CAPÍTULO 3

Somente depois de ter certeza de que Kili havia mesmo voltado a dormir, Tarvi se levantou. Pé ante pé, foi até a cozinha e começou a preparar algo para comer - depois de mal comer na noite anterior, seu estômago roncava furiosamente. Conseguia ouvir vagamente o burburinho das pessoas iniciando mais um dia de trabalho. Devia ser por volta das oito da manhã. Distraidamente, empilhou ovos mexidos, duas salsichas e algumas fatias de bacon em um prato, quando uma voz disse, às suas costas:

— Você poderia, por favor, preparar uma porção para mim?

Tarvi pulou, seu coração saindo pela boca. Parado na porta, um sorriso no rosto, estava Kili, observando-a. Ele havia colocado a camisa do pijama, mas isso não impediu que seu rosto pegasse fogo.

— Desde quando você está parado aí? – ela perguntou.

— Tempo suficiente – ele deu de ombros – achei justo, depois do susto que você me deu essa manhã, me olhando dormir.

Tarvi pensou em retrucar, mas não ia adiantar nada. Ela estava fazendo exatamente isso. Resolveu fingir que não havia ouvido. Ao invés disso, estendeu o prato para ele:

— Coma, enquanto ainda está quente.

— Achei que esse era seu prato – Kili respondeu, franzindo a testa.

— Eu faço outro para mim, enquanto você come. – Ela voltou sua atenção para o fogão.

Com Tarvi de costas para ele, Kili resolveu observá-la. Ela murmurava algo que parecia uma canção, enquanto mexia os ovos. Seu cabelo, preto como o dele, estava preso em uma trança – e, no topo de sua cabeça, ainda estava a trança de casamento. Totalmente bagunçada, mas ainda estava lá. Isso fez ele se sentir bem. Ela poderia ter arrancado a presilha após a cerimônia. Mas não fez.

Lembrou de quando acordou assustado, com a impressão de que alguém o estava vigiando, e se deparou com ela o encarando. Lembrou do modo como seu rosto ficou vermelho e seus olhos verdes se arregalaram, enquanto ela comentava que ele babava dormindo (não era exatamente uma novidade para ele, mas ele preferia que sua esposa não descobrisse isso. Pelo menos não no início do casamento).

Em sua observação, não reparou que ela havia se sentado à frente dele, um prato igual ao seu à sua frente. Ela perguntou:

— Algo errado? – sua voz traía preocupação – a comida está ruim?

Kili foi arrancado de seu devaneio:

— Hã, não, está óima. Eu só estava...pensando.

Tarvi não o questionou. Ele tinha o direito de ter seus próprios assuntos.

— Sua trança – ele continuou; ela não havia perguntado nada, mas ele sentia a necessidade de falar – Você não a desmanchou.

Tarvi não entendeu. Ela havia feito sua trança naquela manhã...

— Sua trança de casamento— ele adicionou.

— Ah – Tarvi passou a mão pela trança – Bem, nós estamos casados. Não é um compromisso que dá para desfazer, não de acordo com nossas leis.

— Hum – Kili não sabia o que dizer – eu posso arrumá-la para você, depois. Se você quiser.

— Ah. Sim. É, eu gostaria – seria gostaria a palavra certa? Muito avançada? E se ele deduzisse algo errado? Muitas perguntas passavam pela cabeça de Tarvi.

— Bem – Kili colocou o prato vazio sobre a pia e reparou que não havia mais nada de lenha. Nem no quarto – ele havia usado toda a lenha para acender a lareira na noite passada – Eu vou buscar mais lenha. Encontro você daqui a pouco.

Tarvi acenou com a cabeça, enquanto terminava seu café da manhã.

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Tarvi aproveitou a saída de Kili para começar a arrumar suas coisas. A primeira conclusão a que chegou: ela ia precisar de mais estantes. Em uma situação normal, Yari teria ficado com seus livros, e Tarvi com os seus. Mas como Yari havia fugido e deixado tudo para trás, Tarvi se viu “herdeira” de todos os objetos da irmã. Segunda conclusão: ela tinha coisas demais.

Então Kili voltou pouco depois, visivelmente nervoso, tentando esconder algo no bolso.

— Kili? Algo de errado? Você parece nervoso.

Ele tentava empilhar algumas achas na lareira para acendê-la mas, vez após vez, elas desmoronavam.

— Kili – Tarvi tentou novamente, ajoelhando-se ao lado dele e ajudando-o a arrumar as achas – Aconteceu alguma coisa?

—Eu...eu encontrei minha mãe. Ela...ela queria saber como foi – ele se sentou pesadamente no chão – eu não consegui falar a verdade para ela. Desculpe. Eu disse que tudo tinha corrido bem. Desculpa.

Tarvi se sentou ao lado dele.

— Não precisa pedir desculpas. Eu coloquei você nessa situação. Talvez...talvez eu devesse ir falar com ela.

— Talvez... Eu não sei se é uma boa ideia. Eu não sei como dizer, mas aparentemente seu pai encara este casamento como uma... garantia. Se ele não foi consumado, seu pai pode ficar ofendido e retirar o apoio aos planos de Thorin.

— Mas e que planos são esses?

— Não sei – Kili esfregou as têmporas, sujando-se de fuligem, enquanto usava a pederneira com mais força – Ele não diz. Aposto que Fili deve saber – finalmente o fogo acendeu, e ele pode recostar-se no sofá, ainda sentando no tapete, usando seu casaco.

— Por quê não pergunta a ele? – Tarvi sentou-se a seu lado

— Já fiz isso. Ele disse que não sabe – Kili parecia frustrado.

— Então talvez seja verdade.

Kili deu de ombros. Então pareceu se lembrar de alguma coisa.

— Eu trouxe isso para você – estendeu para ela algumas flores roxas – São as primeiras do inverno – ele sorriu (mas por dentro, sentia seu estômago gelado. Suas tentativas anteriores de dar flores de presente para anãs nunca tinham dado certo).

Tarvi ficou realmente comovida. Era um gesto lindo.

— Vou colocá-las na água – levantou-se rapidamente, antes de voltar e dar-lhe um beijo na bochecha – Obrigada pelas flores!

Kili continuou sentado no tapete, olhando o fogo. Que confusão sua vida tinha virado em uma semana! Mesmo assim, pensou, lembrando-se de Tarvi pela manhã, e o beijo que ela havia acabado de lhe dar, eu faria tudo de novo.

Momentos depois, ela sentou novamente a seu lado. Juntos, ficaram olhando para o fogo.

— Sabe – Kili quebrou o silêncio – Acho que vamos precisar de mais prateleiras.