma bela e jovem moça como você veio parar sozinha nas entranhas de Dhara.

— Bem... – começo, engolindo uma colherada da sopa. Não tinha reparado em quão faminta eu estava até o sabor delicioso da carne e do tempero do caldo invadir a minha boca. Jellal reprovaria que eu aceitasse tão prontamente a comida de estranhos, mas infelizmente minha fome estava além de tais escrúpulos. Além disso, não faria sentido alguém se dar o trabalho de me socorrer, só para depois me envenenar com comida. – Você me parece tão bela, jovem e sozinha quanto. – digo, brincalhona.

Claro, o ‘sozinha’ havia sido uma pequena isca, um teste. Afinal, não me passou desapercebido o leito improvisado no chão, no qual, obviamente só fora preparado posteriormente, para que uma das duas camas pudesse ser cedida para mim – uma pessoa ferida. Para minha surpresa, e certo constrangimento culpado, Lisanna responde com aparente sinceridade e sem qualquer indício de desconforto.

— Ah, você me lisonjeia! Sou mais velha do que aparento. E de qualquer modo, não estou sozinha. Meu irmão está comigo, mas saiu ainda há pouco para buscar lenha.

— Entendo. – respondo, pensativa. – São aventureiros? Digo, não é comum acampamentos em Dhara, pelo menos não por esporte.

— Hm... aventureira? Acho que eu poderia me considerar como uma, gosto de como soa. – ela sorri, olhando para os pinheiros acima, parecendo viajar por memórias sonhadoras. – Mas não, estou aqui a trabalho. Tempos de caça, como diz o meu irmão.

Tempos de caça. A expressão ecoa dentro de mim e por algum motivo, me provoca calafrios.

Depois de mais algumas colheradas do ensopado, percebo que não há espaço para desconfiança, não quando vidas estão correndo riscos neste exato momento, não quando uma ameaça sombria está à solta e que só os deuses poderiam dizer quando voltará a dar as caras.

— Preciso de sua ajuda. – confesso abruptamente, arrancando-a de seu transe de sonhos – Sou uma militar a caminho de Magnólia, mas tenho pressa. Uma grande tragédia aconteceu há dois dias. Se vocês estão aqui há mais tempo, provavelmente devem ter percebido o estrondo e o chacoalhar do solo. Foi o vulcão da fronteira, o Phoenix... ele eclodiu de repente. Perdemos a comunicação com a central e agora minha aldeia está soterrada, muitas pessoas estão presas neste exato momento em um abrigo. Preciso trazer reforços o quanto antes, no entanto, ainda estou a seis dias da cidade. Se você e seu irmão têm passagem-livre pela rede de portais, por favor, eu a recompensarei com moedas de ouro assim que chegarmos à minha casa!

Lisanna me encara com evidente choque ao fim de minha inesperada confissão.

— Que horror! – exclama com as mãos sobre o peito. – Acalme-se, amiga. Vou te ajudar, claro, temos passagens e jamais a cobraria por isso. Levarei você aonde desejar ir.

— Não tenho palavras suficientes para dizer o quanto sou grata.

Ela dá um pequeno sorriso, pousando a mão sobre meu ombro.

— Imagino que tenha passado pelo inferno nos últimos dias, é muito corajosa. Você está bem?

Existe alguma forma de eu estar bem?, penso, repentinamente amarga e infantil, mas logo me repreendo. Ela estava apenas sendo educada, e eu preciso me manter sã de alguma maneira. Respiro fundo para acalmar os nervos. Lembro-me de que existem problemas muito mais urgentes a serem resolvidos do que meus próprios sentimentos conturbados. Eu ficarei bem, digo a mim mesma.

— Ficarei bem. – repito as palavras em voz alta como um mantra que pudesse se realizar. Em seguida, rumo para um assunto inadiável. Depois do que esta mulher fez por mim, é o mínimo que eu posso fazer em troca. – Eu... Eu tenho que lhe contar algo. Talvez não acredite em mim, mas seria melhor que voltassem para casa também, você e seu irmão correm muito perigo estando aqui.

A albina me analisa com as sobrancelhas franzidas por alguns segundos, mas então volta a sorrir.

— Estamos habituados aos animais daqui, não se preocupe. – Deu de ombros.

— Não me refiro aos animais. – sussurro, enquanto olho nervosamente para os lados, atenta a qualquer oscilação estranha vinda das folhas acima. – Há uma criatura pelas redondezas... de aparência humana. Pode estar por perto. Nas lendas de meu povo, o conhecemos por Salamandra.

Lisanna, de repente, está estática, seus olhos arregalados. Logo depois se inclina para mim, disparando perguntas sussurradas.

— Você o viu? Ele falou com você?

Assinto, sentindo a garganta seca ao me lembrar do terror daqueles olhos. Ela se levanta, de súbito.

— Venha, vamos para dentro. – Lisanna puxa meu pulso, induzindo-me a entrar com ela para a segurança do abrigo. Como um desafino entre acordes, espanto-me com a seriedade que se apodera de sua voz, que até então se portava tão leve e descontraída.

Assim que adentramos a barraca, Lisanna pede para que eu me sente em sua cama, mas ela mesma permanece em pé, pensativa, caminhando de um lado para o outro no espaço diminuto. Algo está errado, reparo. Ela parece perturbada, ansiosa.

— Não achei que fosse acreditar tão depressa. – Quebro o silêncio, observando-a com estranheza.

— Quando você o viu? – indaga, começando a vasculhar algo em suas bagagens. – Ele te fez algum mal?

Aperto minhas mãos em concha sobre o colo, nervosa pela forma despreocupada que adotou para discutir o assunto. Ela percebe meu silêncio repentino e olha para mim, logo entendendo o motivo da minha apreensão.

— Não se reprima – Volta a remexer em suas coisas. – Esta tenda tem propriedades mágicas. Nenhum som ou palavra escapará para o lado externo.

Anuo com a cabeça, mais relaxada com a informação.

— Na noite passada, antes de desmaiar. – respondo à pergunta – E não, ele não fez nada a mim. Ao menos não ainda, por mais milagroso que isto possa parecer.

Lisanna murmura algo a si mesma ao finalmente encontrar o que buscava e então, questiona de maneira mais audível:

— O que ele disse? Parecia interessado em você de alguma forma?

O.k, concluo em pensamentos, definitivamente existe algo acontecendo aqui.

— Por que você parece saber mais sobre a situação do que eu supunha à princípio? – questiono, levemente irritada com o súbito interrogatório, principalmente quando sou eu quem aparento desconhecer a maior parte do contexto.

— Escute. – Ela se aproxima com algum objeto em mãos que não posso ver e senta-se ao meu lado. Seus olhos, antes tranquilos e sonhadores como as nuvens no céu, agora carregam um brilho de fervorosa determinação. – Quis o destino que nós duas nos encontrássemos para que pudéssemos ajudar uma à outra, Lucy, pois acredite no que direi: esta criatura... O Salamandra, é o que eu e meu irmão viemos caçar.

Estou sem fala. Tenho certeza de que minha expressão incrédula deve ser no mínimo, risível, pois Lisanna tenta em vão esconder o sorriso risonho, do qual suas próprias covinhas deduram. Caçar o Salamandra? Por acaso eles são malucos? E o que eu tenho a ver com esta história?

— Viemos para cá assim que soubemos do vulcão Phoenix. – explica.

— Mas era só uma lenda, como saberiam? – murmuro em devaneio. Muito além disso, até onde eu sabia, a lenda do filho do dragão de fogo era comumente apenas uma história interiorana local, não sendo reconhecida por habitantes urbanos, sejam eles da própria Fiore ou de reinos vizinhos. Semicerro os olhos em uma postura quase acusatória. – De onde vocês vêm e para quem trabalham?

— Isso não importa agora. – contesta, esquivando-se da pergunta. – O que importa é que esta criatura é extremamente perigosa e precisa ser capturada imediatamente. Estamos tentando rastreá-lo desde que chegamos em Dhara, mas o maldito sabe se esconder nestas árvores como ninguém. Quando disse que ele veio até você, mal pude acreditar.

— Por que ele precisaria se esconder? – rebato, desconfiada. – Seu poder está além do imaginado, poderia incendiar esta floresta inteira se assim desejasse.

— Ele gosta de jogos, Lucy. – diz com gravidade. – Como o leão que estuda a presa até a hora do ataque. Está sempre à espreita, enquanto nós... estamos cegos.

Com isto, eu posso concordar. Havia sentido na pele, horas antes, o que era ser o alvo de seu entretenimento.

— E o que você tem em mente? – Suspiro, já temendo a resposta.

Ela faz uma breve pausa, como se ponderasse os prós e contras de seu plano recém-formado, mas é evidente que está decidida, quando diz por fim:

— Eu preciso que continue aqui por um tempo. E antes que conteste – ergue a palma da mão assim que ameaço lançar uma enxurrada de negativas categóricas – eu ainda farei o que pediu e ajudarei a trazer os reforços para a sua aldeia. É só me dizer o que fazer e com quem falar. Mas eu preciso que você fique aqui. Seja qual for o motivo, ele foi até seu encontro por vontade própria, o que significa que deve voltar. E essa... pode ser a nossa única chance.

— Eu não posso ficar aqui! – exclamo, indignada. – Fala sério, o cara pode me matar a qualquer momento!

Meu coração se acelera de temor só de pensar em reencontrá-lo. Não, ela não pode me sujeitar a isso. Mas o alívio de partir da floresta tão logo e praticamente ilesa desvanecia como fumaça ao vento.

­— Não vai. Não acho que vai, já que não o fez até agora. E mesmo que a ameaça surja... –A albina finalmente revela o que segurava até então. – Manteremos contato. Qualquer sinal de perigo, acione este botão. Virei imediatamente com uma equipe de resgate, eu prometo.

O objeto que Lisanna deposita sobre minhas mãos, eu reconheço, é um Ear Cuff ². Já havia visto muitas mulheres, até mesmo alguns homens da cidade utilizando este tipo de acessório – um produto relativamente novo e caro no mercado, seja pelo material e joias com o qual era produzido, seja pela sua versatilidade e propriedades mágicas. Alguns eram fabricados para serem meramente ornamentais, mas quando mágicos, serviam como um tipo de comunicador a longa distância.

Logo de cara, sou arrebatada pela beleza e delicadeza da peça. Feita de prata, descreve um arco entrelaçado por flores e folhagens – cada ornamento com pedras de ametista em seu interior. A maior delas, sensível ao toque, aciona o comunicador mágico.

Com as minhas parcas economias, jamais tive a oportunidade de adquirir um acessório tão sofisticado. Obter meu próprio bracelete, tão primoroso quanto, deveu-se unicamente à sorte de encontrá-lo por acaso em uma loja de quinquilharias. Sorte esta, que acabou se revertendo em um azar ainda maior ao perdê-lo de forma tão infeliz na última noite –relembro, pesarosa.

Desfaço-me do encanto repentino pelo acessório e das lembranças tenebrosas para retomar à atenção a albina. Agora, reconheço que a mulher a minha frente não se trata de uma simples caçadora em busca de um trabalho bem remunerado, como aparentava à princípio, mas alguém que detém certo poder e riquezas.

— Lisanna, até agora você tem sido muito gentil e generosa, e eu já lhe sou muito grata por isso. Mas mal nos conhecemos, então como posso acreditar em suas palavras agora? – Sou franca. – Como posso apostar a minha vida em um plano maluco como esse?

— Se não tivesse me encontrado, não teria que enfrentar esta situação de qualquer maneira? – Minha expressão se endurece. Ela percebe rapidamente o erro, e utiliza uma abordagem mais leve. – Olha, desculpe, eu sei que estou sendo dura. Você não é obrigada a fazer isto se não quiser, mas pense: acha que estará mais segura quando chegar à cidade? Acha que alguém em toda Ishgar estará seguro se uma criatura como o Salamandra estiver perambulando por aí à solta? Sei que é corajosa, Lucy, foi até agora.

Encaro o chão, frustrada, porque sei a resposta. Apesar de não confiar inteiramente em Lisanna, o que ela diz faz sentido. De alguma forma, alheio ao perigo que o cerca, o mundo espera que eu vista a capa de heroína novamente, quando tudo o que eu mais desejo é poder concluir o luto pela minha família em paz.

— O que você quer que eu faça? – Passo a mão pelo cabelo, subitamente cansada. Mal posso acreditar que estou realmente considerando a sua proposta.

Quando volto a encará-la, vejo que seus olhos reluzem com uma dose de travessura.

— Seduza-o. – diz, simplesmente.

Levanto-me de supetão, alarmada, quase me desequilibrando com a perna ferida.

— O quê?! – disparo, o calor subindo para o rosto. Sinto-me ofendida e tomada pela fúria. Ela me sugeria algo tão sórdido como oferecer meu corpo àquela criatura sanguinária?

— Ora, você é bonita e saudável, e ele não deixa de ser um macho. Use seu charme e talvez o mais obsceno dos seres fraqueje aos seus encantos. – Dá de ombros, sorrindo, como se fosse um trabalho simples de ser desempenhado. – Se for demais para você, então descubra o que ele quer de você em primeiro lugar e o ameace com isto. Tudo o que eu preciso é que descubra onde ele esconde o amuleto.

A palavra me chama a atenção, arrefecendo minha raiva de momentos antes.

— Amuleto? Que amuleto?

— Algo que nos permitirá subjugá-lo. – explica ela ao erguer os olhos para mim, satisfeita por ter incitado minha curiosidade. – Só ele sabe como o objeto se assemelha e onde o esconde.

— O que acontecerá se eu não conseguir?

— Nada com você, eu lhe asseguro. Ainda assim, quero que tenha em mente o quanto é importante que seja bem-sucedida nesta missão. Você disse que estava indo para Magnólia, certo? Pois bem, minha proposta é que continue seu caminho, e se tudo der certo, nos encontraremos novamente daqui a seis dias depois da ponte do desfiladeiro. Será o momento da emboscada.

Fico em silêncio, remoendo todas aquelas novas informações, tentando ordenar meus próprios sentimentos contraditórios, mas sem sucesso. Depois de um tempo, Lisanna vai até mim, pega em minhas mãos com delicadeza e me puxa de volta à beirada da cama para que eu me sente novamente ao seu lado.

— Eu sei o que você deseja, Lucy. – Ela toca meu ombro em um gesto de conforto.

— Sabe? – questiono em descrença.

A albina assente com sabedoria.

— Você tem medo, teme pela sua própria vida. Sente-se frustrada, porque a incumbiram de uma responsabilidade injusta e não solicitada. Ao mesmo tempo, seu coração carrega rancor, por tudo o que o mundo tirou de você. Por tudo o que ele tirou de você. Além do rancor que guarda de si mesma, por não ser capaz de encarar os olhos do ser responsável pela sua perda, por não ter sido capaz de lutar nos momentos que considerou os mais importantes.

Solto um riso fraco e sem humor, incrédula com a habilidade da albina de me decifrar tão facilmente, ao passo que eu sequer posso imaginar o que se passa por trás de seus lindos olhos celestes. É frustrante e injusto.

— Aceite minha proposta e posso garantir que terá o Salamandra aos seus pés.

É uma perspectiva tentadora, não nego. Ainda assim, quero acreditar que tenho a opção da recusa. Tudo sobre aquela proposta denota que aceitá-la será uma péssima escolha.

— E eu posso garantir que sadismo não está dentre as minhas virtudes. – teimo, tentando ignorar a estranha agitação que se instalou em meu peito.

— De certo que não. – O sorriso de covinhas da albina reaparece, encantado com a minha teimosia. – Encare isto como uma proposta de justiça. Afinal, algumas vezes na vida, até os mais pacifistas desejam um acerto de contas, não é mesmo?

Em um estalo, tudo faz sentido; o motivo de me sentir tão tentada a aceitar o plano insano de Lisanna.

Até este momento, estive tão concentrada em realizar meu dever, a última ordem de Jellal para garantir a segurança dos moradores da vila, que me esquecia do que viria em seguida, o miserável depois. Assim que estivesse tudo acabado, de volta à vida rotineira e à segurança da minha casa, o que restaria dentro de mim... além do imenso vazio, da ausência opressiva e da culpa desoladora?

Justiça. Sim, esta era a palavra-chave que meu coração almejava desde o início, e que só esperava ser encontrada.

Antes, jamais pudera vislumbrar a possibilidade de fazer justiça, quando tal cenário se demonstrava tão irreal quanto o ar era palpável. Um desejo oculto e rastejante, mas que sempre esteve ali, soterrado pelo medo e a própria covardia.

Agora, observo novamente o cintilar da prata em meus dedos, a oportunidade estava entregue ao alcance de minhas mãos.

Em pouco tempo, uma completa desconhecida foi capaz de desdobrar meu desejo mais íntimo, antes mesmo de eu ter plena consciência de sua existência. Por mais que eu desejasse negar, dentro de mim uma empolgação fria e selvagem fervilha, alimentada pela tristeza profunda que ainda não encontrou formas de se curar.

Jellal uma vez me disse que é um caminho sem volta, mas sou acalentada pela ideia de que meu alvo sequer é humano, muito menos digno de perdão. Uma criatura maligna provinda diretamente das hordas do inferno.

Respiro fundo, relaxando as mãos tensas e suadas – os dedos estão brancos pela pressão e retenção do sangue.

­— Você terá o amuleto. – afirmo, de repente, com uma calma que surpreende até a mim mesma. – E eu livrarei este mundo do mal que o cerca.

Vejo os olhos de Lisanna brilharem, conforme deslizo alguns fios de cabelo para trás da orelha esquerda e encaixo o acessório prateado ali. Um segundo depois, minhas madeixas soltas estão de volta, escondendo qualquer sinal do brilho prateado a adornar a curva da minha orelha.

Os tempos de covardia terminaram e deram espaço para uma sonora melodia de vingança.

— Eu aceito a sua proposta. – declaro por fim.

¹Angiospermas são plantas vasculares com sementes, que apresentam como característica principal a presença de flores e frutos.

² Ear Cuff: Acessório para orelha.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.